sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Outros mundos, outras vidas


Há alguns anos, escrevi um conto intitulado “Não estamos sós”. Nele, um rapaz descobria a existência de um outro planeta Terra, em tudo igual ao nosso, inclusive habitado por versões mais evoluídas e bem-sucedidas de nós mesmos. Esta era a diferença: lá, os “outros eus” levavam a vida que nós gostaríamos de levar, se todos os nossos planos tivessem se concretizado de forma satisfatória. Perturbado com essa descoberta, passa a viver segundo o que considera auspícios astrais, influenciado (sem se dar conta) por ações de seu “duplo” no outro planeta. Como esse conto nunca foi publicado em lugar nenhum, só pode ter sido uma grande coincidência que o diretor Mike Cahill tenha realizado um filme que é praticamente a versão em celulóide do que escrevi. Infelizmente, o resultado ficou aquém do que poderia – e se me permitem um raro exercício de pretensão, não é a adaptação que eu gostaria de ver de um conto meu.

A jovem Rhoda Williams (Brit Marling, também roteirista, junto com o diretor) tem um futuro promissor. Aos 17 anos, acaba de ingressar em uma das mais prestigiadas instituições de ensino tecnológico dos Estados Unidos. Na mesma noite em que fica sabendo disso, causa um acidente enquanto guia seu carro e provoca a morte da mulher e do filho do professor John Burroughs (William Mapother, de Lost). Fica presa por quatro anos, o mesmo tempo que teria passado na universidade, e, ao ser libertada, não tem mais alternativas. Vai trabalhar como faxineira em uma escola, mas ganha um novo alento ao descobrir o endereço do professor. Consegue se aproximar, oferecendo-se para limpar sua casa uma vez por semana. Ele não sabe quem ela é, e os dois acabam se envolvendo afetivamente. Mas o passado cobra um preço e Rhoda precisará renegar seu futuro pela segunda vez. Agora, em nome de sua redenção.

Paralelamente, a ciência anuncia a descoberta de outro planeta Terra, logo chamado de Terra II, no qual, acredita-se, vivam duplos de todos os habitantes do nosso pobre e doente planetinha. Essa revelação servirá para abalar o frágil equilíbrio emocional que sustenta Rhoda em sua zona de conforto. Ela se sente responsável pelas vidas que destruiu e crê que em algum lugar da galáxia possa remediar seu erro. Assim, se inscreve em um concurso lançado pelo governo norte-americano para viajar para a Terra II (sic), já que somente lá será possível um recomeço.

O ritmo lento da narrativa ajuda a inserir o espectador no universo solitário e melancólico de Rhoda, uma mulher que desperdiçou sua vida e agora passa seus dias assombrada pela culpa. A monotonia de seu cotidiano é traduzida em imagens que dissecam uma existência vazia, que se arrasta na monocórdia batida da trilha sonora, com especial acompanhamento da canção instrumental “The first time I saw Júpiter”, do grupo Fall On Your Sword. Enquanto isso, o agora ex-professor Burroughs se enclausura em sua casa, afastada do centro urbano, jogando videogame, também sem perspectiva. Do encontro entre esses dois personagens destroçados pelo destino comum surgirá uma centelha de esperança.

O roteiro poderia ter explorado mais o sugerido paralelismo existente entre os dois planetas. Assim, as ações de uma segunda Rhoda influenciariam, e estariam diretamente relacionadas a, suas ações na nossa Terra. Mas o diretor preferiu seguir por uma trilha mais metafísica, não aprofundando os pontos em comum que poderiam surgir dessa duplicata planetária. O resultado não chega a empolgar, embora no todo o filme não desagrade. Ficou no meio do caminho. No meu conto, optei exatamente por essa alternativa que o diretor descartou.

A edição em DVD é melhor do que a média que vem sendo lançada, já que há tempos as distribuidoras desistiram de caprichar nos bônus e limitam-se ao trivial. Traz cenas eliminadas, algumas com comentários do diretor, que explica as razões para o corte, duas breves entrevistas (muito curtas, podiam ser mais extensas), clipe da música principal e trailer, este sem legendas.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A câmera nas mãos do idiota


Nunca entendi esse fanatismo religioso que caracteriza alguns povos ao redor do mundo. Talvez por ser ateu ou viver em um país que permite a livre expressão de credos e crenças, onde umbandistas, católicos e evangélicos convivem em harmonia, desde que, logicamente, respeitadas as convicções de cada um. Na Escócia, por exemplo, de tão inflamadas, as diferenças religiosas chegam a extrapolar e invadir o campo esportivo. O clássico nacional entre Celtic e Glasgow Rangers é mais do que um jogo de futebol. Para muitos torcedores, é a oportunidade de provar no gramado a superioridade de uma religião sobre outra, já que os times são historicamente identificados com protestantes e católicos, respectivamente. Não raro os encontros terminam em pancadaria e violência generalizada.

