quinta-feira, 30 de maio de 2013

Pastelão de sustos

Beco sem saída (2011)
Eu adoro pastel. De carne, queijo, frango, camarão, e até de chocolate. Não tem jeito: nenhuma dieta persiste quando me vejo diante dessa iguaria. Só não gosto de pastel de vento: não vejo graça na pura massa frita, sem recheio, sem gosto, autêntico pega-trouxa que sequer mata algum desejo. No cinema, também não me agradam os pastéis de vento, mesmo que, neste caso, ainda haja o reforço de imagens e sons atrativos, porque o sabor continua o mesmo: nulo.

Chamo pastel de vento àquele filme cheio de maneirismos técnicos, como divisão de tela, imagens caprichadas, ângulos inusitados, mas em que todo esse aparato está a serviço de nada, porque o roteiro não apresenta recursos dramatúrgicos necessários para sustentar a história. Em outras palavras: não é a narrativa que se vale dos efeitos visuais disponíveis, mas o contrário, ela vai sendo construída a partir das invencionices visuais imaginadas pelo diretor. Nesses casos, é como se ele estivesse muito preocupado em mostrar que é genial e pode ser inovador e se concentrasse mais no que acha que pode distingui-lo de outros do que na história que conta. Ou seja, todo forma e quase nenhum conteúdo. Tudo isso está presente neste Beco sem saída, que até mereceria atenção do espectador pela dupla raridade de sua natureza: trata-se de uma produção colombiana de terror, gênero pouquíssimo explorado pelos nossos vizinhos. Infelizmente, o diretor Antonio Trashorras preferiu estrear no cinema da mesma forma que a maioria de seus pares: querendo mostrar que descobriu a roda, só conseguiu se perder na pretensão.

O filme já começa todo estiloso, com um videoclipe cheio de grafismos psicodélicos, onde a bela atriz principal (Ana de Armas, cubana, também estreante na Sétima Arte) dança com caras, bocas e gestos sensuais. A música acaba e vemos que tudo era apenas um teste de cena que ela estava fazendo, não se sabe se para TV, cinema ou publicidade. Mais um pouco e descobrimos que nem atriz ela é, mas uma arrumadeira de hotel com pretensões artísticas. A história engrena depois que ela deixa o trabalho à noite e segue sozinha por uma rua escura e deserta - há clichês que nem os "novos gênios" conseguem superar. Antes de ir para casa, precisa parar em uma lavanderia, que fica nos fundos do prédio onde mora. É neste cenário desolador que se desenrola a trama, com a heroína fugindo de dois homens estranhos que rondam o local. Um deles pode ser um assassino que ataca nas redondezas.

De Armas a postos contra o terror.
Se Trashorras se contentasse em contar a história de maneira normal, até que Beco sem saída seria uma boa alternativa no gênero, tão desgastado e maltratado nos últimos anos, graças a uma virada do roteiro, também de sua autoria, verdadeiramente surpreendente. Mas na expectativa de fazer algo "diferente", ele perde a mão, inserindo vários recursos audiovisuais tão chamativos quanto desnecessários, como tela tripartida, apresentando diversos ângulos de uma mesma cena (mais uma esquecida opção de DVD que efeito narrativo) e uma câmera interna acompanhando a corrente sangüínea dos personagens. Resulta em um embelezamento estético no tratamento das imagens, mas aborrece o espectador porque a trama acaba ficando em segundo plano. Pena, já que o suspense existe e é mantido até a cena final. Desperdício de uma ótima idéia.

O nome mais conhecido do elenco é o da chilena Leonor Varela, que já foi Cleópatra, esteve em O alfaiate do Panamá e vários episódios da nova versão de Dallas, sem nunca melhorar como atriz. Ana de Armas é uma beleza e pode ter futuro, já que mostra certo esforço interpretativo. Ao final, quem termina no beco sem saída é o espectador, que se pergunta por que, afinal, quis ver este filme, e ainda sai com um gosto indigesto de um insosso pastel de vento.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Do além, com amor


Namorado gelado, coração quente! (1993)
Interessante como um filme pode mudar tanto no nosso conceito passados alguns anos depois de o assistirmos pela primeira vez. Alguns melhoram, mas chega a ser constrangedor percebermos como certos títulos que nos empolgaram outrora simplesmente não resistem a uma revisão.

