quarta-feira, 24 de junho de 2009

Refilmagens: quem precisa delas?

Refilmagens, de maneira geral, podem ser enquadradas em duas categorias: as que não devem ser feitas e as que não precisam ser feitas. No primeiro caso, temos os clássicos do cinema, produções cultuadas pelos cinéfilos e que, por suas próprias qualidades, dispensam versões modernizadas. Casos de Cantando na chuva (musicais estão fora de moda, e, além disso, não há, hoje, nenhum ator-cantor-dançarino como Gene Kelly, que sustente um papel daquele tipo – e, por favor, não me venham com Zac Efrom!), Casablanca (há alguns anos, houve uma ameaça de refilmagem, com Ben Affleck e Jennifer Lopez nos papéis que foram de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman!!!! – mas felizmente os autores da idéia recuperaram a sanidade antes de cometerem tamanho desatino), Cidadão Kane (qualquer comparação seria desfavorável à nova versão, por mais que tivesse qualidades – se tivesse), e mesmo produções mais recentes, como E.T. – o extraterrestre (Spielberg nunca consentiu, no que fez muito bem). Já na segunda categoria, temos casos de filmes que ganharam novas versões, mas perdem de goleada se comparados com o original. Aqui entra o Psicose de Gus Van Sant, que nem chega a ser tão mal produzido, mas é uma refilmagem absolutamente desnecessária. As novas gerações, que não conhecem Hitchcock, podem até se divertir, mas os que conhecem a história original, de 1960, dificilmente verão com simpatia esse exercício de direção feito sem propósito e sem motivo.

Mesmo fazendo certas ressalvas às refilmagens, é impossível não assisti-las, seja para tão somente criticar ou para estabelecer inevitáveis comparações com o original. Em alguns casos, é por meio das refilmagens que ficamos sabendo da existência de uma primeira versão – pouca gente sabe, mas o Ben Hur recordista de Oscars em 1960 é a nova versão de uma história já levada às telas nos anos 20, dirigida por Fred Niblo, e com o mítico Ramon Novarro dando vida ao mesmo personagem que Charlton Heston encarnaria quase quatro décadas depois. O próprio Hitchcock realizou uma refilmagem de si mesmo, com O homem que sabia demais, rodado originalmente por ele ainda em sua fase inglesa (1934) e posteriormente refeito em terras norte-americanas (1956). Muitos anos depois, o austríaco Michael Haneke usou do mesmo expediente.

Em 1997, Haneke chamou a atenção da comunidade cinéfila em todo o mundo com um assombroso filme de suspense, que, no Brasil, recebeu um título desagradável, Violência gratuita. Efusivamente saudado pela crítica, Haneke prosseguiu sua carreira na Europa, onde rodou outros projetos igualmente elogiados (Código desconhecido, A professora de piano, Caché). Não gostei de nenhum deles, à exceção deste último, realmente brilhante, com direito a uma das cenas mais perturbadoras do cinema recente. Convidado a trabalhar em Hollywood, Haneke, em vez de se arriscar em novos projetos, resolveu pisar em um terreno já conhecido. Assim, fez uma refilmagem praticamente quadro a quadro de seu filme de estréia. A pergunta que fica é: havia necessidade de se refazer a odisséia de brutalidade a que um casal, agora formado por Naomi Watts e Tim Roth, fica exposto?

O filme não é ruim. Tem suspense e tensão na medida certa, um roteiro enxuto, que não perde tempo com explicações (e nem precisa), cenografia despojada e absurdamente contrastante (ambientes perfeitamente imaculados que são, aos poucos, tingidos pelas cores da violência) e ausência de trilha sonora, marca do diretor, a não ser nos créditos iniciais e finais. A abertura, inclusive, faz lembrar um produto típico dos anos 70, com letras grandes ocupando a tela enquanto a família feliz ruma para sua casa de campo, evocando aqueles filmes de terror rural tão em voga na época. E Michael Pitt assustador como um dos psicopatas. Ou seja, tem qualidades. Só não sei se deveria ter vindo a lume. Confesso não ter mais paciência nem estômago para filmes que celebram a violência, ainda mais de forma tão cruel quanto este. E será que Haneke não poderia demonstrar sua suposta genialidade em terra ianque rodando uma idéia original? Isso veremos com o tempo. Por enquanto, ele só conseguiu preencher mais um espaço na imensa seara da falta de criatividade que assola Hollywood, que precisa requentar idéias para fazer a indústria seguir adiante.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Docs nacionais

