quinta-feira, 28 de março de 2013

No escurinho da Semana Santa


Antigamente, a Semana Santa era uma data que chamava ao recolhimento e à reflexão. Os cristãos aproveitavam a oportunidade para se encerrarem em retiros espirituais enquanto se mantinham longe dos diversos prazeres mundanos. É claro que a essência da Semana Santa se desvirtuou e hoje ela é apenas mais um feriadão que as pessoas aguardam com ansiedade para poderem desfrutar de quatro dias de sol, mar e chocolate. Mas há outra tradição relacionada à data que se mantém ao longo dos anos. Nessa época os canais de TV sempre exibem algum filme sobre a vida de Cristo ou que tenha alguma relação com as histórias bíblicas. As locadoras estão abarrotadas de ótimas opções, mas vale destacar algumas, para quem quiser curtir o feriado prestigiando a Sétima Arte, entre uma oração e um pedaço do ovo da Páscoa.

BEN HUR - Não trata diretamente da vida de Cristo, mas a Semana Santa é um período perfeito para conhecer ou rever este que é um dos grandes filmes de todos os tempos, clássico absoluto, detentor de 11 Oscars. Épico em todos os sentidos da palavra. A famosa seqüência da corrida de bigas envolveu mais de 8.000 figurantes e levou 94 dias para ser rodada. Hoje seria facilmente refeita em computador, o que torna o resultado visto aqui ainda mais impressionante.

A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO - Uma das obras-primas menos lembradas de Martin Scorsese, este filme ficou marcado pela polêmica à época de seu lançamento, no final da década de 80. Condenada pela Igreja Católica, que não gostou de ver as dúvidas existenciais de um Cristo inseguro de sua missão, a fita foi alvo de boicote em vários países ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde foram registrados piquetes nas portas dos cinemas que a exibiam. Mas o filme nada tem de blasfemo nem trata a figura de Cristo com o propalado desrespeito, ao contrário, é sempre reverente. Mas Scorsese colheu mais louros que espinhos, e por este trabalho recebeu sua segunda indicação ao Oscar.

A PAIXÃO DE CRISTO - Nunca se viu uma historia sobre Jesus contada com tanto sangue e violência quanto nessa igualmente polêmica (mas por outras razões) versão de Mel Gibson. O diretor se defendeu, alegando que estava sendo o mais fiel possível às escrituras, segundo as quais Cristo teria sofrido barbaridades de fato. Porem, o que se vê na tela é um exercício de sadomasoquismo exagerado e apelativo. Campeão mundial de críticas negativas, mesmo assim bateu recordes de bilheteria e foi agraciado com três indicações ao Oscar, uma delas inexplicável, para a maquiagem, que é visivelmente deficiente. Saiu depois em uma caprichada edição dupla em DVD.

JESUS DE MONTREAL - Um pouco diferente dos demais por não apresentar uma encenação tradicional da história de Cristo. Neste filme do futuramente premiado canadense Dennis Arcand (de As invasões bárbaras), uma trupe teatral encena a vida do Messias e passa a enfrentar sérios problemas quando o diretor surta. O terço final do filme, em que a trupe encena a vida de Cristo pelas ruas de Montreal, é um dos pontos altos da narrativa.

A MAIOR HISTÓRIA DE TODOS OS TEMPOS - Há pelo menos três filmes com o mesmo título ou subtítulo no mercado nacional. Este aqui é a superprodução dirigida por George Stevens em 1965, quando Hollywood se esmerava em produzir espetáculos visuais sérios, voltados a uma platéia mais adulta, sem as parafernálias técnicas que hoje entretém o público mas disfarçam a fragilidade de sua realização. Custou 20 milhões de dólares, uma quantia espantosa na época, e recebeu cinco indicações ao Oscar (mas perdeu em todas). No numeroso elenco, destaque para Max Von Sydow e Carroll Baker.

GOSPEL ROAD - A STORY OF JESUS - É no mínimo uma grande curiosidade ver essa versão da vida de Cristo narrada pelo cantor Johnny Cash, quando ele estava em sua "fase negra". Também produtor e roteirista, Cash vai contando passagens bem conhecidas da história bíblica, como o julgamento da adúltera, a tentação no deserto, as criancinhas, até chegar logicamente à crucificação. Ele alterna o texto declamado com algumas canções de inspiração religiosa, muitas de sua autoria, enquanto atores desconhecidos representam dramaticamente os momentos em questão. O próprio diretor do projeto, Robert Elfstrom, interpreta Jesus, e June Cash faz Maria Madalena - é dela, aliás, o melhor momento musical, entoando "Follow me". Filmado em locações autênticas em Israel, tem belas imagens, mas um hibridismo de gêneros que gera resultado insatisfatório: não conta uma história de forma tradicional, não funciona como documentário, nem é bem um musical. Mas é sempre respeitoso e reverente à figura de Cristo. Fãs de Cash e católicos fervorosos, porém, vão gostar bastante.