Foi no ano de 2000 que descobri este Meu namorado é de morte na TV aberta. Na ocasião, dei quatro estrelas para ele, achei extremamente engraçado, criativo, cheio de referências. Por muito tempo figurou na minha lista de melhores filmes menos conhecidos. Guardei a experiência nos recônditos da memória e, como geralmente acontece, nunca o revi. Dia desses topei com uma reprise na TV a cabo e me aventurei enfim a conferi-lo de novo. Saí decepcionado e, mais ainda, intrigado: afinal, o que eu tinha visto ali?

A primeira surpresa foi saber que o filme tem outro título nacional, ao que parece, o oficial com o qual foi lançado em VHS e também exibido de vez em quando na TV a cabo: Namorado gelado, coração quente!, assim mesmo, com ponto de exclamação e tudo. A premissa é mais do que explorada pelo cinema norte-americano. Rapaz tímido e atrapalhado mantém uma paixão secreta pela menina mais bonita da turma, de quem, por coincidência, é vizinho desde criança, só que nunca teve coragem de se declarar. Quando se aproxima a noite do baile de formatura, ele pensa em convidá-la, e chega a armar um plano, com a ajuda do melhor amigo, para impressioná-la, e, assim, fazer com que ela desista de ir com seu namorado, o valentão da escola. Só que o plano dá errado e o mancebo morre. Ao chegar no céu, ele descobre que sua morte foi um engano e que terá uma segunda chance. Ele então volta ao mundo terreno disposto a conquistar sua amada. Com um detalhe: agora, ele é um morto-vivo.

O filme é apresentado como se o espectador estivesse lendo uma história em quadrinhos, com cenas desenhadas e alguns cortes simulando o virar das páginas, um recurso do qual, infelizmente, o diretor parece se esquecer na maior parte do tempo, não o utilizando com a freqüência imaginada. Não há preocupação de problematizar coisa alguma, é só uma bobagem adolescente que a gente vê e esquece (hoje eu digo isso, mas na época eu sairia indicando o filme para todo mundo!); forçando a barra, dá para enxergar uma mensagem romântica por trás da obviedade do roteiro, de que a força do amor é capaz de fazer superar tudo, até a morte. Mas não acho que algum espectador vá se interessar em perceber tal sutileza. Considerando o público-alvo para o qual é endereçado, no entanto, acaba sendo uma diversão inofensiva, sem muitas baixarias, embora traga algumas piadas mais grossas, como quando o herói percebe que seu corpo está apodrecendo e se desfazendo, e há as conseqüências imaginadas. Há boas tiradas de humor negro, como quando o rapaz reaparece na casa dos pais e todos o tratam como se estivesse tudo bem, mesmo sabendo que ele está morto! Ou ainda quando a mãe rouba corpos no cemitério e os guarda na geladeira para que o filho possa se alimentar. Amor de mãe não conhece limites mesmo.

O grande barato acaba sendo observar o começo de carreira de dois futuros astros. O namorado valentão da garota é interpretado por Matthew Fox, ele mesmo, o eterno Dr. Jack de Lost, série que, ao que parece, livrou o ator da condenação de repetir sempre o mesmo tipo de personagem bad boy. É sua estréia no cinema, em papel temporão (já estava com 27 anos!), após começar fazendo algumas participações em séries de TV. Como todo brucutu que se preza, é claro que ele tem um "capanga" mal-encarado para bater e fazer medo nos alunos menos populares da escola. A incumbência cabe a Philip Seymour Hoffman (sem o nome do meio nos créditos), futuramente consagrado pelo Oscar por Capote e reconhecido como um dos grandes intérpretes de sua geração. E não é que o seu físico parrudo poderia mesmo tê-lo condenado a personagens similares? Escapou graças ao talento.