No Oriente Médio, nem é preciso falar. Como, repito, não entendo esse fanatismo que move as ações de judeus, árabes e israelenses uns contra os outros, fico me perguntando para que tanta guerra, tanta intolerância, por que essa necessidade quase animalesca de eliminar os devotos de uma e de outra religião. Ouço falar em guerra santa desde que eu era pirralho e a cada semana surge “mais do mesmo”: atentados, homens-bomba, destruição de templos etc. Será que esse povo nunca se cansa? Será que isso nunca vai ter fim? Mata-se mais em nome de Deus do que se vive sob seus princípios. Se essa matança infinda ocorre por ordens dele, então é muita sorte que o resto da humanidade ainda não tenha sucumbido, porque um Deus assim, que prega a destruição, é de meter medo!

O leitor eventual do espaço deve estar se perguntando o que esse assunto tão pesado está fazendo no blog que tem, por princípio, ocupar-se de temas voltados à cultura. Explico. Há alguns dias, várias embaixadas norte-americanas no Oriente Médio foram atacadas por fundamentalistas islâmicos, resultando em mortes, incluindo alguns diplomatas ianques. O estopim teria sido a veiculação de um filme que conteria diversas injúrias contra o islamismo. Algumas: mostra-se Maomé em forma humana, interpretado por um ator, conferindo-lhe, portanto, um rosto, o que é proibido pelas leis islâmicas. Mais grave: esse próprio “Maomé” afirmaria que tal religião é um câncer, exorta seus seguidores a assassinar crianças e escravizar pessoas, além de fazer piada com outros dogmas sagrados das crenças locais.

O filme em questão se chama A inocência dos muçulmanos, na verdade um curta-metragem de 14 minutos de duração, que até a semana passada estava disponível em diversos sites de compartilhamento – hoje já foi varrido de quase todos eles, mas o leitor que tiver interesse pode procurar na rede que talvez encontre; assista por sua conta e risco. Trata-se de uma patetice despropositada, visivelmente amadora, levada em tom de comédia, com o único objetivo de debochar do islã, chamando-os de terroristas que propagam o mal e espalham destruição. O escritor Salman Rushdie classificou o vídeo como “um lixo”. Outras autoridades condenaram a produção tanto pela pobreza da realização quanto pela gratuidade das ofensas proferidas. Atores e equipe técnica que participaram do filme se disseram enganados pelos produtores, pois haviam sido contratados para rodar um épico chamado Guerreiro do deserto e se surpreenderam ao ver o resultado. Nem vale a pena comentar outros aspectos dessa sandice.

Sou inteiramente a favor da liberdade de expressão. Cada um tem o direito de se manifestar a respeito do que bem entender, da forma que quiser. Mas é preciso que haja um propósito, uma mensagem a ser passada. O que se vê nos 14 minutos da produção é um ataque gratuito a uma religião, sem qualquer estofo dramático consistente que o justifique. O diretor disse que fez um filme político, não religioso, mas não é o que se pode constatar. Além disso, é difícil separar uma coisa da outra em uma região como o Oriente Médio, em que ambos os assuntos estão estreitamente ligados.

A identidade do autor de A inocência dos muçulmanos permanece envolta em mistério, embora pipoquem no território livre da internet algumas versões para sua origem. Sabe-se que Sam Bacile, o nome com o qual foi inicialmente identificado, não existe. Este seria um pseudônimo de Nakoula Basseley Nakoula, um judeu copta de 55 anos (algumas fontes citam 45). Mas também não é oficial. Outras versões dizem que o diretor verdadeiro é Alan Roberts, que tem longa carreira no cinema pornô, embora também não conste nada a seu respeito no IMDB. Atores e atrizes que atuam no filmete também seriam egressos do universo de produções adultas, sendo que uma delas, Amina Noir, chegou a ser modelo da TV Playboy. Tudo especulação.

