quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os indomáveis

Considerado o mais norte-americano dos gêneros cinematográficos, o filme de faroeste foi praticamente sepultado há décadas sob o peso da correção política e da mudança de valores da sociedade. Raros são os exemplares ainda produzidos pelos grandes estúdios, e mais escassos ainda os lançamentos nas telas de cinema, pelo menos aqui no Brasil. Assim, este Os indomáveis traz consigo duas marcas notáveis: além de manter vivo o gênero, foi o primeiro faroeste exibido em circuito no Rio de Janeiro em muitos anos, considerando apenas os filmes cuja temática não deixe margem quanto à sua origem (o que exclui, portanto, títulos que usam a ambientação do western mas não o são de fato, como O segredo de Brokeback Mountain ou Onde os fracos não têm vez).

Dan Evans (Christian Bale, que ainda não foi descoberto pela Academia) é um homem honrado e íntegro que vive em um rancho com a esposa e seus dois filhos. Depois que sua propriedade é destruída em um incêndio criminoso, ele parte em busca da sobrevivência. No caminho, se depara com um assalto comandado por Ben Wade (Russel Crowe), um assassino procurado por toda a região. O xerife oferece uma recompensa a quem se dispuser a escoltar Wade até o tribunal da cidade de Yuma no trem que parte às 3:10. Evans vê aí a chance de recomeçar sua vida e se oferece para a empreitada. Mas haverá muitos riscos no caminho até que o perigoso Wade seja despachado no expresso para Yuma.

A mesma história já havia sido realizada em 1957, num filme que se tornou clássico e terminou esquecido pelo tempo: Galante e sanguinário, que tem o mesmo título original (3:10 to Yuma) e foi dirigido por Delmer Davies, com Glenn Ford e Van Heflin nos papéis ora ocupados por Bale e Crowe, respectivamente, e também está disponível em DVD por aqui. Há, em ambas as versões, o mesmo clima de tensão permanente. Fica-se em dúvida, até o final, se o assassino será ou não salvo do embarque por seu bando, que tenta livrá-lo a todo custo. O roteiro é baseado em um conto de Elmore Leonard, especialista em tramas policiais intrincadas e que já legou várias outras adaptações para o cinema. Fácil perceber que a inspiração óbvia foi Matar ou morrer, um dos grandes faroestes de todos os tempos, graças aos elementos que permeiam ambas as obras: a população que se recusa a ajudar o herói e se esconde, temerosa; o conflito com hora marcada para acontecer; a tensão psicológica que se estabelece entre os antagonistas.

Como toda refilmagem, esta se permite algumas mudanças em relação ao original. A passagem da escolta pelo meio do deserto à noite, por exemplo, não consta na primeira versão e é totalmente desnecessária. Mas a modificação do final foi a mais infeliz e quase derruba o filme. Apesar desse deslize, Os indomáveis tem evidentes qualidades que, no entanto, não o livraram de ser um fracasso de bilheteria, talvez porque os jovens, que hoje representam a maioria dos espectadores de cinema, não gostem ou se interessem por westerns. Nem adiantou aumentar a participação do filho adolescente do rancheiro para tentar atrair a atenção do público teen. O que prova que nem sempre os bons filmes são bem recebidos. Mesmo assim, recebeu duas indicações ao Oscar em 2008, nas categorias Trilha Sonora e Efeitos Sonoros (que hoje chamam de Mixagem de Som). Mas até que merecia mais.

A edição em DVD é uma das mais caprichadas já lançadas pela distribuidora Focus e traz vários extras, como um bom making-of e dois documentários, além de seis cenas excluídas (todas com Crowe, mas nenhuma que modifique coisa alguma na trama).

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O cheiro do ralo

Imagine um filme de quase duas horas de duração onde nada importante acontece, a situação inicial é repetida à exaustão e tudo se passe quase unicamente em um único cenário. Parece chato? Coisa de filme francês dos anos 60? Ah, mais um detalhe: o protagonista é francamente antipático, metódico, uma pessoa muito desagradável de conhecer. A descrição talvez não ajude muito, mas o fato é que O cheiro do ralo é um dos melhores filmes brasileiros lançados nos últimos tempos.