Capote e Dr. Jack barbarizavam na juventude.
Já o casal protagonista não teve o mesmo sucesso. Andrew Lowery esteve em A cor da noite, do ano seguinte, e limitou-se a rodar telesséries sem maior importância, encerrando a carreira em 2003. Já a bela Traci Lind pode se orgulhar de ter um Wenders no currículo (O fim da violência, 1998) e nada mais. Também se aposentou um pouco mais tarde, em 2007. Ou seja, o romance entre a patricinha e o zumbi acabou em maldição!

A idéia original do filme foi praticamente reaproveitada no recente e horrível Meu namorado é um zumbi, lançado ano passado. Ao final, subtraí uma estrela da minha primeira qualificação (só não faço isso quando o filme recebe a cotação máxima) e fiquei pensando que já fui um cinéfilo muito mais aberto a surpresas. Deve ser uma conseqüência natural da idade. Ou vai ver eu é que estou ficando muito chato.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Um bom prato de risadas


A asa ou a coxa (1976)
Dizem que comédia não se discute: é mais gosto adquirido que outra coisa. Se alguém ri e gosta do que vê, por que criticar? Dizem também que se as cenas e as situações forem realmente engraçadas, dá até para perdoar alguma incoerência no roteiro. Claro que há comédias sofisticadas, com mensagens morais poderosas, mas a função inicial do gênero é fazer rir. Por isso gostei desse A asa ou a coxa, dirigida pelo francês Claude Zidi em 1976. Não é nenhuma obra-prima, não leva o espectador a grandes questionamentos, mas cumpre o que promete: diverte.

Os franceses não são reconhecidos exatamente pelo seu senso de humor, embora tenham legado um dos grandes mestres nessa arte, Jacques Tati e seu inesquecível Mr. Hulot, o ingênuo sonhador sempre às voltas com um mundo enlouquecido pelas transformações urbanísticas e tecnológicas. Mas, em termos culinários, há muito de que eles possam se orgulhar. A gastronomia francesa é das mais admiradas e apreciadas no mundo todo. E é na certeza de zelar por ela de alguma forma que Charles Duchemin (Louis de Funès) publica anualmente um guia com a classificação de todos os restaurantes de Paris. Suas opiniões são tão relevantes que ele acabou de ser eleito membro da prestigiosa Academia Francesa de Gastronomia, o equivalente culinário à nossa ABL. Para Duchemin, não tem discussão: comida é cor, sabor e prazer.

Charles Duchemin, um guardião da boa mesa.
Mas nem tudo é um saboroso ratatouille para Duchemin. Para sua indigestão, ele descobre que seu filho Gérard prefere trabalhar como palhaço de circo do que comandar panelas e caçarolas. Ao mesmo tempo, a rede de lanchonetes Tricatel chega a Paris disposta a se tornar a maior referência gastronômica do país. Duchemin agora terá de se  desdobrar em duas receitas. Superar o desgosto da descoberta paterna e impedir que a Tricatel se torne a preferida dos comensais francófonos.

Embora divertido, o roteiro de A asa ou a coxa pega no arranco, já que se apóia (já falei, nada de Acordinho por aqui) em uma premissa forçada para funcionar. A chegada de uma lanchonete a Paris não representa exatamente uma ameaça à culinária local. Trata-se apenas de diversificação alimentar, e quem gosta ou freqüenta os caros e sofisticados restaurantes franceses não irá deixar de fazê-lo para se empanturrar de hambúrguer e fritas. Assim, a revolta de Duchemin, no fundo, não tem razão de ser, mesmo que ele se proclame a voz mais lúcida na nobre arte da gastronomia. Mas, como escrevi no começo, tudo é perdoado se as piadas funcionam, e nesse ponto a mistura dá liga. O filme aposta em um humor ingênuo, meio circense, quase pastelão, mas sem ser bobo (e o mais importante, sem as baixarias que hoje são comuns em produções do gênero), para arrancar risadas do espectador, recorrendo a truques conhecidos do vaudeville, como uma cena no restaurante logo no começo. Outro momento que reforça esse aspecto é a seqüência da troca de malas nos quartos do hotel, talvez batida, mas muito eficaz. Há ainda um longo entrecho passado no hospital. São cenas e situações simples, mas que crescem com o auxílio da montagem dinâmica e ganham contorno com o ótimo uso da música picaresca.

