quinta-feira, 25 de julho de 2013

Obsessão lusitana rodrigueana

Odete (2005)
Embora dividam uma identidade lingüística similar, com pequenas variações de lado a lado, Brasil e Portugal não comungam da mesma intimidade audiovisual. Ao passo que as telenovelas brasileiras fazem muito sucesso nas terras d'além-mar, a ponto de influenciarem o falar do povo local (o que gerou controvérsia nos meios culturais há alguns anos), a produção portuguesa de filmes e programas de TV é praticamente desconhecida por aqui. Há exceções, claro, a maior atendendo pelo nome de Manoel de Oliveira, o diretor mais idoso ainda em atividade no mundo. Aos 103 anos, Oliveira continua trabalhando e produzindo em média um filme por ano, demonstrando um vigor invejável para alguém de idade tão provecta. Projetos seus ganharam as telas daqui, como Um filme falado (2002), Sempre bela (2006) e Singularidades de uma rapariga loira (2010), enquanto O estranho caso de Angélica (2008) é reprisado com freqüência na TV a cabo. Em tempos não muito distantes, a primazia de ser o embaixador do audiovisual lusitano em terras tupiniquins coube a João César Monteiro, cuja obra-prima A comédia de Deus (1995) ficou algum tempo em cartaz.

O nome da vez é João Pedro Rodrigues, considerado hoje o diretor mais importante da nova geração de realizadores portugueses, sempre marcando presença em festivais ao redor do mundo. Dele, o público cinéfilo já viu o polêmico O fantasma (1996), que trazia escancaradas duas vertentes de sua obra: a obsessão humana que nasce motivada pela solidão e a temática homossexual, quase sempre contemplando o espectador com generosas cenas de sexo, na maioria das vezes incômodas. Embora de carreira consistente, nada justificava uma retrospectiva de sua filmografia no último Festival do Rio, já que ainda não se observa em sua obra o que possa ser definido como um legado de reconhecido peso para a Sétima Arte. No entanto, a iniciativa foi uma excelente oportunidade para se conhecer um conjunto ignorado pelo circuito exibidor, além de trazer novamente ao evento um título exibido poucos anos antes, o hipnótico Odete (2005, exibido pela primeira vez com o apêndice "alucinada").

Embora centrado no personagem que lhe dá título, o filme abre com um beijo de despedida dos namorados Rui e Pedro, pouco antes de este morrer em um acidente de carro na noite lisboeta. Na cena seguinte, somos apresentados a Odete (interpretada por Ana Cristina de Oliveira, linda, mas um tanto magra), que trabalha como auxiliar em um supermercado. Nada em seu exterior preconiza, mas Odete é uma mulher doente, mentalmente instável. Ela quer ter um filho, casar e constituir família (seria o que hoje se poderia chamar de "mulher das antigas"?), mas seu namorado rejeita a idéia. Não suportando mais os insistentes apelos da moça, ele a abandona. Ela vaga solitária pela noite e, sem rumo, acaba indo parar no velório de Pedro. Assaltada pelo desequilíbrio, surrupia a aliança que o morto tem no dedo (em uma cena de improvável ousadia erótica) e passa a viver sob a fantasia de ser viúva dele, mesmo sem nunca o ter visto antes. Tentando preencher seu vazio, Odete inventa que está grávida de Pedro, chegando a visitar a mãe do rapaz, com quem cria certa empatia, mas a farsa é ameaçada quando Rui tenta afastar Odete de seu caminho, acusando-a de corromper a memória do amante. É do choque surgido do encontro entre esses dois seres despedaçados pelo abandono que se alimenta o roteiro, que vai se desenvolvendo de forma lenta e dolorosa.

Odete é movida por obsessões.
Percebe-se que tanto Odete quanto Rui são pessoas fracas, que não sabem lidar com a rejeição. A primeira se refugia em uma obsessão para não sucumbir à loucura completa; o segundo busca a autodestruição, primeiro praticando sexo de risco com parceiros eventuais que encontra na noite (há uma cena de felação em uma sauna que pode desagradar muitos espectadores), depois tentando se matar. No entanto, é dessa fraqueza que ambos retiram, paradoxalmente, a força mais autêntica para tentarem reordenar suas vidas. Odete em maior grau, a ponto de tomar uma decisão extrema, que não posso revelar por constituir o grande impacto da história, mas que ecoará na mente do cinéfilo mais tarimbado, evocando Hitchcock e, mais recentemente, Almodóvar. A reconstrução da identidade é o meio encontrado por ambos para garantir a seqüência da vida, ainda que tingida pelas tintas do absurdo: Odete se transfigura; Rui se reencontra; e Pedro se pereniza.

