O nome de Philip K. Dick está para a literatura de ficção científica tal qual o de Dashiel Hammett para a policial. Um mestre no gênero, inventivo, autor de fantasias futuristas complexas e inteligentes, sempre temperadas com boa dose de crítica política, um visionário. Muitas de suas histórias foram adaptadas para o cinema com grande sucesso: Blade Runner – o caçador de andróides, O vingador do futuro, Minority report – a nova lei, só para citar algumas. Todas, porém, produções francamente comerciais, agrupando os elementos típicos do cinema de pura fruição – elencos de grandes astros, efeitos especiais elaborados, produções cuidadosas. Este aqui é um pequeno filme que, mesmo trazendo a marca do mestre, fez carreira tímida nos cinemas, embora seja baseado em um de seus textos mais cultuados, e menos conhecidos, no Brasil: O homem duplo. O filme foi produzido pela Wip, o braço da Warner para projetos independentes, o que também causou restrições de exibição, limitando-o ao circuito alternativo.
A trama se passa em um futuro não determinado e acompanha o cotidiano do policial Fred, designado pelo departamento de polícia de Anahein para investigar um grupo de traficantes de uma poderosa droga sintética, a Substância D. Para isso, ele assume a identidade de um desses usuários, Robert “Bob” Arctor, e passa a conviver com outras pessoas envolvidas nesse universo de opressão e decadência. Por meio de câmeras filmadoras instaladas em sua casa, ele obtém as informações que podem levar ao chefe da quadrilha. Mas tudo se complica quando ele se reconhece em uma das imagens como sendo o homem que deveria investigar. Neste momento, a paranóia de Fred/Bob chega ao limite e ele se vê sem saída.
O diretor Richard Linklater é velho conhecido de boa parte do público cinéfilo. É ele o responsável pelo já clássico do romantismo dos anos 90, Antes do amanhecer, em que um jovem casal se encontrava por acaso durante uma viagem de trem pela Europa e trocava confidências, desenvolvendo uma relação ambígua. Dez anos depois, fez a continuação, Antes do pôr-do-sol, que não foi tão bem sucedida. Seus filmes são, geralmente, muito dialogados, o que pode aborrecer alguns, mas a sinceridade com que trata de certos temas agrada e provoca boas reflexões. Linklater já havia realizado uma experiência na animação em 2001, com Waking life. Ali, ele utilizou a técnica da rotoscopia (que é repetida neste aqui), em que primeiramente os atores são filmados em seus movimentos reais e depois é feito o processo de animação por cima das imagens. O visual parece estranho a princípio, sobretudo para quem está acostumado com as produções Disney/ Pixar, mas sempre fascinante. Esta é outra razão pela qual o filme não fez o sucesso que deveria ou poderia. Desenho animado para adultos é sempre uma coisa complicada, difícil de lançar nos cinemas, e que nunca encontrou seu público no Brasil, com exceção das animes. Fica melhor assim, em DVD, onde pode ser melhor aproveitado.
Embora bastante fiel ao romance original, mantendo as situações básicas e até mesmo os diálogos (nada é cortado ou acrescentado, apenas um detalhe foi invertido do final para o começo da história, o que, diga-se de passagem, elimina boa parte da surpresa), o filme sofre os mesmos problemas de toda adaptação de obra literária. O maior deles é a falta de clareza que fica diante de algumas cenas que passam voando (a mim, incomodou um pouco a velocidade da história, muita gente pode se perder, mal há tempo para se pensar no que aparece na tela). Por exemplo, a seqüência da bicicleta, que tem uma função bem específica no livro – mostrar a degeneração cognitiva provocada pelo uso das drogas – soa deslocada no filme, gratuita, mesmo porque não se conclui! O que confunde o espectador. Por outro lado, a decisão de realizar o filme em animação se justifica sobretudo pela solução encontrada para a representação do traje misturador (no filme, traje de transição), que os policiais usam para não serem identificados fora de seu ambiente de trabalho. Confesso que somente vendo o resultado na tela consegui entender perfeitamente como funcionava o mecanismo da roupa. É algo que, se feito com atores verdadeiros, dificilmente alcançaria o mesmo efeito, mesmo com tantas facilidades de computação e efeitos especiais avançados. Embora o final permaneça inalterado, seu impacto é maior no livro, mas pelo menos a nota do autor, que encerra o romance, foi mantida na tela, ainda que bastante reduzida.
A sugestão é que o espectador leia o livro antes, até para não se perder em determinados trechos do filme, e assim possa avaliar até que ponto a adaptação foi bem ou mal feita. Mas quem busca apenas um bom programa sem ter conhecimento do texto original também vai encontrar bons motivos para se divertir.
O HOMEM DUPLO (A scanner darkly)
Animação / Ficção científica
EUA, 2005, 100 minutos
Direção: Richard Linklater
Elenco: Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Winona Ryder, Woody Harrelson, Rory Cochrane.
Para ler:
O homem duplo
Philip K. Dick
Editora Rocco
310 páginas
Preço médio: R$30
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