Gérard e Duchemin: todos contra a Tricatel.
A presença mais curiosa do elenco é a de Michel Colucci (assinando-se apenas Coluche), um popular comediante parisiense que militou em diversas outras áreas do entretenimento, não se fixando apenas no cinema. Em 1968, ele conheceu o também ator e roteirista Romain Bouteille e juntos fundaram o Café de La Gare, um teatro que serviu de palco para o início de vários futuros astros franceses, entre eles Gérard Depardieu e Thierry Lermitte. Chegou a ser candidato à presidência em 1981. Morreu em 1986, em um acidente de moto, poucos meses após inscrever seu nome no Guiness, o livro dos recordes, justamente por realizar uma façanha que envolvia uma moto! Aqui ele faz o papel de Gérard, o filho rebelde do crítico gastronômico, o que naturalmente se explica por sua ligação com o universo circense. Fez outros papéis menores em diversos filmes, estrelou algumas produções de sucesso local, arriscou-se uma vez na direção em 1977 (a comédia de época Vous n'aurez pas l'Alsace et la Lorraine, inédita no Brasil, da qual também escreveu o roteiro e compôs uma das músicas da trilha sonora), mas nunca foi muito conhecido fora de lá, restringindo-se ao universo francês.

Não é possível afirmar, mas dá para supor que o roteiro contém uma crítica ácida e direta ao McDonald's, que havia transposto as fronteiras européias cinco anos antes, em 1971, estabelecendo-se inicialmente na Holanda e ganhando o continente a partir de lá. A gastronomia francesa, decantada e respeitada em todo o mundo, motivo de orgulho nacional, se via ameaçada pela comida "plastificada" servida nas lanchonetes, parecida com o que a rede Tricatel tenta empurrar aos consumidores locais. Ao que parece, Zidi também tomou a invasão ianque como uma ofensa a seu país.

O título se refere aos dois tipos de adereços que ornamentam a espada que complementa o traje usado na cerimônia de posse da Academia Francesa de Gastronomia, por um dos quais o membro deve optar. Se tanto a asa quanto a coxa do frango não suscitam grandes expectativas gustativas em termos gerais, o filme em si vale por uma refeição bem feita, temperada no ponto e que satisfaz plenamente a qualquer paladar. A ser degustado, de preferência acompanhado de um bom copo de vinho.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Os perdedores também amam

Dark horse (2012)

Eleito um dos 10 melhores filmes do ano passado pela revista Time, Dark horse foi esquecido na temporada de prêmios norte-americana e esnobado pelo circuito exibidor no Brasil, onde só passou no Festival do Rio. Uma injusta condenação ao ostracismo deste que é o retorno à boa forma do provocativo Todd Solondz após o escorregão de A vida durante a guerra.

Ele gosta de direcionar sua lente para o universo dos perdedores, dos incapacitados, expondo as entranhas de um sistema social incômodo porque contraria a idéia do sonho americano, em que todos são capazes e vitoriosos.  Os personagens de seus filmes são todos desajustados em alguma medida, criminosos morais, marginalizados por uma sociedade asséptica e que exclui os que de alguma forma insistem em não se alinhar à maioria. Sempre combinando a crítica impiedosa com humor negro, por vezes cruel, para aliviar. Mas, no fim, ri-se amarelo, com certa culpa, talvez porque todos nós, em algum grau, nos identifiquemos com a maioria "externa", justamente aquela que condena o que se vê na tela.