É estranho recomendar um filme com tais predicados, da mesma forma como gostar dele. Mas esta segunda incursão do paulista Heitor Dhalia na direção é um sopro de vitalidade e renovação no cinema nacional, cuja qualidade vem crescendo gradativamente desde que Central do Brasil encantou e arrebatou platéias pelo mundo afora há dez anos. Depois de estrear em 2003 com um filme que dividiu radicalmente as opiniões da crítica – Nina, adaptação livre de Crime e castigo, de Dostoievsky – ele parece ter encontrado o tom certo de seu ofício. Particularmente não gosto dessa sua primeira obra, mas reconheço nela algumas qualidades estéticas que contribuem para sua apreciação, sobretudo a direção de arte e o universo gótico, conferindo-lhe uma atmosfera de pesadelo urbano. Desta vez, Dhalia conseguiu aliar forma e conteúdo de maneira admirável, construindo uma fábula que, nas entrelinhas, pode ser lida como um retrato atual do nosso país. Aqui, ele volta a trabalhar em uma adaptação literária – no caso, o romance homônimo escrito por Lourenço Mutarelli, que já havia assinado a concepção visual de seu trabalho anterior.

Lourenço é um negociante de produtos usados que desenvolve uma relação algo sadomasoquista com os clientes que o procuram. Trata-os com frieza, comprazendo-se em humilhá-los e explorá-los em sua miséria aparente. Amoral até a medula, se acha acima das leis, usando-se de sua confortável condição financeira para obter o que quer Ao mesmo tempo, desenvolve um desejo obsessivo pelas nádegas de uma garçonete, que trabalha na lanchonete que ele freqüenta. É quando sua vida muda, ele se surpreende dominado pela paixão e vai à luta para conquistar a moça, certo? Errado. Lourenço nada faz para concretizar seu intento. Muita coisa vai acontecer até ele chegar lá. Nada muito edificante. Mas quem espera uma redenção pelo amor vai se decepcionar. Aliás, não é uma história muito fácil de ser digerida. Os mais sensíveis provavelmente se sentirão ofendidos.

O Lourenço de O cheiro do ralo é um parente contemporâneo do Paulo Honório de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos escrito em 1934. Sua lógica é fundamentalmente materialista: as pessoas só têm valor a partir de suas posses e do que podem produzir. Assim, coisificando seres humanos, ambos levam uma existência espiritualmente ressequida, meros fantoches do capitalismo selvagem, incapazes de sentir além das aparências. Tanto que os personagens periféricos simplesmente não têm nome, são apenas "o homem do olho de vidro" (objeto que acaba tendo uma importância fundamental na construção da narrativa), "o homem do gramofone", "a mulher casada". No lugar da Madalena de Graciliano, temos a garçonete que, inutilmente, tenta chamar o negociante à realidade, dizendo que "daria de graça o que ele gostaria de comprar". Nem assim, contudo, se derrubam as barreiras que o impedem de humanizar-se. Não existe amor. Existe o lucro. O resto é perfumaria. Ou a fedentina que exala do ralo.

Na pele de Lourenço, Dhalia teve a felicidade de contar com um Selton Mello em estado de graça, compondo talvez o melhor tipo de sua carreira. Ele sempre foi bom ator, e deixou isso claro em muitos outros filmes recentes (Lisbela e o prisioneiro, O Auto da Compadecida, Lavoura arcaica), mas aqui atinge um nível de interpretação próximo da perfeição. Todo o elenco está muito bem, desde os quase figurantes clientes da loja de Lourenço, cada qual compondo com humana simplicidade a existência quase indigente de suas vidas (e entre os quais há nomes conhecidos, como Abraão Farc e Antônio Pompeo). Mas o outro grande destaque individual fica por conta de Sílvia Lourenço, como a garota viciada. Paula Braun, a musa calipígia cobiçada pelo antiquário, estréia no cinema dosando ingenuidade e charme na medida certa. Por sinal que sua beleza não se restringe à referida anatomia. Há ainda participações de Alice Braga e do próprio Mutarelli, como o segurança da loja.