A VIDA DE BRIAN - Um dos grandes momentos do grupo Monty Python, embora não seja o meu favorito deles. Os três reis magos erram o caminho para a manjedoura e, sem querer, vão parar na casa de Brian, que nasce no mesmo dia e na mesma hora que Jesus Cristo. Ao longo da vida, ele será constantemente confundido com o Criador. Os cristãos mais radicais não gostam dessa versão bem-humorada e a acusam de ser blasfema, mas a verdade é que em momento algum a figura de Cristo é ridicularizada, muito ao contrário. A graça é justamente acompanhar as peripécias por que passa o pobre do Brian.

MARIA - Delírio de Abel Ferrara sobre uma atriz de televisão que interpreta o papel da Virgem Maria e passa a confundir ficção e realidade. Variação de um tema já explorado outras vezes, com resultado confuso, passou quase em branco nos cinemas e nem chegou a causar tanta polêmica. Mais uma boa presença de Juliette Binoche, conferindo dignidade ao papel título.

JE VOUS SALUE, MARIE - Essa provocação de Jean Luc Godard também foi proibida no Brasil por ordem expressa do então presidente José Sarney (que depois voltou atrás e retirou o veto). Como sempre, o diretor francês abusa de metáforas e simbologias para contar a história, em que Maria e José são trabalhadores comuns (ela jogadora de basquete, ele taxista) e cujo filho é uma criança comum, sem qualquer dom espiritual especial. A edição em DVD, curiosamente, não traz o curta-metragem que acompanhava o filme quando lançado em VHS.

O MANTO SAGRADO - Outra produção classe A, dos tempos em que Hollywood gastava mais dinheiro com idéias do que com efeitos especiais e tecnologia 3D. Uma visão diferente da vida de Cristo, a partir da história do Santo Sudário e sua guarda por um escravo romano até ser usado para cobrir o corpo do Salvador crucificado. Indicado a cinco Oscars, incluindo melhor filme, ganhou os de Figurinos e Direção de Arte.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Doce transgressão

Sweet movie (1974)
A primeira impressão é a que fica, diz a sabedoria popular. Isso vale também para o cinema. Quando descobri este Sweet movie, o efeito que teve sobre mim foi tão impactante que até hoje, cerca de 10 anos após tê-lo visto pela primeira e única vez, me lembro de quase todas as suas cenas, alguns diálogos e até algumas musiquinhas entoadas ao longo do filme. Uma impressão inicial que justificou as cinco estrelas que conferi a ele e que traduz muito bem a expressão "experiência cinematográfica” que uso de vez em quando. Posso dizer que ninguém sai ileso depois de assisti-lo, ainda que por duas vias clássicas: ou se ama, ou se odeia.

Dirigido em 1974 por Dusan Makavejev, que mais tarde faria Montenegro - pérolas e porcos, o filme é uma lenda. Anos antes de descobri-lo, lembro de ter lido uma nota rápida em um jornal a respeito do festival de escatologia e absurdos que permeiam a trama. Acontece que o filme nunca havia sido lançado no Brasil até então, o que só aguçou minha curiosidade. Em 2004, saiu em DVD, em uma edição bem limitada por uma distribuidora pequena e já falida, MovieStar, o que me tornou possível tomar conhecimento dessa obra tão controvertida. As polêmicas de fato fazem sentido. Ainda que se aproxime seu quadragésimo aniversário e o mundo tenha mudado bastante, o filme ainda choca, de verdade, embora há quem o ache datado.