O perdedor da vez é Abe, um judeu de 35 anos que ainda mora com os pais. Ele é socialmente inadaptado, trabalha na empresa da família, mas nunca termina as tarefas que começa, não tem amigos, vida social ou maiores ambições. Seu mundo se resume a comprar brinquedos antigos em sites de leilões e colecionar objetos do universo nerd. Seu pai o despreza, mas ele conta com o apoio da mãe e com a ajuda da secretária da empresa (que assume as tarefas que ele deixa incompletas). Vive sem propósito e age sem sentido, à sombra do irmão médico e considerado o bem-sucedido da prole. Mas tem a chance de salvar sua vida da indigência completa ao conhecer Miranda, uma moça triste e calada. Ela não tem o menor interesse em estabelecer uma relação, mas Abe insiste. Será que a vida e o destino estarão dispostos a lhe dar uma chance? O filme é, assim, uma história de amor. Mas seu desfecho é adequado à coerência do roteiro.

O título ambíguo tanto pode se referir a um time de futebol americano quanto à famosa editora de quadrinhos independentes, a mesma que publica Hellboy e Sin City, entre outras. Em ambos os casos, denota a única interação social possível para Abe. Torcer por uma equipe de futebol o iguala a seus demais simpatizantes, dando-lhe, ainda que de forma inconsciente, a sensação de pertencimento, de se saber parte de um grupo. Já a editora é responsável pelas publicações que abarrotam suas estantes, ou seja, tem em Abe um fã fiel daqueles personagens, como milhares de leitores nos Estados Unidos e no resto do mundo. Assim, Abe confirma sua existência, ainda que de forma "invisível", generalizada.

Abe e Miranda: o beijo que salva é o mesmo que mata.
Solondz foi agraciado com uma atuação sublime de Jordan Gelber, um ator que eu não conhecia mas que já conta quase 30 títulos na carreira, sempre como coadjuvante. Esteve em O seqüestro do metrô 123, vários episódios de Law e order SVU, Boardwalk empire, entre outros. Esta é sua grande chance no cinema e ele soube aproveitá-la. É impossível não simpatizarmos com o personagem principal, graças à humanidade que ele imprime a Abe, um papel difícil que poderia facilmente cair na caricatura, mas ganha verdade e dignidade. Já Selma Blair, com seu eterno ar blasé e a conhecida apatia, não precisa se esforçar muito para traçar os contornos de Miranda. Christopher Walken e a sumida Mia Farrow encarnam os pais do protagonista. A excelente trilha sonora traduz em canções o estado de espírito de Abe, servindo também como comentários de uma mudança que o espectador torce para que aconteça.

Com Dark horse, Todd Solondz recupera o fôlego perturbador e irônico do começo de sua carreira, visto em Bem-vindo à casa de bonecas (1995) e Felicidade (1998). Vamos torcer para que entre em cartaz, ou, no mínimo, que alguma distribuidora se interesse em lançá-lo em DVD.

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Talvez ele não saiba, mas Seedorf conquistou o título mais importante de sua longa e vitoriosa carreira no último domingo. Ser campeão jogando pelo Milan, pelo Real Madri ou mesmo pelo Ajax, times ricos e geralmente recheados de grandes jogadores, é fácil. Difícil mesmo é ser campeão jogando pelo Botafogo, um time que parece fazer do fatalismo uma filosofia de vida. O valor intrínseco da taça levantada por ele no acanhado estádio de Volta Redonda é muito maior do que o belo caneco mundial da Fifa. Seedorf já pode se aposentar com a certeza do dever cumprido.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O dia que durou 20 anos

Um dia (2011)