Recentemente, a distribuidora Silver Screen, um dos selos da Continental, lançou alguns clássicos portugueses dos anos 40 e 50, como Aldeia da roupa branca e A costa do Castelo, entre outros. Seria uma boa se continuasse no processo de nos apresentar o cinema lusitano, agora com títulos recentes, como este e outros trabalhos de Rodrigues e demais diretores daquele país que continuam ignorados por aqui. Mas há alternativas: vale procurar Aquele querido mês de agosto, road movie embalado por sucessos do cancioneiro brega, ou conferir, nos cinemas, Tabu, um dos mais aplaudidos do último Festival do Rio. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Eu era assim... fiquei assim

Uma das futilidades mais comentadas nas últimas semanas foi a decisão da atriz Marina Ruy Barbosa de não raspar suas madeixas ruivas, como exigia sua personagem na novela das 21h da TV Globo. Na trama, ela interpreta uma jovem que tem câncer e iniciaria o processo de quimioterapia, o que explicava tal sacrifício. Fontes ligadas à atriz dizem que ela teve crises histéricas de choro e insônia nos dias que antecederiam o corte. O episódio motivou debates no meio artístico sobre até que ponto um intérprete pode ou deve ir em nome da arte, deve ou não deve aceitar passar por mudanças corporais extremas para compor um personagem ou para se adequar a um papel, se assim lhe for determinado.

Ficou famosa a imagem de outra atriz, Carolina Dieckman, pelando sua vasta cabeleira na novela Laços de família, alguns anos atrás; foi um sacrifício feito em nome de seu trabalho e também de uma causa - na ocasião, o autor da trama, Manoel Carlos, quis sensibilizar a opinião pública para a importância de doação de medula óssea nos casos de tratamento contra a leucemia. Mas é claro que, para uma mulher, raspar a cabeça pode ser muito traumático, dadas as variáveis envolvidas no ato (a parte estética, a vaidade, o sex appeal etc.). E, como qualquer outra profissão, a de ator/atriz não está imune a riscos. Mas cabelo cresce novamente depois de rapado. No caso atual, pesaram certamente a pouca idade da atriz, sua inexperiência e até o fato de sua personagem ser secundária, o que não justificaria tal excesso. Mas não vou me alongar no mérito da questão.

Fiquei pensando em outros exemplos de astros e estrelas do cinema que aceitaram se submeter a mudanças radicais em seu visual pela necessidade de construção de um personagem. Em alguns casos, as transformações foram fruto de pesada e trabalhosa maquiagem, o que não diminui o sacrifício, se pensarmos nas horas em que ela demorava a ficar pronta e perfeita. Tudo pode ter sido sofrido, mas, de alguma forma, os que se dispuseram aos sacrifícios entraram para a história.

O TOURO INDOMÁVEL - O caso mais lembrado. Robert De Niro precisou engordar, emagrecer e novamente engordar 30 quilos para personificar a balança existencial vivida pelo boxeador Jake LaMotta, nesta que é apontada por muitos como a obra-prima de Martin Scorsese. A montanha russa da balança rendeu um Oscar para o ator e ajudou a mitificar o filme, eleito um dos dez melhores de todos os tempos em várias listas especializadas.

NÁUFRAGO - Parecido com O touro indomável. As filmagens tiveram de ser interrompidas durante um ano e meio para que Tom Hanks, no papel-título, emagrecesse também cerca de 30 quilos e conferisse veracidade ao personagem. Mas o esforço não sensibilizou a Academia, que em 2001 preferiu premiar Russel Crowe como Melhor Ator por Gladiador.

O DIÁRIO DE BRIDGET JONES - Engordar pode ser tão assustador para uma mulher quanto raspar suas melenas. Que o diga Renée Zellweger, até então uma coadjuvante sem muito brilho e que, graças aos muitos quilinhos a mais do papel, acabou alçada à condição de estrela. O sacrifício lhe rendeu uma indicação ao Oscar e a visibilidade necessária para se tornar uma estrela.