O barco: delírio flutuante.
Simplificando ao máximo, a história se passa em 1984 e acompanha duas mulheres: uma jovem, eleita Miss Mundo, e a comandante de um navio de açúcar que atrai os homens com suas idéias revolucionárias e suas canções de guerra. As duas histórias se completam, mas não se cruzam; o conjunto de idéias expostas nos dois segmentos é que faz a unidade do filme. Bom, mas este é só um resumo altamente bem-comportado e que não indica nada. Fácil dizer que na época de seu lançamento, o filme era provavelmente a mais violenta mensagem libertária e anti-inconformista que o cinema já ousara propagar, e tenho para mim que ele manteve seu vigor mesmo após tantos anos. Makavejev, um dos grandes nomes do cinema eslavo, quebra todas as regras existentes, em todos os sentidos. A narrativa é fragmentada, mas bastante compreensível, alegórica, toda envolta em uma infinidade de metáforas e manifestações surreais, nas quais reside muito de sua força. Há basicamente três molas-mestras no filme: sexo, comida e poder. Estes três elementos estão intrinsecamente ligados, e é preciso compreender a profunda ligação existente entre eles, bem como seus significados em um contexto simbólico, para compreender as engrenagens da história. Há toda uma leitura psicanalítica por trás dos excessos. Nada é gratuito, ainda que por vezes as situações possam soar forçadas, sem sentido. Tudo tem uma explicação, camuflada em um complexo jogo de simbolismos e ironias.

O filme é tecnicamente irretocável, desde a inusitada trilha sonora (uma característica dos filmes eslavos, a música é sempre muito alegre, vibrante, dando apoio preciso às cenas) até os detalhes da decoração do navio comandado pela solitária guerrilheira. A criatividade de algumas soluções combina-se adequadamente com a poesia fatalista e melancólica de outras, como em dois momentos antológicos: a mulher embutida dentro da mala e a sedução das crianças pela guerrilheira ao som de música clássica. Cinema em estado puro. Apesar da genialidade de tais seqüências, elas terminam por se constituir em momentos isolados dentro do turbilhão de excessos sexuais e escatológicos que surgem na maior parte do tempo.

Esse delírio visual de Makavejev poderia ser classificado como um “pornô político-escatológico”. Há nudez total e frontal de atores e atrizes, freqüente e abundante. Mas vale o lembrete: o sexo apresentado é destituído de qualquer erotismo. Ao contrário. Não acho que seja fácil ficar excitado com o que se vê na tela, principalmente se levarmos em conta o que foi dito mais atrás, ou seja, a alegoria e o simbolismo das representações suplantam em profundidade as conotações eróticas que a história possa conter. O sexo é usado como arma poderosa no combate à uma sociedade capitalista e acomodada com situações estabelecidas e aceitas em nome de uma pretensa “normalidade” (repare na letra da segunda canção, que cita as alegrias da vida).

Sexo e chocolate: prazer de um e de outro.
Este combate alcança seu momento crucial na longa seqüência do jantar, cerca de 20 minutos ininterruptos, quase no fim do filme. Não dá para descrever para não diminuir o choque, mas, a menos que minha memória me traia, não lembro de ter visto nada parecido no cinema, descontando, obviamente, as bobagens sanguinolentas etiquetadas como "terror" de hoje em dia. Na verdade, encontro um paralelo semelhante no banquete de A comilança, do Marco Ferreri. Mas este aqui supera o delírio gastronômico daquele filme. É uma passagem especialmente perturbadora, insana, doentia, que pode levar os espectadores mais sensíveis a desligarem o aparelho. Não há concessão: ela incomoda, provoca, testa todos os nossos limites. Quem suportar, porém, compreenderá todas as questões propostas pelo filme e entenderá o motivo de tanta polêmica. Saberá também porque o filme virou objeto de culto para um certo tipo de platéia.

Apesar da ironia do título, o filme nada tem de doce ou agradável. E pode mesmo ser amargo ou difícil para muitos espectadores. No entanto, assisti-lo é, de fato, viver uma dessas experiências únicas que o cinema nos proporciona. Abra sua guarda e prove Sweet movie. Pode ser uma delícia.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Animais urbanos

A dama enjaulada (1964)

Eu tenho claustrofobia. Em sentido restrito, isso quer dizer que não uso elevadores. Abro exceção para o do prédio onde moro, creio que mais por hábito e, ironicamente, por ser daqueles antigos, de grade (o nome correto do sistema é porta pantográfica). Os elevadores modernos podem ser teoricamente mais seguros, mas não há quem me faça entrar naquelas caixas de aço, verdadeiras arapucas hermeticamente fechadas. Então, qualquer filme que use um elevador enguiçado como cenário já me causa arrepios antes mesmo de assisti-lo. Ainda que seja um doméstico, usado para locomoção interna. Pois é essa a idéia inicial de A dama enjaulada, um dos mais absorventes exercícios de suspense que já vi, e não exatamente pelo ponto de partida. Toda sua realização é notável.