Pergunte a um fã de Ulisses, a monumental obra escrita por James Joyce e publicada em 1922, o que ele fará no dia 16 de junho. Provavelmente ele irá a alguma celebração do Bloomsday, data festiva criada por aficionados do desafiador romance concebido pelo autor irlandês. É durante as 24 horas deste dia que flui a consciência do protagonista Leopold Bloom. Guardadas as devidas proporções de significância cultural, bem que um outro romance, mais atual, e muito menos ousado em termos lingüísticos, poderia ensejar festejos parecidos. Os entusiastas de Um dia, de David Nicholls, poderiam se reunir todos os anos, sempre no dia 15 de julho, para o, simplesmente, Oneday, seguindo a trilha de Emma Morley e Dexter Mayhew, os protagonistas da obra. O livro foi campeão de vendas à época de seu lançamento; já o filme, uma das melhores adaptações de obras literárias para o cinema, lançado no ano passado, dividiu opiniões.

Para quem ainda não conhece a história, eis o resumo. Tudo começa em 15 de julho de 1988, quando Emma e Dexter, dois jovens recém-formados, se excedem nas comemorações pelo diploma e acabam passando uma noite juntos. Eles não sabem se tornarão a se ver, já que em breve irão se mudar e enfrentar os dilemas da vida adulta, com as responsabilidades e problemas inerentes a este rito de passagem. Então, cada um segue seu rumo, mas, ao longo dos 20 anos seguintes, eles irão se reencontrar sempre no mesmo dia, sem perceber que aquilo que a princípio se desenhou como uma grande amizade vai, aos poucos, se transformando em outra coisa. Ou vai ver sempre esteve ali, mas nenhum deles percebia ou admitia.

Emma e Dexter: o amor aos 20 anos.
No caso, a vida não é o que acontece enquanto se faz planos, mas sim, o que não é contado nas páginas do livro e do que só ficamos sabendo pelos relatos dos dois. É assim que os personagens e suas trajetórias vão sendo construídos aos olhos do leitor, embora tal artifício, que funciona muito bem no romance, perca um pouco de força na adaptação. Emma é uma garota que sonha em fazer a diferença no mundo, enquanto Dexter prefere viver o momento, sem pensar nas conseqüências imediatas de suas decisões. Suas trajetórias sempre se cruzam, nos momentos mais díspares; eles entram e saem de variados empregos, conhecem outras pessoas, casam e separam. Ou seja, não é aquele romance tradicional, "derramado", mas uma história bastante plausível, que pode acontecer com muitos espectadores, o que garante fácil comunicação com o público.

Uma das grandes dificuldades de transpor um livro para o cinema, sobretudo quando se trata de obra famosa e muito querida por seus leitores, é manter a essência da história de forma a não frustrar os fãs. É sempre arriscado cortar certas passagens ou diminuir o impacto de algumas seqüências. No caso de Um dia, esse risco foi minimizado, já que foi o próprio Nicholls quem escreveu também o roteiro da adaptação. Ou seja, sabia o que tinha nas mãos e onde e no que mexer. Ele também não era nenhum novato no ofício, já havia escrito roteiros para várias telesséries e seu trabalho anterior foi o sensível Quando você viu seu pai pela última vez?. O resultado é uma adaptação bastante competente, enxuta, que mantém a força da história que se lê no papel, embora, repito, o recurso das elipses temporais funcione melhor no livro.

O amor é o mesmo, mas os cabelos... Quanta diferença!
Anne Hathaway, melhor aqui do que no posterior Os miseráveis, que lhe deu o Oscar, personifica a própria Emma, conferindo todas as nuances da personagem, da euforia sonhadora da juventude à leve amargura da idade adulta sempre com doçura e refinamento. Infelizmente, Jim Sturgess não acompanha, optando por uma atuação contida, quando o Dexter do livro é bem mais descontrolado. Patrícia Clarkson brilha como sua mãe, na única cena em que aparece.

No todo, Um dia é um filme agradável de ver, que mantém o foco do espectador, mesmo que ele não conheça o romance original. E o final novamente me arrancou lágrimas. No fundo, acaba sendo mesmo um pouco da história de cada um de nós. E os românticos do mundo já podem organizar o seu Oneday.