quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O medo do goleiro diante do pênalti

Muitos anos antes de se tornar o cronista estrangeiro das neuroses internas que corroem a sociedade norte-americana atual, vitimada pela paranóia do terrorismo, o alemão Win Wenders concebeu um interessante estudo sobre os efeitos do medo no ser humano, ao levar para as telas o romance homônimo de Peter Handke, O medo do goleiro diante do pênalti. Descartando as implicações políticas de suas produções mais recentes, o diretor conseguiu ser universal sem precisar se afastar de sua aldeia.

Joseph Bloch é goleiro de um pequeno time da segunda divisão. Durante uma partida, ele discute com o árbitro por conta de uma falta mal marcada e é substituído pelo treinador. Suspenso pela diretoria do clube, resolve passar seus dias perambulando pela cidade. Vai ao cinema (assistir Faixa vermelha 7000, de Howard Hawks) e acaba se envolvendo com a bilheteira, Glória. Mesmo não sendo convidado, passa a noite na casa dela. Na manhã seguinte, sem motivo aparente, ele a estrangula, mas o fato parece não significar muita coisa para o goleiro, que continua vivendo como se nada tivesse acontecido. Acompanhando a repercussão do crime pelos jornais, ele se muda para a pensão de uma amiga e fica apenas à espera de ser encontrado pela polícia. Cada vez mais consciente de seu destino, deixa aflorar seu sentimento de culpa por meio de tiques e uma hiperatividade latente que, no entanto, não o leva a lugar algum. Seu nervosismo é fruto da certeza de que seus dias de liberdade estão contados: ser descoberto é apenas uma questão de tempo.

O filme parece muito simples na forma, mas deve ser visto com atenção pelo espectador, pois todo o seu sentido está implícito, subliminar. Wenders constrói quase uma fábula sobre o desconcerto de um homem comum acossado pela culpa e a certeza de uma falta cometida. A metáfora do goleiro como ser isolado, solitário, funciona de maneira óbvia. Ele simboliza uma espécie de flaneur fatalista, agindo como um fantasma urbano, evocando O estrangeiro, de Albert Camus. O tema da solidão humana já aparecia com força na obra do diretor, e seria ainda mais intenso em seus trabalhos posteriores, como Paris, Texas (1984), Asas do desejo (1987) e mesmo o recente Estrela solitária (2004). Bloch não tenta fugir em momento algum: sabe que não tem para onde ir, e que todas as fugas possíveis são inúteis. Está inexoravelmente preso à sua existência medíocre – o filme é todo centrado em cima de personagens os quais se convencionou chamar de losers (perdedores) do sonho americano. Este aspecto do filme pode desagradar muitos espectadores, bem como a lentidão da narrativa, evidenciando a imobilidade da situação e antecipando o destino do protagonista. Esse clima de desesperança é realçado pela trilha sonora, uma batida monocórdia, repetitiva, transmitindo a idéia de que nada sai do lugar.

Outro aspecto que pode causar estranheza é o nonsense de alguns diálogos, que, mesmo assim, conseguem ser brilhantes em alguns momentos, especialmente quando criticam a falta de comunicabilidade entre as pessoas – outro assunto recorrente na filmografia do diretor. Ninguém está interessado em entender ou ser entendido: as pessoas apenas vivem, vez por outra esbarrando em problemas externos, sem que, contudo, se sintam atingidas por eles.

É um dos bons trabalhos de Win Wenders que merece ser conhecido. Infelizmente, foi esquecido pela coleção dedicada ao diretor, lançada pela Europa, e, portanto, somente pode ser visto em VHS.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Esqueceram de nós

(Continuação da postagem anterior) Foi com incontido entusiasmo que fiquei sabendo da notícia, veiculada em um dos grupos de discussão do Yahoo do qual faço parte. Os filmes de John Cassavetes finalmente serão lançados em DVD no Brasil. A iniciativa pertence à distribuidora Cinemax, que digitalizou cinco títulos daquele que é considerado o pai do cinema independente norte-americano: Sombras (1959), Faces (1968), Uma mulher sob influência (1974), A morte de um apostador chinês (1976) e Noite de estréia (1977). Pode ser apenas o começo para que, posteriormente, toda a obra de Cassavetes aporte por aqui. Até então, ela permanecia quase inédita em terras nacionais, à exceção de Glória (1980) e Amantes (1984), mas ambos disponíveis apenas em VHS.