Uma pena que o roteiro, escrito a quatro mãos entre o diretor e Marçal Aquino, cometa o erro de não sair do lugar, o que pode irritar quem não conhece o livro. Não há um momento em que a narrativa sofra qualquer virada, vai na mesma cadência até o final. A excessiva repetição das atitudes de Lourenço pode irritar e cansar os telespectadores. E a história poderia ter uns bons vinte minutos a menos. Mas isso é só um detalhe que não chega a comprometer o conjunto. Todas as outras escolhas são perfeitas: excelente direção de arte, diálogos rápidos e precisos, com direito a falas antológicas ("Eu envelheceria ao lado daquela bunda"; "O homem criou o lixo para ocupar os desocupados"), trilha sonora contagiante e algumas cenas memoráveis (Lourenço literalmente prostrado no chão do banheiro aspirando o cheiro que sai do ralo; o tratamento dispensado a um encanador que vai tentar resolver o problema; a solução final). Muito assemelhado às produções independentes norte-americanas, o filme tem forte potencial cult.

Atualmente, Heitor Dhalia prepara o lançamento de À deriva, que conta com o astro francês Vincent Cassel no elenco.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Plano 9 de 2009

Em minha última coluna do mês de junho, escrevi sobre a onda de refilmagens e como isso vem se tornando freqüente, já há alguns anos, na indústria de Hollywood. Nem se pode chamar o artifício de fenômeno, posto que parece ter virado regra reaproveitar idéias utilizadas anteriormente em anos passados. E nem só os filmes mais famosos correm esse risco: até mesmo produções obscuras ou pouco conhecidas vêm sendo refilmadas, num atestado de absoluta preguiça criativa ou falta de originalidade dos roteiristas, com o apoio irrestrito dos produtores, que concordam em financiar novas versões de antigos sucessos em nome do lucro fácil. Vejo refilmagens com ressalvas. Mas, quando até o pior filme de todos os tempos entra no saco, é porque alguma coisa vai mesmo muito mal pelos lados de Hollywood. Pois é: para quem não sabe, Plano 9 do espaço sideral acaba de ganhar uma nova versão.

Quem nunca viu o filme original, não sabe o que está perdendo. Basta dizer que foi dirigido por Ed Wood Jr., eleito o pior diretor de cinema de todos os tempos, sendo esta sua obra-prima às avessas. Ou seja, trata-se do supra-sumo da ruindade. Particularmente, depois de rever o filme algumas vezes, discordo. Acho que ele fez coisa muito pior, como Noite das assombrações. No caso de Plano 9..., realizado em 1959, o diretor acompanhou uma tendência de sua época, os filmes de ficção científica de contornos apocalípticos, prenunciando a devastação do universo após uma iminente guerra interplanetária. No fundo, tem uma mensagem pacifista. Tentou fazer o que Robert Wise conseguiu com O dia em que a Terra parou, lançado quase dez anos antes (e que também já teve sua recente refilmagem oportunista, estrelada por Keanu Reeves). Mas, por falta de recursos, ou incompetência narrativa, ou simplesmente por ser quem era, Ed Wood não conseguiu ser levado a sério. O maior absurdo de se fazer uma refilmagem daquele que já foi escolhido oficialmente o pior filme de todos os tempos é que, como geralmente acontece nesses casos, o original seja visto como muito superior. E, neste caso, seria um paradoxo de proporções hecatômbicas, a ponto de quase obrigar a crítica especializada a rever todos os conceitos que defendeu ao longo de todos esses anos. Afinal, como valorizar o que já foi apresentado e consolidado como o pior de todos?