A velha senhora Hillyard tem dificuldades para se locomover por conta de uma recente operação na bacia. Assim, é por meio de um pequeno elevador que sobe e desce as escadas de sua mansão. Em uma bela e quente manhã, o maquinário para de funcionar por conta de um curto-circuito. Ela aciona a campainha de alarme externo, mas só consegue chamar a atenção de um vagabundo que passa pela rua na hora. Ele descobre um mundo de riquezas, leva alguns objetos e retorna com a amiga prostituta. A ação da dupla é acompanhada por três delinqüentes, fugidos de um reformatório, que invadem  o local e promovem uma desconcertante espiral de torturas e violência. Primeiro enjaulada por entre as grades do elevador, e depois imobilizada pela altura, Mrs. Hillyard assiste a tudo angustiada pela inércia, sabendo que suas horas podem estar contadas.

Mrs. Hillyard (Olivia de Havilland): madame passarinho.
Há inúmeras qualidades no filme, a começar pelos ótimos créditos de abertura, que parecem ter sido inspirados por Saul Bass, dos clássicos de Hitchcock, justapondo-se a imagens de um exterior radiante de luz amparadas por uma trilha sonora climática. A direção de arte do veterano Hal Pereira (em dupla com Rudolph Sternard) faz da mansão quase um personagem à parte - na verdade, o único ambiente mais explorado é a sala, em que ocorre a maioria das ações. O roteiro é uma obra-prima de ousadia e foi escrito por Luther Davis (de O mercador de ilusões, 1947, com Clark Gable e Deborah Kerr, alguns episódios da série Combate), também produtor, que conjuga doses iguais de suspense e sátira social. A direção é de Walter Grauman, de larga experiência em telesséries (Os intocáveis, Steve Canyon, Barnaby Jones, mas que fez pouco cinema e nada notável na carreira, este foi seu ponto alto), que arranca desempenhos memoráveis de todo o elenco.

Mas o grande mérito da fita é mesmo seu roteiro, de uma crueldade extrema e muito rara de ver, e que permite duas leituras distintas, porém convergentes em sua complementaridade. A primeira é que se trata de uma metáfora sobre a falência do capitalismo, cujo sistema estrutural é literalmente invadido e "destruído" pelas classes menos favorecidas. Assim, a opulenta Mrs. Hillyard, enquanto assiste impotente à devastação de sua propriedade por um bando de arruaceiros, representa toda uma classe dominante, literalmente engaiolada e indefesa diante da revolta dos bárbaros historicamente subjugados. Outra leitura possível aproxima o roteiro da alegoria imaginada por George Orwell em A revolução dos bichos, sustentada pela idéia central daquela obra: "Alguns animais são mais iguais do que outros." É nesse sentido que, mesmo enjaulada, vendo do alto a dilapidação de seu império sem ter como impedir, Mrs. Hillyard grita para um dos invasores: "Seus monstros! Vocês são animais!" E, de fato, o comportamento descontrolado dos três infratores serve para aproximá-los o tempo todo da animalidade, desvirtuando quaisquer traços humanos que possam carregar. De sua gaiola improvisada, a rica senhora tenta se manter, literalmente, vários níveis acima da escória, dos "animais", sem perceber que, naquela situação, ela é tão animalizada quanto qualquer um deles. A diferença é que ela, civilizada, domesticada, está "na jaula",  enquanto os "selvagens" ficam soltos, depredando seu território. Alguns são mais iguais por pertenceram a uma casta economicamente mais bem-aventurada. E se os "animais" da casta inferior resolvem se rebelar? Haverá salvação?

James Caan (dir.): jovens, loucos e marginais.
Este aspecto da animalidade é sublinhado pela indiferença com o que o mundo exterior percebe as ações ocorridas na casa: há um drama se desenrolando, mas ninguém liga, todos só querem saber de pegar a estrada e aproveitar o feriado dourado pelo sol. Mesmo quando a ação escapa para o quintal da casa, à vista de todos, pouco há de humanidade em quem se dispõe a assistir a cena. No fundo, somos todos animais, apenas socializáveis por força das convenções, que nos iguala e nos amansa. Nesse ponto, há uma terceira camada de compreensão do roteiro. Onde está a violência maior: dentro da casa, por meio de invasões e ameaças, ou fora, no "mundo real", frio e indiferente ao drama de um semelhante, onde cada um só vê o nariz reluzindo no horizonte, chamando a uma boa preguiça? O mundo é um lugar violento. E essa violência vista e sentida todos os dias talvez seja muito maior do que a vivenciada por nós, individualmente.