Com o lançamento, a Cinemax se alinha a outras distribuidoras especializadas em resgatar filmes e diretores clássicos, antigos ou alternativos, todas merecedoras de aplausos pela proposta, como a Continental (apesar da origem sempre duvidosa de seus masteres), Silver Screen, Aurora, Versátil, Cult & Classic e a pequena Lume Filmes, que recentemente pôs no mercado uma coletânea de filmes marginais brasileiros, com destaque para o libertário Sem essa aranha, de Rogério Sganzerla. No entanto, chega a ser curioso que, embora alguns títulos antigos estejam aos poucos chegando às lojas e locadoras, outros, a maioria recente, continuem sendo desprezados no formato. Abaixo, selecionei 15 filmes (a ordem não segue qualquer lógica) que permanecem inéditos em DVD no Brasil, mesmo sendo todos bastante conhecidos.

Pânico
Considerado o mais inovador filme de horror dos anos 90, a primeira parte da trilogia concebida por Kevin Williamson (numa época em que elas não eram tão freqüentes) foi esnobada pelas distribuidoras, que só lançaram suas duas continuações em DVD. Alguém explica o esquecimento? Que tal uma caixa com os três filmes da série e mais um disco de extras?

Um drink no inferno
Na mesma situação do anterior. A alucinante aventura vampírica dirigida por Robert Rodríguez e estrelada por Quentin Tarantino, Harvey Keitel e Juliette Lewis nunca saiu em DVD, mas suas duas seqüências inferiores, sim.

Nashville
De Robert Altman, existe em DVD De corpo e alma, um dos piores momentos do mestre. Mas esta obra-prima, irônico e crítico painel sobre o universo da country music, não foi lançada nem em VHS. Mas tem a cara da Versátil. Indicado a quatro Oscars, incluindo Melhor Filme, ganhou o de Melhor Canção.

Descontruindo Harry
Apontado como o melhor trabalho de Woody Allen nos anos 90, síntese de toda sua carreira até então, com a já antológica piada do homem que literalmente fica fora de foco. Da mesma época, também de Allen, permanecem inéditos em DVD ainda Maridos e esposas, Neblina e sombras e Um misterioso assassinato em Manhattan.

Ondas do destino
Primeiro filme da bela e talentosa Emily Watson, pelo qual foi indicada ao Oscar, esta produção típica do Dogma 99 assinada por Lars Von Trier ainda não foi descoberta pelas distribuidoras. Outro com a cara da Versátil.

Drugstore cowboy
Um dos mais realistas e contundentes dramas sobre o universo junkie, que consolidou o estrelato de Matt Dillon e revelou a bela loirinha Heather Graham, foi rodado há exatos 20 anos. Por enquanto, só em VHS.

No mundo de 2020
Quase um clássico da ficção científica, este filme que marcou os anos 70 conta com ótima atuação de Charlton Heston como um investigador que descobre uma verdade sinistra num futuro sombrio da humanidade. Último trabalho de Edward G. Robinson.

Aniversário macabro
Nas prateleiras abarrotadas de filmecos de pseudo-horror, com sangueira e tortura gratuitas, ainda não há espaço para este segundo trabalho do mestre no gênero Wes Craven, inspirado em A fonte da donzela, de Bergman.

Zona de conflito
O ator Tim Roth mostra vigor em sua estréia na direção com este drama sobre a desestruturação familiar a partir de uma terrível descoberta feita pelo filho caçula. Traz a cena de sexo mais triste e deprimente da história.

Cabra marcado para morrer
Todos os documentários de Eduardo Coutinho estão disponíveis em DVD. Menos este, rodado em 1984 e que é apontado como uma verdadeira aula do gênero. Mais uma evidência da falta de memória para com o cinema nacional.

O colecionador
Polêmico e escandaloso quando de seu lançamento, nos anos 60, acabou esquecido pelo tempo e pelas distribuidoras. Adaptado de famoso romance de John Fowles, rendeu uma indicação ao Oscar para Samantha Eggar.

Pixote – a lei do mais fraco
Considerado o melhor e mais importante filme brasileiro dos anos 80, abriu as portas de Hollywood para Hector Babenco e Sônia Braga e pôs a nu a condição dos menores de rua no país. Não há justificativa para seu esquecimento em DVD.

A hora do show
Último grande filme de Spike Lee, que depois se perdeu em projetos equivocados e mais comerciais. Chega a incomodar com a contundência do discurso e a força das imagens de brinquedos de conotação racista nos créditos finais. Só existe em DVD na região 1.

Taken
Minissérie produzida por Spielberg que acompanha cinco décadas da vida de duas famílias cujos destinos são afetados pelos acontecimentos de Roswell. Já exibida duas vezes na Bandeirantes.