Há muitos outros aspectos mal explicados. Como uma produção amadora, que nunca foi lançada comercialmente, em tese foi pouco ou mal vista, pode ter deflagrado uma onda de violência tão grande? A versão conhecida tem 14 minutos, com cortes evidentes; existe uma versão completa? A montagem feita tira a obra de seu contexto original ou a idéia era mesmo atacar o islã? Por que não há informações concretas sobre os intérpretes? Tudo nebuloso. Essa falta de pistas é de certa forma simbólica. Talvez seja mesmo o melhor destino para essa aberração: o anonimato e a obscuridade eternos.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Confissões de um seriemaníaco - IV


FDP
Onde e quando: HBO, domingo, 20h30; reprises em horários diversos.
Elenco: Eucir de Souza, Paulo Tiefenthaler, Cynthia Falabella.
Sinopse: O juiz de futebol Juarez Gomes da Silva sonha em apitar uma final de Taça Libertadores enquanto enfrenta problemas pessoais.


Comentários: Não sei se já é o efeito da chamada Lei da TV a Cabo, que obriga as operadoras a apresentarem produções nacionais em horário nobre, mas o fato é que a HBO vem investindo em séries brasileiras. Esta é a segunda seguida, depois da boa Preamar e de outras bem-sucedidas e mais antigas (Filhos do carnaval, Mandrake, Alice, mais recente Mulher de fases). Uma escolha que valoriza a produção nacional e aqui se mostra um acerto por trazer ao público um tema pouquíssimo explorado pelo audiovisual, o futebol, que, mesmo sendo parte inerente da cultura do nosso povo, não consegue se fazer retratar com competência nem no cinema (com raras exceções) nem na televisão. A grafia original é em caixa baixa e entre parênteses. O roteiro, escrito por José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, é um achado. Somos apresentados ao juiz de futebol Juarez Gomes da Silva, apaixonado pela sua profissão, aparentemente profissional (não há indícios de que ele tenha outra ocupação, ao contrário do que normalmente ocorre no meio), cujo grande sonho é apitar uma final de Taça Libertadores da América. A cena de abertura da série é um primor de nonsense, com o árbitro encerrando a almejada partida e sendo carregado em triunfo pelos jogadores de ambas as equipes! Claro que é um sonho de Juarez, que logo acorda e precisa lidar com os problemas de sua vida real. Embora a série deixe claro que Juarez prima pela honestidade em seu ofício, fora das quatro linhas ele não é nenhum santo. Contaminou a mulher com uma doença venérea, contraída em uma relação extraconjugal, razão pela qual ela pede o divórcio. Tem dificuldades para aceitar a escolha do filho pré-adolescente, que prefere usar sapatilhas de balé para aprender a dança a chuteiras para se tornar jogador. Enquanto árbitro, sofre pressão de todos os lados. No primeiro episódio, o magistrado que conduz o processo de separação se revela também presidente do clube que decide o Campeonato Paulista contra um time pequeno e, ao encontrá-lo a caminho do estádio, faz questão de lembrá-lo para “apitar com inteligência”. O resultado não sai como esperado e Juarez será alvo da vingança do outro juiz. A cada episódio, há uma partida de futebol para a qual Juarez é escalado e uma situação paralela que envolve sua vida pessoal. Ambas se cruzarão em certo ponto com sua atuação dentro das quatro linhas, que, por sua vez, influencia o que acontece fora delas.


Por que ver: Antes de tudo, pela criatividade dos roteiros. Com uma estrutura que se anuncia repetida ao longo da série, são pequenos detalhes que fazem a delícia de cada episódio. Há referências e citações facilmente identificáveis, como o nome do estádio em que se joga a final do Paulistão (Parque Atlântico, na verdade o Morumbi com outro nome), o comentarista esportivo que só repete frases feitas, os anunciantes dos programas esportivos e as placas de patrocinadores das partidas. Qualquer pessoa pode curtir essa gozação, mas é claro que quem acompanha futebol e conhece a realidade abordada aproveita melhor as sacadas. O elenco está ótimo. Não conhecia esse ator, Eucir de Souza, que trabalha já desde 2000 e tem uma longa ficha de títulos pouco vistos ou conhecidos. Começou em Soluços e soluções, fez muitos curtas, novelas de TV, e recentemente integrou o elenco de Força tarefa e está em O gorila, aguardada adaptação da novela homônima de Sérgio Sant’Anna que será exibida no Festival do Rio. Tiefenthaler, que faz um dos auxiliares (bandeirinhas) que é sempre escalado com Juarez, é conhecido pelo programa Larica Total, do Canal Brasil, e aqui tem a chance de confirmar sua veia artística.
Por que não ver: Mulheres podem rejeitar a série, já que o assunto é essencialmente masculino. Os espectadores que também não gostam de futebol (inclusive homens que não se ligam no esporte, e há muitos) também não se sentirão interessados em assisti-la. Mas a dica é jogar o preconceito para o escanteio e conferir ao menos um episódio. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Coisas que ninguém esquece