Simonal – ninguém sabe o duro que dei

Este é considerado o melhor documentário brasileiro do ano e um dos melhores de todos os tempos. As novas gerações podem não saber quem foi ou desconhecer a obra de Wilson Simonal, mas quem viveu nos anos 60 irá se recordar com entusiasmo do suingue do cantor, do domínio que mantinha sobre a audiência de seus shows, sempre em apresentações contagiantes. Mas a festa acabou no dia em que o artista, por pura inocência, se disse protegido pelos militares, isso num tempo em que a ditadura ocupava os principais cargos de poder no país. Não é difícil entender a derrocada de sua carreira a partir de então. Muito bem editado, o filme reúne depoimentos de amigos, colegas de palco, gente que viveu no período e testemunhou a febre Simonal – Miéle, Chico Anísio, Nélson Motta, a crítica teatral Bárbara Heliodora (para quem a mãe de Simonal trabalhou como doméstica), entre outros. Pelé conta a história mais divertida, de quando o cantor treinou com a Seleção Brasileira nos preparativos da Copa de 1970 e achava que seria escalado no time principal! O documentário, produzido e dirigido por Calvito Leal, Micael Langer e Cláudio Manuel, não se presta apenas a ser uma festiva lembrança audiovisual de um artista: joga luzes sobre o caso e provoca um debate sobre o poder da imprensa na construção e demolição de mitos e personagens. Para quem não viveu naquele tempo e desconhecia quase que inteiramente a história e a carreira de Simonal, como eu, o filme cumpre o dever de toda boa produção do gênero: informa e leva à reflexão. Mas, no final, a dúvida que se impõe é porque ninguém defendeu Simonal naquela época, se todos sabiam que ele era inocente, se era tão bem-visto pelos colegas de profissão. Porque ninguém queria se comprometer? Ninguém queria ficar marcado também? Assim, o roteiro sai do plano meramente ilustrativo de um período e da vida particular de um artista e ganha uma discussão mais ampla, sobre a necessidade humana de se adequar a certas situações, mesmo que isso leve a conseqüências arrasadoras. E aqui não se trata de ficção.

Panair do Brasil

Filme sobre a maior companhia aérea brasileira, que operou soberana pelos céus de todo o mundo entre 1930 e 1965. Perseguida pelos militares, a Panair, um dos raros orgulhos brasileiros que alcançaram renome internacional, teve sua falência decretada por força de acordos políticos escusos, nunca satisfatoriamente explicados – caso único de empresa condenada à bancarrota mesmo estando com todas as suas contas em dia e seu patrimônio em constante crescimento. Há rápidos depoimentos de artistas que viajavam pela companhia e relembram com bastante saudade daqueles tempos, alguns curiosos, como o de Milton Nascimento, que conta que foi a bordo de um avião da Panair que tomou sua primeira garrafa de Coca-Cola, um dos luxos da época. Norma Bengell e o compositor Fernando Brandt também dão declarações, bem como alguns políticos. Mas a maior parte dos entrevistados é formada por ex-funcionários da empresa, antigos comandantes, aeromoças, gente ligada à Panair, que ainda hoje, mais de 40 anos após a suspensão (eles preferem usar este termo) dos serviços da companhia, ainda se reúne regularmente, formando uma grande família. Todos contam, com nítida emoção e boa dose de inconformismo, o que mudou em suas vidas após o golpe que os desempregou. A montagem esperta valoriza os depoimentos, sempre ilustrados por imagens de arquivo. Dois momentos particularmente emocionantes: a narração do poema Leilão do ar, de Carlos Drummond de Andrade, e Elis Regina interpretando “Conversando no bar”, em cuja letra Milton e Brandt prestam uma homenagem à Panair. Um dos bons documentários da nova safra, tem forte apelo nostálgico que tocará mais aos que viverem aquela época. Narração de Paulo Betti. Lançado em circuito pequeno, não foi descoberto pelo público nos cinemas.