Assistir ao filme original é uma grande diversão. A história, sobre uma invasão alienígena que ameaça o futuro da humanidade, é mero pretexto para um desfilar de equívocos. Há seqüências noturnas que se misturam às diurnas, sem nenhuma lógica temporal; o chão do cemitério é um tapete e as lápides balançam quando os personagens andam (uma delas chega a cair, num dos momentos mais grotescos do filme). Uma seqüência célebre é aquela que mostra uma patrulha da polícia saindo da delegacia, logo depois é vista correndo por uma estrada e finalmente chegando ao seu destino, mas são usados três modelos diferentes de carro. Como se não bastasse, os diálogos são pavorosos e, no final das contas, a trama acaba não tendo pé nem cabeça. Mas, em termos de bizarrice, nada disso supera a manobra que Ed Wood precisou fazer para cobrir um desfalque no elenco. Bela Lugosi já havia rodado algumas poucas cenas quando morreu antes mesmo que o filme fosse iniciado. Mesmo assim, o diretor manteve-o como protagonista, usando um recurso inacreditável: pediu que o massagista de sua namorada (a atriz Dolores Fuller) o substituísse; como não havia nenhuma semelhança entre ele e o ator húngaro, o jeito foi mostrá-lo sempre com uma capa cobrindo-lhe o rosto! Unindo ficção e realidade, o personagem de Lugosi também morre no primeiro minuto do filme (mas continua aparecendo depois, por força do roteiro), de maneira igualmente absurda. Ou seja, há ainda todo um aspecto folclórico por trás de Plano 9.... E isso nenhuma refilmagem conseguirá reproduzir ou reacender.
O diretor da empreitada é um tal de John Johnson, que, embora esteja na ativa desde 2004, ainda não fez nada que merecesse muito destaque. Especializado em fitas de terror, anuncia para o ano que vem um título suculento para os fãs do gênero: Vampiros de Zanzibar. Ele também foi ator, trabalhando em filmes igualmente obscuros (o mais conhecido é Rebeldes e heróis, de 1991 – mas ele só faz uma ponta!). No elenco, o nome principal é o de Brinke Stevens, antiga B-queenie (musa de filmes baratos), dando vida à inesquecível Vampira. Mas duvido que este novo Plano 9 renda uma centelha do culto que é devido ao original.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Introdução ao cinema indiano II

(Continuação da postagem anterior) Quem assistiu a Quem quer ser um milionário?, o grande vencedor do Oscar deste ano com oito estatuetas, teve uma pálida idéia do que é uma produção típica de Bollywood com a antológica cena final, em que todo o elenco dança e canta a contagiante “Jai ho”, também premiada com o Oscar. É claro que a seqüência em questão é apenas uma espécie de homenagem e referência ao estilo dos filmes daquela indústria, que naturalmente não deveria faltar em uma história toda rodada e passada na Índia (mas que nem sequer é indiano, o que rendeu muitas críticas ao diretor, o inglês Danny Boyle, acusado de ter feito um pastiche da cultura daquele país e embalar tudo para consumo externo). Mas se engana quem pensa que apenas aquelas poucas cenas servem como iniciação ao cinema indiano. No máximo, servem como curiosidade e cartão de visitas para quem quiser conhecer mais.

Embora poucas, há opções disponíveis nas locadoras para quem quiser ampliar seus horizontes culturais e assistir a um filme indiano. Como Lagaan – a coragem de um povo, indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro em 2002, o que favoreceu seu lançamento por aqui, ainda que apenas em DVD. O filme se passa na época da colonização inglesa e retrata uma disputa esportiva entre os habitantes locais e os oficiais britânicos. O esporte, em questão, é o críquete, muito popular naquele país. Há ação, romance e algumas doses de humor, mas a longuíssima duração de 225 minutos e o apelo esportivo pouco atraente para o público brasileiro tornam este um programa mais para os iniciados no cinema indiano ou amantes do cinema alternativo e de arte. Outra opção é Missão Kashmir, saga de um terrorista que busca vingar-se do homem que assassinou sua família quando era criança. Com muitos interlúdios musicais, este filme pode causar ainda mais estranheza no espectador que não estiver familiarizado com a cultura cinematográfica local ou ignorar certas regras vigentes na maneira de fazer filmes que impera na Índia. Há ainda os filmes dirigidos por Mira Nair, indiana radicada há anos nos EUA e cujos trabalhos versam sobre o choque de culturas e permitem o olhar “externo” sobre questões referentes à sociedade norte-americana, sempre envolvendo seus conterrâneos. Assim é com Mississipi Masala (com Denzel Washington), disponível somente em VHS. Ou Um casamento à indiana, comédia mostrando os preparativos de uma festa nupcial típica, um precursor, na idéia, do Casamento grego de Nia Vardalos, lançado um ano depois. Em Nome de família, a diretora volta ao tema da construção da identidade indiana em terras norte-americanas, centrando a narrativa em um nativo dividido entre as tradições familiares e a cultura local. Além destes, há a já citada Trilogia de Apu, que continua sendo a melhor porta de entrada para o cinema indiano, até pelo seu aspecto mais humanista, sem os arroubos festivos aos quais atualmente associamos mais a produção daquele país.