Um dos filmes brasileiros mais importantes está completando uma data redonda esta semana. Sua estréia nos cinemas entrou para a história e serviu como um divisor de águas na produção nacional. Não se trata de Limite, Deus e o diabo na terra do sol nem Cidade de Deus, embora este último também esteja chegando a sua primeira década. Falo de Coisas eróticas, de 1982, o primeiro pornô lançado comercialmente no Brasil, e antes que me acusem de depravado ou idiota por valorizar um filme do gênero, apresso-me a explicar. Se ainda hoje há preconceito com o nosso cinema, certamente sua origem está diretamente ligada ao sucesso que aquele filme fez em sua época e que praticamente definiu um “estilo”.

Talvez hoje, de fato, haja menos essa percepção. Mas por muitos anos, filme brasileiro era sinônimo de “filme de mulher pelada”, onde “só tinha sexo e pornografia”. Evidente que tal percepção serviu para afastar o público das produções nacionais. Mas é inegável que Coisas eróticas marcou um período. Antes cercado de certos pudores, o cinema brasileiro escancarou o sexo explícito nas telas a partir daí, descobrindo um novo filão. Seu lançamento fez explodir a Boca do Lixo, região da capital paulista em que se concentravam as principais produtoras do cinema de então, especializadas em filmes de grande apelo e consumo popular. Hoje todo mundo sabe o que foi a Boca, que tipo de cinema era feito lá e muitos já até devem ter visto vários títulos – as gerações mais novas podem descobrir um ou outro título na internet, os mais velhos se lembram, e se algum leitor do blog quiser, pode contar aqui sua experiência de como era ver um filme daqueles na sala escura. Eu era pirralho, nem gostava de cinema (só me interessava por desenhos animados), mas lembro de ver as críticas nos jornais, sempre com a figura do Bonequinho saindo, com os mesmos termos se repetindo no texto: "produção amadora", "nível rasteiro", "grosseria" etc.

Não vou, aqui, fazer uma análise detalhada deste filme ou de qualquer outro daquele período. Há bons livros sobre o assunto, incluindo o recém-lançado Coisas eróticas – A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional, escrito por Denise Godinho e Hugo Moura, que esmiúça os bastidores daquela produção, conta detalhes das batalhas judiciais travadas pela liberação da obra e casos curiosos, como o de que a modelo do cartaz do filme era, na verdade, um travesti. Mas quero prestar um tributo àquela época. Muita gente pode querer esquecê-la, ou fazer de conta que não existiu, alegando que desabonava o cinema brasileiro. Pode ser, mas a Boca teve sua importância, tanto que em janeiro houve uma mostra com os títulos mais significativos de então, apresentada no Festival de Amsterdã. Fico pensando como a platéia holandesa, e de resto os jornalistas do mundo todo que cobriram e estiveram presentes ao evento, reagiram diante de tanta tosquice. Imagino que no final o cinema brasileiro tenha saído ganhando, já que saltamos de coisas como Meu marido, meu cavalo para obras premiadas no exterior e de inegável qualidade artística, como Mutum, O palhaço e Ônibus 174. Ainda que à custa de arranhões. Ou seja, saímos da indigência para um patamar elevado em pouco mais de 20 anos. Feito digno de reconhecimento.

Livros, mostras e difusão pela internet são mesmo as melhores formas de manter vivo o interesse por esses filmes, que, na prática, estão condenados ao esquecimento. Muitos foram lançados em vídeo, cumprindo a lei de reserva de mercado, que obrigava as locadoras a terem um mínimo de 25% de títulos nacionais em seu acervo. Mas, como nenhum deles jamais foi digitalizado, a tendência é que se tornem lendas e sumam na poeira do tempo. A exemplo de tantos outros filmes comuns, mais antigos, que hoje só são conhecidos pelo nome. Simbolicamente, o desaparecimento de tais produções representaria também o apagamento de um período negro do cinema brasileiro, do qual normalmente não se gosta de lembrar. Mesmo que isso aconteça, contudo, há certas coisas que ninguém conseguirá esquecer.