A veterana Olivia de Havilland, já detentora de dois Oscars, empresta uma natural veracidade à dama enjaulada. Contrapõe-se a ela o estreante em cinema James Caan, até então ator de séries de TV, que faz misérias como o líder do bando de delinqüentes, em composição assustadora. Completam o elenco com ótimas atuações Jennifer Billingsley, o dominicano Rafael Campos (como os outros marginais), Jeff Corey (o vagabundo que acaba sendo o alvo preferido do trio) e outra veterana, Ann Sothern, como a prostituta gorda.

A edição lançada em DVD pela Paramount Collection é lamentável e não traz sequer o trailer original como extra.

quinta-feira, 7 de março de 2013

50 tons de leitura

Cinqüenta tons de cinza (Intrínseca)

No texto "Os tons do erotismo", publicado aqui no ano passado, escrevi sobre o fenômeno editorial da Trilogia Cinqüenta Tons baseado em informações publicadas na imprensa, já que eu ainda não havia lido nenhum dos livros em questão. Na ocasião, admiti que um dia, quando não tivesse nada muito urgente para ler, poderia me dedicar à leitura da obra, para fundear uma opinião avalizada. E agora, depois de ter devorado as quase 500 páginas de Cinqüenta tons de cinza (ganhei um exemplar de presente nesse começo de ano), sinto-me à vontade para escrever com conhecimento de causa sobre a obra que ainda vem causando frisson no mercado editorial brasileiro, rendeu capas de revistas importantes, virou debate em programas de televisão de baixo nível... Enfim, tornou-se impossível ficar indiferente a ela.

É fácil saber porque o livro causou tanto alvoroço nos círculos e mídias sociais. A imprensa teve um papel significativo nesse processo, uma vez que preferiu destacar com estardalhaço o aspecto sadomasoquista da história e simplesmente esqueceu de descrever o livro no que e como ele é em essência: um romance como qualquer outro, apenas pontuado por cenas e descrições sexuais pouco ortodoxas. Que, na verdade, são em número muito menor do que se alardeou, ocupando no total pouco mais de 30 páginas. O resto é falação, papo furado para encher lingüiça (com trema mesmo, já falei, esse Acordinho ridículo que vá pro saco, no meu blog não!). Se não empolga em momento algum, também não chega a aborrecer, mas é preciso ter em mente que se trata de literatura popular, e, portanto, sem preocupação com estilo ou alta qualidade de escrita. É livro que atiça a curiosidade, e nisso já cumpre um papel admirável, o de fazer com que as pessoas leiam!

Até quem não leu o livro sabe de que trata a história. A jovem virgem Anastasia Steele, de 20 anos, acabou de se formar em Letras quando é designada pela amiga Kate Kavanagh para entrevistar um empresário multimilionário, Christian Grey (o jogo de palavras do título é justamente usar o sobrenome do ricaço, Grey, que se pronuncia "grey", como "cinza", no original). Por um desses inexplicáveis mistérios da alma humana, os dois se encantam mutuamente, sem que haja qualquer motivo real para isso, mas somente algum tempo depois irão se dar conta. Então, Grey, que tem a seu favor as facilidades que só muito dinheiro pode garantir, passa a perseguir Anastasia de todas as formas, inclusive aparecendo na loja de materiais de construção em que ela trabalha para comprar acessórios que usará como brinquedos eróticos (sic). Grey é o sonho de toda mulher: jovem (tem menos de 30 anos), dono de um vasto império empresarial, lindo, perfeito. Mas tem um defeito que se revelará com o tempo: tem uma estranha preferência sexual. Gosta de jogos de dominação, o que já transparece em sua obsessão por controle. De repente, Anastasia se vê arremessada em uma encruzilhada emocional: ao mesmo tempo em que assume seus confusos sentimentos por Grey, tenta fugir do universo de perversão e sugerida violência que ele aprecia.