De minha parte, o primeiro contato travado com o cinema indiano foi altamente positivo. Em 2004, o Festival do Rio apresentou uma mostra inteiramente dedicada a Bollywood. Era um dever de cinéfilo conferir ao menos uma das produções. Escolhi a de título mais estranho – Estarei sempre aqui para você – e me encantei. Reproduzo abaixo, na íntegra, a crítica que escrevi na ocasião.

“Ferido mortalmente em missão de segurança, um coronel do exército revela a seu filho que ele tem um irmão, fruto de antigo relacionamento, e pede que o rapaz saia à sua procura. Paralelamente, o rapaz é convocado por um oficial para fazer a segurança de sua filha, uma jovem estudante universitária. Nessa viagem, tudo irá se esclarecer. Uma curiosidade absoluta: trata-se de um filme indiano. E é uma jóia. Não se engane: se você espera encontrar uma produção modesta e pobrezinha, vai se surpreender com a riqueza e os efeitos especiais (muito bons!). É diferente de tudo o que já se viu em matéria de cinema (acreditem, quem escreve aqui é um cinéfilo que vê filme de tudo que é canto). Extremamente divertido, tem como grande vantagem nunca se levar a sério, usando o roteiro para satirizar filmes famosos, sobretudo americanos. O filme começa com uma seqüência de ação ao estilo de Missão impossível. Depois, há toneladas de referências e citações (Rambo, Apocalypse now, E.T., o extraterrestre, O tigre e o dragão e até Vem dançar comigo!). Mas as melhores piadas referenciais são em cima de Matrix. Há pelo menos uma cena antológica, que copia o bullet time, usado quando o herói se desvia de uma cusparada! E o mais engraçado é que uma personagem cita Matrix na hora!!! Mas não confundam essas sacadas com ridículo amadorismo, por favor. O filme é delicioso, muito agradável de assistir e os 195 minutos de projeção passam voando (uma característica do cinema local, as histórias têm sempre longa duração – curioso é que há uma pausa para o intervalo). É até difícil classificá-lo porque muda rapidamente de um gênero a outro. Começa como filme de ação, vira comédia adolescente de universidade, drama familiar, filme de guerra, musical (outra característica dos filmes indianos, a ação é interrompida várias vezes para a exibição de números musicais, todos muito alegres, com música vibrante e coreografias inusitadas, nada a ver com os antigos musicais da Metro). As atrizes são lindíssimas e se vestem de maneira sensual (minissaia, barriga de fora), longe, portanto, do estereótipo das muçulmanas recatadas. Ou seja, é um deleite para olhos e ouvidos, surpreendente do começo ao fim. Há ainda um pano de fundo político (a guerra entre Índia e Paquistão, parece que é outro assunto recorrente na produção local), que, no fim das contas, serve de base para o roteiro. Falada em hindu, a cópia foi exibida com legendas em inglês. Mesmo tendo conhecimentos apenas básicos de inglês, consegui acompanhar tudo perfeitamente. Um ou outro detalhe dramático se perdeu, mas isso foi irrelevante na compreensão da história. É, enfim, um filme muito interessante, que merecia ser distribuído no Brasil, nem que fosse em vídeo ou DVD.”