Cabaret
Um dos maiores vencedores do Oscar, com oito estatuetas (mas não a de Melhor Filme), o musical político de Bob Fosse também só existe em DVD na região 1.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Murilo Salles e os filmes esquecidos

Murilo Salles é um dos principais diretores brasileiros. Seus filmes foram premiados em festivais nacionais e internacionais. Seu último trabalho foi efusivamente saudado pela crítica e apontado como o melhor lançamento do ano passado. Nada disso, porém, sensibilizou qualquer distribuidora na hora de lançar sua obra em DVD. Inconformado com o pouco caso, resolveu bancar do próprio bolso a digitalização de alguns de seus filmes, contando apenas com o apoio da Riofilme para posterior distribuição. O resultado é a Coleção Cineastas Riofilme, que chega às prateleiras e lojas reunindo quatro títulos de Salles: Nunca fomos tão felizes (1984), Faca de dois gumes (1989), Como nascem os anjos (1996) e Nome próprio (2008), o único do lote a receber extras, com meia hora de cenas excluídas da montagem final – porque faltou grana para enriquecer de bônus os outros volumes da série, conforme explicou o diretor em entrevistas.

O ostracismo a que as distribuidoras condenaram Murilo Salles é um exemplo emblemático da tradicional falta de memória da sociedade brasileira em diversos campos. Na cultura, o problema é ainda maior. Pergunte às novas gerações se elas sabem quem foi Grande Otelo, Oscarito, Mazzaropi, Eliana – não a dos dedinhos da TV, mas a atriz da Atlântida, responsável por grandes bilheterias do cinema nacional. E estou me referindo apenas aos nomes mais conhecidos de uma época de ouro do cinema brasileiro. O que parece não ser suficiente para conferir-lhes a dimensão merecida. Procure nos sites de comércio eletrônico: você vai encontrar coleções de DVDs dedicadas a Sean Connery, Denzel Washington, Bruce Willis, Mickey Rourke – mas nenhuma coletânea de Grande Otelo, por exemplo. Sem desmerecer o trabalho e a importância desses atores no panorama do cinema norte-americano, claro, mas por que supervalorizar tanto artistas estrangeiros em detrimento de nossos próprios astros? Claro, há exceções. Existem disponíveis caixas com obras de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, José Mojica Marins, sendo esta última considerada a melhor coletânea de um diretor nacional já lançada até hoje, graças ao primoroso trabalho de pesquisa e restauração dos filmes selecionados. Mesmo assim, é pouco perto do que deveria haver.

Chega a ser absurdo que um diretor como Humberto Mauro não tenha quase nada em DVD! Um dos pioneiros da aventura cinematográfica no Brasil permanece quase inédito no formato. As exceções ficam por conta de O descobrimento do Brasil, primeiro grande épico do cinema nacional, e uma coletânea de 11 curtas-metragens, reunidos em um único disco, ambos lançados pela Funarte em 2001, e que inclui o clássico A velha a fiar, também disponível no Youtube. Os dois títulos, porém, estão esgotados há anos e só podem ser encontrados para locação. De todo o modo, é pouco. Que tal restaurarem Ganga bruta, um dos maiores filmes brasileiros de todos os tempos? Existe uma cópia em VHS (da Sagres), bem como alguns outros filmes do diretor (Lábios sem beijos, Brasa dormida). Por que não se realiza um trabalho de remasterização para o formato de DVD?

Este esquecimento a que as distribuidoras relegam alguns diretores não atinge apenas os profissionais brasileiros. Em nível internacional, o país também anda mal servido nas locadoras. Somente agora, por exemplo, a obra de John Cassavetes está sendo lançada em DVD, pela Cinemax. É uma iniciativa muito bem-vinda, que permitirá ao cinéfilo brasileiro a oportunidade de conhecer o estilo daquele que é considerado o pai do cinema independente norte-americano. Mas ainda há um longo caminho a percorrer no trabalho de resgate de filmes e cineastas. (Continua na próxima postagem)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Calígula

Em 2009 celebra-se o aniversário redondo de vários clássicos do cinema, desde os 70 anos de Um cão andaluz de Buñuel, marco do surrealismo nas telas, até os 10 de Beleza americana, para mim o grande filme do começo do século XX, passando pelos cinqüentenários de Ben Hur e – por que não? – Plano 9 do espaço sideral. Não esquecendo os 20 anos de Cinema Paradiso, que me fez chorar a cada uma das oito vezes em que o assisti. Entre tantos festejos, um passa quase despercebido. São as três décadas de Calígula, que as novas gerações talvez só conheçam pela capa azul da edição em DVD, mas que causou grande polêmica quando de seu lançamento e marcou sua época, ainda que por vias tortas.