O OPERÁRIO - Christian Bale ganhou o Oscar em 2011, mas já merecia o prêmio desde 2004, quando interpretou um operário industrial assombrado por pesadelos que lhe tiravam o sono e a saúde, tanto mental quanto física. Seu emagrecimento na tela é assustadoramente real.   
QUERO SER JOHN MALKOVICH - Repare na esposa feiosa de John Cusack neste louco filme dirigido por Spike Jonze e diga se é possível enxergar Cameron Diaz ali. Um cuidadoso trabalho de maquiagem escondeu tão bem a atriz que muitos consideraram injustiça que o trabalho não tenha sido indicado ao Oscar da categoria.

O HOMEM ELEFANTE - Um dos filmes mais "normais" de David Lynch. A história real de John Merrick, que sofreu todos os preconceitos na Inglaterra Vitoriana por conta de sua deformidade facial. Como protagonista, John Hurt emociona debaixo da maquiagem, que levava quatro horas para ficar pronta, mas não foi premiada porque, na época, não existia o Oscar da categoria. Graças a este filme, ele passou a ser concedido a partir do ano seguinte. Mas a injustiça já estava feita.

DICK TRACY - Outro notável trabalho de caracterização. A aguardada (e, para muitos, frustrante) adaptação do famoso detetive dos quadrinhos criado por Chester Gould nos anos 30 conta com a participação de muita gente famosa irreconhecível graças à maquiagem, que, é claro, saiu vencedora do Oscar. Tente encontrar Dustin Hoffman e Al Pacino entre os vilões.

OLGA - O cinema brasileiro tem um bom exemplo de transformação radical requerida para a composição de personagem. No caso, a cabeça raspada da revolucionária Olga Benário rendeu elogios à coragem de Camila Morgado - mas o papel exigia, ora! O filme divide opiniões, mas todos reconhecem o bom trabalho da atriz. Em entrevista recente, Camila afirmou que não faria tal sacrifício novamente. 

AS BRANQUELAS - Outro prodígio da maquiagem, que conseguiu transformar os irmãos negros Marlon e Shawn Wayans nas duas patricinhas que o título indica. Mas o ótimo trabalho foi esquecido pela Academia, que sequer o indicou entre os finalistas da categoria.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Confissões de um seriemaníaco - VII

MUNDO AMISH - ROMPENDO AS REGRAS

Onde e quando: Discovery Travel & Living, quarta, 21h; quinta, 2h e 11h; domingo, 14h; quarta, 16h.
Elenco: Não profissionais (Abe, Jeremiah, Kate, Sabrina e Rebecca).
Sinopse: Quatro jovens amish e uma garota menonita saem de suas respectivas comunidades e vão para Nova York, conhecer e experimentar um mundo que lhes é estranho.


Comentários: Não costumo acompanhar reality shows, mas este me interessou por trazer um elemento de choque cultural que pareceu, no mínimo, diferente. Certamente vocês já devem ter ouvido falar dos amish, uma comunidade religiosa extremamente conservadora, originária da Alemanha, que emigrou para os Estados Unidos no século XVIII e se estabeleceu em algumas cidades do interior (aqui são Lancaster e Punxsutawney, ambas na Pensilvânia). Tornaram-se mais conhecidos graças ao filme A testemunha (1985), de Peter Weir, quase inteiramente rodado entre eles. Os amish mantêm um rígido código moral de usos e costumes, por exemplo: não dirigem carros, não usam eletricidade, não ouvem rádio, ou seja, vivem como quando se estabeleceram em solo norte-americano, sem conhecerem ou utilizarem as facilidades tecnológicas, como celular e internet, e outras não tão novas, como televisão ou geladeira! Logo no primeiro episódio, uma das garotas justifica o conservadorismo do grupo, explicando: "Essa é a maneira que nós temos de nos mantermos a salvo da maldade e da degradação do mundo." Já os menonitas, dissidentes dos amish na essência da comunidade, formam um grupo mais aberto, dirigem e consomem bebidas alcoólicas, mas também guardam características restritivas. O programa começa quando um grupo formado por dois casais amish e mais uma garota menonita rumam para Nova York, mesmo sabendo que ficarão discriminados em suas cidades. O choque já começa na chegada, quando pegam um táxi pela primeira vez, e continua quando saem para dar uma volta pela cidade, conhecem as lojas, compram óculos escuros em um camelô (a religião condena o uso, é um incentivo à vaidade), fazem compras em um mercado (o que, entre os amish, é atribuição exclusiva feminina). Claro que acabam sendo ridicularizados e chamados de pioneiros, e há momentos constrangedores, quando são fotografados pelos habitantes da metrópole, como se fossem atração de circo, o que mostra como o ser humano pode sempre ser deprimente. O interesse maior é ver como, independente da crença que professam e dos costumes que seguem, os jovens têm os mesmos sonhos, os mesmos anseios consumistas. Uma das meninas quer ser modelo; outra quer experimentar uma calça jeans; um dos rapazes faz planos de sair pela noite e paquerar garotas locais. Como em todo reality show, há aqueles momentos em que eles se confessam para a câmera, e é evidente que surgirão conflitos ao longo da série. Mas não há paredões, nem eliminação, nem a proposta é de que haja vencedores ou vencidos, e sim, justamente, que todos os participantes ganhem um enriquecimento cultural e pessoal ao fim da jornada. No fundo, é um divertimento familiar sadio e inofensivo.