Papão de 54

Registra um feito histórico no futebol do Rio Grande do Sul: o título invicto conquistado pelo hoje extinto Grêmio Recreativo Renner, naquele ano, superando os poderosos Grêmio e Internacional – este, derrotado em seus domínios, na época o Estádio dos Eucaliptos, por 1x3. Foi o único título conquistado pelo alvirrubro, formado por funcionários de uma fábrica de tecidos, que, por decisão empresarial, teve suas atividades encerradas apenas cinco anos depois. Narrado e apresentado pelo jornalista Ruy Carlos Osterman, o filme reúne muitos depoimentos de ex-jogadores, todos exaltando o espírito de equipe que servia como incentivo natural para as vitórias, um tipo de identificação entre jogadores e clube que hoje não existe mais. A maior curiosidade dentre os entrevistados é a presença de Breno Mello, que só alcançou grande brilho mesmo fora das quatro linhas: foi ele o protagonista de Orfeu negro, de Marcel Camus, Oscar de Filme Estrangeiro (eu sei que a expressão é errada, mas não consigo utilizar a outra com que a categoria é descrita por alguns críticos) em 1960, e que atuava pelo Fluminense na época das filmagens.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Serpico

Um jovem ingressa na academia de polícia e logo se depara com a corrupção existente no meio. Idealista, tenta combatê-la, mas passa a sofrer pressões de vários lados, até sofrer uma tentativa de assassinato. Não se trata da continuação de Tropa de elite nem é a sinopse de qualquer filme recente, mas de uma produção de 1973, Serpico, dirigida por Sidney Lumet e estrelada por Al Pacino. Mais de trinta anos depois, vemos que a situação descrita não só permanece nos dias de hoje, mas também ganhou contornos irrefreáveis.
O tema, claro, nada tem de novo nem de inventivo. Orson Welles já tratava do assunto nos anos 50, quando realizou o excepcional A marca da maldade. E o cinema sempre se ocupou dele ao longo dos anos. Então, este seria apenas mais um filme a abordar o assunto, não fosse o vigor de Lumet na condução da história e a entrega de Al Pacino no papel do incorruptível Frankie Serpico, um descendente de italianos que acredita na justiça e na função social da corporação que passa a integrar. Só que em pouco tempo ele descobre que as coisas não funcionam como se vislumbra. O meio policial é sujo, com dinheiro podre correndo nas delegacias, ligações escusas envolvendo delegados e traficantes, segredos que não devem ser revelados. A justiça plena é um objetivo impossível de alcançar.
Serpico é uma exceção entre seus colegas de farda, até pelo fato de agir à paisana quase na maior parte da história. É culto, estuda espanhol e gosta de literatura. Em momento algum abandona suas convicções, mesmo cercado de indiferença por todos os lados. Mantém-se firme aos seus princípios, ainda que sua dedicação ao trabalho honesto o conduza a um labirinto de armadilhas, gerando a antipatia dos colegas que, teoricamente, deveriam apoiá-lo em sua empreitada no combate ao crime. É o único que consegue ser autêntico em um universo onde todos fingem ser uma coisa, mas são outra. Em parte, por conveniência, como nos distritos policiais, em que é convencido por outros policiais a renunciar às apreensões efetuadas para creditar-lhes o sucesso na operação. Em parte, por incapacidade. Na engraçada seqüência da festa onde acompanha a namorada e conhece os amigos dela, todos se apresentam como representantes de uma elite intelectual – poetas, cineastas, artistas de modo geral – embora se virem profissionalmente em atividades modestas e longe da sugestão do sucesso pretendido. O contraste entre Serpico e o mundo que o cerca fica evidente. Ele é uma excrescência, um raio de solidez em um universo corrompido de ilusões e frustrações. Jamais se deixará abater.
A fotografia em tons sujos ajuda a realçar o clima sombrio e violento, contrastado e amenizado pela bela música de Mikis Theodorakis. O roteiro, de Waldo Salt e Norman Wexler, adapta com competência o romance homônimo escrito por Peter Maas, por sua vez inspirado em personagem real.
O filme rendeu a Al Pacino sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator (recebera uma no ano anterior, como coadjuvante, por O poderoso chefão, mas perdeu em ambas as ocasiões). Merecia maior reconhecimento da Academia. E também das distribuidoras nacionais: com tanto lixo sendo lançado regularmente nas locadoras, este clássico permanece inédito em DVD por aqui, embora já exista na região 1. O jeito é se contentar com a versão em VHS ou torcer por uma reprise na TV a cabo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