Resolvi reproduzir a crítica porque, ano passado, assisti a outro filme de Bollywood no mesmo Festival do Rio (o que seria de nós, cinéfilos, sem o Festival?). Chamava-se Om Shanti om, e seguia basicamente a mesma estrutura desse antecedente. A mim, já não causou muito espanto nem foi exatamente uma novidade, embora o tenha achado igualmente divertido, sobretudo na trilha sonora, contagiante. Lembro que, logo após a sessão, fiquei pensando se alguma das outras pessoas ali presentes também havia experimentado a mesma sensação que eu da outra vez: a de ter descoberto um tipo de cinema muito peculiar, de ter se encantado – e não se irritado ou se frustrado – e de querer conhecer mais. Eu reforcei as melhores impressões que já tinha do cinema indiano e continuo querendo assistir a mais filmes de lá. Que sejam todos bollywoodianos e inconseqüentes, não importa. Afinal, em qualquer lugar, cinema é a maior diversão.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Introdução ao cinema indiano

Como todo assunto abordado na novela das nove, a cultura indiana está na moda. As pessoas comentam sobre chai, vacas sagradas e costumes sócio-religiosos com uma intimidade desconcertante. (Ah, como seria legal uma novela em que os personagens passassem os capítulos inteiros exigindo o cumprimento de leis, brigando por seus direitos básicos de cidadãos, chamando a atenção para as mazelas de nosso país, para as quais o governo faz vista grossa e o povo, em que pese ter razão nas reclamações, também ajuda a perpetrar. Talvez assim, e só assim, se conseguisse operar de fato uma mudança de pensamento na população. A emissora-do-bairro-que-é-um-jardim já deu mostra de sua força persuasiva nos anos 90, quando, incentivadas pelas imagens de rebeliões populares mostradas na minissérie Anos rebeldes, massas de estudantes saíram às ruas pedindo a renúncia de um certo presidente... Mas isso já é história e não vem ao caso aqui. Perdoem a digressão.)

Não assisto à trama das nove, mas, outro dia, zapeando, caí em uma cena que me chamou a atenção. Estavam os personagens em um cinema quando, do nada, parte da platéia se levantou das poltronas e começou a dançar, enquanto o filme seguia sendo projetado na tela. A imagem, bastante inusitada para nós, brasileiros, é comum por lá e traduz de certa forma o sentimento do povo em relação à Sétima Arte. O indiano ama cinema, ama os filmes que são feitos em seu país. E tem do que se orgulhar. Afinal, como já se sabe hoje em dia, a Índia é a maior produtora mundial de cinema, com cerca de 900 títulos produzidos ao ano, um número que impressiona, sobretudo se levarmos em conta a quantidade de enlatados norte-americanos que deságuam semanalmente nas locadoras daqui, que já é expressiva. O grande problema, em termos cinéfilos, é que nós não temos acesso a essa filmografia. Os produtos de Bollywood, como é chamada a poderosa indústria local – sim, lá é possível cunhar-se este termo para designar a atividade cinematográfica – simplesmente não chegam ao Brasil.

Bem que há um esforço de algumas distribuidoras no sentido de tornar o cinema indiano mais conhecido e acessível ao grande público. Nos anos 50 e começo dos 60, o nome de Satyajit Ray soava familiar, por conta de sua Trilogia de Apu, formada por A canção da estrada (1955), O invencível (1956) – vencedor do Festival de Veneza – e O mundo de Apu (1959). Considerados perdidos por décadas, os filmes foram recuperados e lançados em DVD, em mais uma bem sucedida empreitada da Silver Screen Collection, que vem nos legando o resgate de várias obras importantes e fundamentais da história do cinema, permitindo que os espectadores não só possam conhecê-las, mas também ampliar seu horizonte estético e cultural. Foi um momento de afirmação mundial para o cinema produzido na Índia. Não se manteve, porém, regularidade no lançamento de filmes indianos. Aliado a isso, a necessidade do mercado exibidor de se render às imposições comerciais, dando preferência às produções norte-americanas, contribuiu para que o cinema daquele país asiático caísse no esquecimento durante anos a fio.

Uma pena, porque o cinema indiano merece ser conhecido e mais divulgado, sobretudo nos dias de hoje, em que Bollywood é capaz de produzir histórias tão divertidas, repletas de romantismo, ação e humor – não se espante: é assim mesmo, tudo junto num único filme, estendido ao longo de três ou quatro horas de projeção, uma característica da indústria local. (Continua)