Por que ver: Pelo aspecto documental da série, cujo foco é mostrar o choque cultural e passar informações sobre a comunidade amish, naturalmente muito fechada. Ou seja, raro caso de reality show que tem o que dizer e passar ao público.
Por que não ver: Só passa dublado (!) e os horários das reprises são ruins. Por ser um reality, só funciona se o espectador simpatizar com algum dos participantes, o que pode não ser muito fácil. E fãs desse tipo de programa vão estranhar a falta de conflitos mais intensos e podem rejeitá-lo inteiramente.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Irmãos coragem

Três irmãos de sangue (2005)
Em 1992, a chamada Geração Cara-Pintada tomou as ruas do país em uma série de manifestações populares, semelhantes às que se observam hoje. Conclamava-se pelo fim da corrupção que campeava no Governo Federal e visava especialmente o então presidente Fernando Collor de Mello. A profusão de protestos deu resultado e, em setembro daquele ano, Collor foi destituído da presidência por impeachment, caso inédito na história da República. Passados 21 anos, o clamor popular está de volta, agora pleiteando a melhoria dos serviços públicos e transparência nas esferas políticas.

Embora a essência da gritaria seja a mesma, é inegável que há diferenças, algumas brutais, em relação aos dois momentos. Naquela época não havia internet nem celular, ou seja, organizar manifestações e reunir um grande contingente de pessoas era bem mais complicado. Os estudantes se juntavam na base do boca a boca, "no braço", sem as facilidades tecnológicas desse começo de século XXI. Também não lembro se havia arruaceiros infiltrados ou bandeiras políticas tentando tirar uma casquinha da simpatia da causa. O maior diferencial, contudo, parece-me ser de liderança. Na época, ressaltou um jovem de 20 e poucos anos, Lindbergh Farias, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), como a voz que se levantava pela justiça e a igualdade. Identificava-se com os protestantes, era carismático e representava o anseio por mudanças (depois, como todos sabem, se meteu na política, virou deputado, até ser acusado de praticar os mesmos golpes contra os quais lutava, ou seja, virou uma "laranja mecânica", mas não é assim com todo mundo?). Também muito se falou que os jovens foram fortemente influenciados pela minissérie Anos rebeldes, apresentada pela TV Globo, que mostrava a luta dos universitários contra a ditadura militar nos conturbados anos 60, entre uma paixonite e outra. 

Hoje, na vida pública nacional, não há nenhuma figura que transmita a imagem de retidão moral, de perseverança e honestidade necessárias para inflamar o povo a se espelhar nela. Ou, se há, ela se mantém na sombra, talvez temendo se comprometer com alguma causa, ainda que elogiável. Falta um exemplo. Nesse vácuo, resta resgatar figuras de vulto no cenário cultural brasileiro, que, mesmo não saindo empunhando faixas ou cartazes, deixaram um legado de combate que merece ser seguido. Como o dos três irmãos de sangue enfocados pelo documentário homônimo. O filme não é novo, foi lançado no Festival do Rio de 2006 e, embora muito bem-recebido pelo público, teve bilheteria abaixo do que deveria no circuito alternativo, fruto, certamente, do preconceito da platéia brasileira em assistir documentários. Mas merece ser conhecido, divulgado e recomendado.