Leitoras da série: é preciso ler para criticar.
Como E. L. James é fã confessa da "saga" Crepúsculo, é fácil perceber características semelhantes entre os personagens daquela e desta série. Anastasia Steele é uma versão adulta de Isabella Swann: muito branca, desengonçada, insegura, e extremamente tímida; nesse particular, aliás, chega a irritar a quantidade de vezes em que ela "enrubesce" ao longo da narrativa. Se Grey lhe dá um sorriso, ela enrubesce; se ela pensa em um contato físico mais íntimo, enrubesce; se a amiga com quem divide alojamento lhe faz uma pergunta mais incisiva, enrubesce; se abre a janela e vê o sol nascendo, enrubesce... Enquanto isso, Christian Grey faz às vezes de Edward Cullen: está sempre perto de Anastasia, aparece quando ela menos imagina, e a única diferença para seu similar vampírico é que ele não só deseja ardentemente sua presa, mas também concretiza seus instintos reprodutivos. Nesse quadro, caberia ao pobre fotógrafo José, amigo de Anastasia, o ingrato papel relegado ao lobinho Jacob, aquele que deseja a heroína em segredo mas não tem chances.

O maior problema de Cinqüenta tons de cinza é a construção de uma atmosfera narrativa que seja minimamente verossímil para conquistar o leitor mais exigente. As limitações da autora estão escancaradas a cada página. Ela não sabe expandir a galeria de situações que poderia render tramas paralelas interessantes, como um suposto romance entre Kate e Elliot, o irmão de Grey, que é forçado e muito mal apresentado. O foco no casal central torna-se cansativo pela própria estrutura do romance: Anastasia se debate entre o desejo de ser possuída e o medo do novo mundo que lhe é apresentado por Grey; entre um e outro, ela se entrega até de forma passiva e fácil demais para uma mocinha que passa a imagem de ser a ingenuidade em pessoa (e sempre enrubescendo por tudo e por nada). Os capítulos se alternam entre a concretização dos desejos e a dúvida atroz que atormenta a cabecinha da heroína. E é claro que há um mistério no passado de Christian Grey, que será, deduz-se, melhor explorado nos volumes seguintes da série, mistério esse que pode explicar seu comportamento e suas preferências.

Curiosamente, os dois aspectos mais polêmicos do livro me pareceram muito barulho por nada. As feministas queriam o fígado da autora por reproduzir em Anastasia Steele um modelo de comportamento feminino ultrapassado e hoje considerado até ofensivo, o da mulher submissa que espera o seu príncipe encantado. Bom, devo ter lido outro livro, porque não foi isso o que eu vi. Ao contrário, de submissa Anastasia nada tem, é uma garota do seu tempo, antenada com o ritmo de vida das jovens de hoje. Recém-formada, busca emprego (e consegue, meio da noite para o dia, em uma das editoras mais importantes do país), tem um carro, quer ser independente, ou seja, mais atual impossível. E não se entrega logo aos caprichos de Christian Grey, resiste, apaixonada sim, mas não se curvando, deixando clara sua posição naquele teatrinho que ele quer armar. Onde está a mulher antiquada nisso? Talvez no fato de se apaixonar, já que hoje as mulheres miram tanto em uma carreira profissional que deixam os assuntos do coração de lado. E a abordagem do sadomasoquismo e do BDSM, apontados como escandalosa pela crítica, é absolutamente inicial, a autora nem chega a se aprofundar no assunto. Há, sim, o tal contrato de submissão que Grey entrega a Anastasia, com as regras que ela deve seguir para ser sua escrava oficial, ao qual ela se recusa, por considerar abusivo. Ela também se aborrece com o fato de Grey lhe pagar roupas, lhe presentear com itens caros  - primeiro um laptop de última geração, depois um carro novo último tipo. Ou seja, recusa ser o troféu de uma conquista, recusa ser a mocinha incapaz de se virar por conta própria. Onde está a submissão feminina?

Autora e obra: sucesso editorial.
Que E. L. James escreve má literatura é evidente, e essa discussão não cabe aqui. Porém, há inúmeros outros exemplos de autores ruins, que escrevem até pior do que ela, e que seguem vendendo barbaridades nas livrarias, sem que ninguém os ataque com a mesma violência. Por acaso Nicholas Sparks é um virtuoso do romance? Ou será que todos gostam de seus livros porque são sexualmente assépticos? Pode-se gostar ou não de determinado livro ou autor; porém, condenar uma obra e seu criador simplesmente por ir de encontro ao que se convencionou chamar de senso comum, "agredindo" a moral de um público médio escravizado e lobotomizado por BBBs, novelinhas e espetáculos de selvageria vendidos como esporte, é sintoma de um pensamento fascista. Achei fraco, mas a parabenizo pela ousadia de discutir fantasias que muitos leitores devem ter, mas não têm coragem de assumir em público. Condenar a autora é querer, de certa forma, manter intocados certos tabus sociais, é fugir do debate.