XXY

Rivalidades à parte, não há como negar que o cinema argentino, há muito tempo, vem produzindo filmes de alta qualidade, pelo menos em relação aos títulos que são lançados por aqui. E não são apenas nomes como Daniel Burmán ou Adolfo Aristarain que fazem o sucesso das películas portenhas mundo afora. A diretora Lucia Puenzo nos mostra, com este XXY, que é possível contar uma história difícil sem resvalar na grosseria.

Alex tem 15 anos e a cabeça cheia de todos os problemas e questionamentos típicos de sua idade. A eles, acresça-se outro ainda mais complicado: por ter nascido com características sexuais masculinas e femininas, não sabe em qual gênero se encaixa. Em uma tentativa de proteger a filha dos comentários maldosos e da curiosidade alheia, seus pais, Kraken e Suli, se mudam para uma região isolada na fronteira uruguaia. A situação começa a se complicar com a chegada de um casal amigo da família. O pai visitante, um médico especialista em cirurgia estética, se interessa pelo caso e se oferece para realizar a operação. Mas Kraken e Suli, movidos por uma crença religiosa, estão decididos: acreditam que aquela é a vontade de Deus e, portanto, qualquer intervenção no corpo de Alex será uma violência contra os desígnios divinos. Enquanto sua vida não se define, Alex começa a experimentar outra sensação conflituosa: um misto de afeição e rejeição pelo filho do médico, um rapaz de 16 anos. O menino desconhece toda a situação, e a cena em que Alex revela a ele sua condição é das mais tocantes do cinema recente. Logo terá lugar um profundo jogo de descobertas e identidades.

Toda a realização é admirável. Um tema polêmico como o hermafroditismo, que poderia terminar em um dramalhão insuportável e melodramático, é tratado com seriedade. O roteiro, delicado e preciso, evita o sensacionalismo e mostra todos os personagens com respeito e humanidade. A fotografia em tons frios faz paralelo ao ambiente gélido em que se desenvolve a história e realça a melancolia da narrativa. A força do filme é também garantida pela segurança do elenco. Ricardo Darín, contido e eficiente como o pai de Alex, mostra por que é um dos melhores intérpretes da atualidade (se trabalhasse em Hollywood, já teria recebido várias indicações ao Oscar). Ele é bem coadjuvado por Valéria Bertucelli (outra atriz que vem fazendo um filme após o outro e dificilmente erra a medida) como a mãe. Mas a alma de XXY é Inés Efrom, que conduz com perfeição o complicado papel central. Um desafio duplo, já que a atriz, de 23 anos, interpreta uma jovem adolescente e consegue passar toda a gama de sentimentos e incertezas de sua personagem. Ela já é apontada como a nova estrela do cinema argentino e vem aparecendo com freqüência em outros projetos.

O filme ganhou o Grande Prêmio da Semana da Crítica no Festival de Cannes em 2007, Goya de Filme Estrangeiro em Língua Hispânica, foi muito bem recebido no Festival do Rio do mesmo ano (onde foi exibido, equivocadamente, na Mostra Gay!) e teve uma boa passagem pelo circuito alternativo da cidade. Vale uma conferida atenta. Infelizmente, sai em DVD por uma distribuidora que, embora ofereça títulos bem atraentes, peca pelas edições modestas, trazendo apenas trailer como extra.

XXY (idem)
Drama
Argentina, 2007, 86 minutos.
Direção: Lucia Puenzo
Elenco: Inés Efrom, Ricardo Darín, Valéria Bertucelli, Germán Palácios, Martín Piroyanski, Carolina Pelleritti, Guillermo Angelelli.