Chico Mário, Henfil e Betinho: brasileiros exemplares.

O filme nem estava na minha programação inicial. Só entrou, de contrapeso, porque seria precedido do curta-metragem Encontro marcado com Fernando Sabino, que era meu grande interesse. Até pensei em voltar para casa depois, mas acabei ficando, o que configura um daqueles casos em que vemos algo sem muito interesse e terminamos agradavelmente surpreendidos. Três irmãos de sangue pode ser definido, sem erro, como um dos melhores documentários feitos no país nos últimos tempos. O título se refere ao sociólogo Betinho, ao cartunista Henfil e ao compositor Chico Mário, todos hemofílicos e que morreram de aids, vitimados por transfusões de sangue contaminado. Mas este fato que poderia servir de mote ao roteiro só é mencionado uma vez, em uma cena específica, e não é explorado, dispensando o sensacionalismo desnecessário. Mesmo porque o foco do filme é a vida e a obra dos três personagens, que foram, cada um em sua área de atuação, exemplos de brasileiros que nunca se omitiram diante das injustiças e, também dentro de suas especialidades, se empenharam por uma sociedade mais humana e igualitária. Além de serem igualmente geniais em suas respectivas habilidades.

Graúna: criação inesquecível.
O documentário é dividido em três partes: "Origem" (curiosidades da infância dos três, contadas pelas irmãs em depoimentos engraçados e onde há um momento de humor negro involuntário, quando visitam a casa funerária da família, ainda hoje em funcionamento), "Brasil" (a carreira deles em paralelo com a situação política nacional, inserindo suas realizações em um contexto histórico) e "Aids" (sobre os últimos dias de vida de cada um). Há inúmeros depoimentos e entrevistas de parentes, viúvas, filhos e netos, outros artistas (Aldir Blanc, Ziraldo, João Bosco), pessoas que conviveram com os irmãos, incluindo enfermeiros e fisioterapeutas, e muito material de arquivo – programas de televisão, entrevistas antigas, fotografias de família, registros em áudio de uma carta gravada por Betinho para a mãe quando estava no exílio etc. Se não traz nenhuma revelação bombástica nem joga luzes sobre qualquer fato desconhecido, o filme é direto ao ponto, não perde tempo com fofocas de bastidor (não se diz que Henfil era podólatra, por exemplo, que não serve aos propósitos do roteiro), bem conduzido, apesar da montagem meio caótica (mas que não chega a comprometer), sem nunca resvalar na pieguice que muitas vezes caracteriza esse tipo de trabalho.

Capa histórica feita por Siron Franco.
Claro que quem viveu o momento que o filme apresenta irá se identificar mais e poderá até chegar às lágrimas, sobretudo na cena mais emocionante, que mostra a volta de Betinho ao país em 1979, perdoado pela anistia, ainda no período da ditadura. Mas há muitas outras, que mereceram aplausos durante a projeção, como a entrevista que ele concede às emissoras de tevê durante o enterro de Henfil, criticando a falta de fiscalização nos bancos de sangue, num desabafo contra o descaso do poder público para com a população em geral. A cena final, embalada ao som de “Ressurreição”, música de Chico Mário, é belíssima e fecha com chave de ouro este bonito painel sobre algumas páginas de nossa história.

Enfim, o filme me pegou desprevenido e acabou se tornando uma ótima surpresa, confesso que não esperava muita coisa, cheguei mesmo a achar sua metragem de 103 minutos um pouco longa, mas vendo o filme achei até que foi curto, a vida dos três merecia um registro ainda mais abrangente. É desses documentários que dão vontade de assistir muitas outras vezes. Em um momento particularmente conturbado da vida brasileira, com tantas notícias diárias de escândalos políticos, falcatruas, roubalheiras de todo tipo, com tanto descaso e tantas mazelas institucionalizadas, e quando o povo parece começar a acordar para cobrar seus direitos, o filme chega a ser um bálsamo, um alento, para que ainda possamos acreditar em mudanças e para que nos lembremos de que enquanto existirem brasileiros como os três irmãos, ainda é possível manter acesa a chama de nossa indignação e da mudança. Obrigatório.