Calígula é um filme bastardo, renegado até por seu roteirista, o polêmico escritor italiano Gore Vidal, autor do romance original que serviu de base para a história, que pediu que seu nome fosse retirado dos créditos, indignado com os excertos de sexo explícito impostos pelo produtor, Bob Guccione, dono da revista Penthouse. Na verdade, esses excertos foram determinados posteriormente por Guccione, que achou o material inicial leve e comportado demais. Assim, o que seria apenas um épico histórico sobre a vida do imperador Calígula, o mais enlouquecido dos césares romanos, transformou-se no mais sofisticado pornô da história, uma saga biográfica repleta de bizarrices, taras e closes sexuais, com algumas cenas que se tornaram clássicas. Uma das mais lembradas é aquela em que o imperador invade uma festa de casamento e, após levar os noivos para a cozinha, sodomiza o rapaz com o punho, bradando, no momento do ato: "Em nome de Roma!" Outro momento de violência ocorre quando um soldado da guarda pretoriana tem o pênis amarrado e é forçado a beber vinho até ficar com o estômago dilatado para, em seguida, ter a barriga perfurada por uma lança. Tudo gratuito, sem motivo, só para chocar. Apesar de todos os excessos de violência a que se assiste hoje em dia, principalmente em filmes de pseudo-terror, que celebram a sangueira explícita e a tortura, são imagens que ainda chocam e causam desconforto a quem vê o filme pela primeira vez (e mesmo para quem o revê).

A verdade é que o filme, rodado com ares de superprodução, não consegue disfarçar sua pobreza cenográfica, em que pese os suntuosos ambientes recriados em estúdio por Danilo Donati, um especialista no assunto. Toda a história se desenvolve em interiores e sempre em planos fechados. Há duas ou três cenas passadas em exteriores, mas rápidas e quase no final do filme. O elenco contou com o reforço de 13 modelos da revista Penthouse, especialmente convidadas pelo produtor Guccione; elas se revezam nas cenas de nudez e aparecem com destaque na seqüência mais famosa, a da grande orgia final, que se tornou antológica. O elenco, aliás, é uma atração à parte, contando com a presença de artistas renomados da Royal Shakespeare Theatre Company, como Helen Mirren e o lendário John Gielgud, além de Peter O’Toole. Mas é Malcolm McDowell quem brilha no papel-título, imprimindo ao seu Calígula uma dose de loucura na medida exata, sem cair na caricatura. No entanto, o ator, que havia feito sucesso anos antes com Laranja mecânica, parece ter sofrido da maldição do filme, já que sua carreira foi ladeira abaixo depois deste épico pornô e nunca mais se acertou.

O filme também tem história na televisão brasileira. Em 1992, a Rede OM, atual CNT, programou a exibição de Calígula para duas noites em rede aberta, em virtude de sua longa duração (156 minutos). A primeira parte foi apresentada na quinta-feira anterior à Sexta-Feira Santa (!). Por conta do feriado religioso, a segunda parte foi anunciada para o sábado (de Aleluia!!! – será que alguém confundiu o termo "épico" com "religioso", como se fosse sinônimo da vida de Cristo?), mas não chegou a ir ao ar: sua apresentação foi embargada na Justiça e jamais liberada. Nas semanas seguintes, a emissora mostrou uma chamada do filme com a explicação para o cancelamento da exibição e chegou a veicular um documentário mostrando a luta para liberar a atração. Na época, reabriu-se o debate acerca da censura na televisão brasileira e os limites concedidos às concessionárias de radiodifusão. Na ocasião, escrevi uma carta para a revista TV Programa, do JB, criticando a decisão judicial. Por pouco a OM não perdeu sua concessão. Mas o fato serviu para que Calígula, então já esquecido, voltasse a ficar no centro dos holofotes e fosse redescoberto – ou, no meu caso, conhecido.

A edição em DVD traz um ótimo making of de 55 minutos, feito na época das filmagens, e mostra detalhes de bastidores e entrevistas com os principais envolvidos. O barato é acompanhar a seriedade com que o projeto era tratado: todos falam de Calígula como se estivessem rodando o grande épico do século XX. A produção foi cercada de cuidados, com jornalistas sendo barrados na entrada dos sets de filmagem. Imperdível. Aproveite: o filme pode ser comprado em qualquer Americanas da vida, pela bagatela de R$13.