quinta-feira, 29 de maio de 2014

As figurinhas ausentes

Neymar, Fred, Messi, Cristiano Ronaldo, Balotelli, Rooney, Suárez, Ribéry, Ozil... A constelação de estrelas esperada para se apresentarem na Copa é de encher os olhos e fazer salivar qualquer fã de futebol. Poucas vezes o torneio reuniu tantos craques em sua plenitude técnica de uma só vez. Quando a bola rolar, cada um deles, a seu modo, irá escrever seu capítulo particular na história da competição e dentro de poucos anos será possível dizer que a Copa de 2014 foi desse ou daquele jogador.

Porém, há outro grupo de craques e grandes jogadores, igualmente extenso, que, ao contrário, nunca teve a chance de desfilar seu talento pelos gramados de uma Copa do Mundo. Suas fotos jamais ilustraram os álbuns de figurinhas, embora seus nomes e vários de seus feitos dentro das quatro linhas também fossem aplaudidos. Seja por serem oriundos de países sem tradição no futebol, seja por terem aparecido em um período ruim do esporte em sua terra natal, muitos desses jogadores acabaram entrando para a história pela porta dos fundos. Aquela destinada aos grandes nomes que não jogaram uma Copa. 

Weah: um craque à margem do Mundial.
GEORGE WEAH – Provavelmente o caso mais emblemático de como o futebol pode ser injusto com alguns grandes jogadores. Reconhecidamente um craque, ídolo do Milan, no qual brilhou por cinco temporadas, eleito melhor jogador do mundo pela Fifa em 1995 e maior nome da seleção de seu país. Mas, em um continente com tantas boas equipes, foi nascer justamente na Libéria, que é um zero à esquerda no futebol. Referência maior de um time fraquíssimo, encerrou a carreira sem o gosto de jogar um Mundial. Seu prestígio nacional era tão grande, porém, que chegou a ser candidato à presidência depois de pendurar as chuteiras, mas terminou derrotado nas urnas.

IAN RUSH – Outro que nasceu "do lado errado" da Grã-Bretanha, no País de Gales, o que o afastou de qualquer expectativa de disputar um Mundial e privou o resto do planeta de apreciar seu futebol refinado. Maior artilheiro de sua seleção, com 28 gols marcados em 78 partidas, fez grande carreira no Liverpool, pelo qual ganhou diversas vezes o título inglês. Teve ainda uma passagem discreta pelo Juventus, encerrando a carreira no obscuro Sydney Olympic, da Austrália. Sua triste relação com a Copa do Mundo está prestes a ser repetida por seu conterrâneo Gareth Bale, que arrebata a torcida do Real Madri mas dificilmente disputará um Mundial.

Best: o melhor britânico nunca foi a uma Copa.
GEORGE BEST – Eleito o melhor jogador britânico de todos os tempos, ídolo do Manchester United, pelo qual conquistou a Copa dos Campeões Europeus (atual Uefa Champions League) em 1968 e considerado um dos maiores gênios da bola de todos os tempos. Mas sua distância da Copa do Mundo terminou sendo tão grande quanto vitoriosa foi sua carreira. Jogou na época errada. Seu país, a Irlanda do Norte, disputou o Mundial de 1958, antes de ele iniciar carreira, e somente retornou em 1982, quando já estava velho e decadente, escondido no futebol norte-americano.

DELY VALDÉS – Bendito fruto de um país sem qualquer destaque no futebol, o Panamá. Considerado o melhor jogador da história do futebol local, alcançou relativo sucesso atuando na Europa, primeiro pelo Cagliari, depois pelo Paris Saint Germain, onde apareceu para o resto do mundo. Em 15 anos envergando o uniforme nacional, disputou todas as eliminatórias entre 1990 e 2005, tendo marcado 22 gols no período. É irmão gêmeo de Jorge Dely Valdés, cuja carreira foi menos vitoriosa. Teve o consolo de disputar a Copa da Concacaf já aos 38 anos, ao lado do irmão, a única competição importante de que participou.

LITMANEN – Outro "melhor jogador da história de seu país", no caso, a Finlândia, que jamais esteve perto de disputar um Mundial. Compensou a ausência nas Copas com uma carreira vitoriosa nos clubes, especialmente no Ajax, onde foi campeão europeu e mundial (em cima do Grêmio) em 1995. Escapou de ter se tornado um craque pouco visto porque naquela época tanto a internet quanto a TV a cabo já davam seus primeiros passos em nível global, o que permitiu que mais pessoas pudessem assistir a suas atuações.

Antes de Hakan Sukur, houve Tanju Colak.
TANJU COLAK – Fez história jogando pelo Galatasaray no final dos anos 80, clube pelo qual conquistou a cobiçada Chuteira de Ouro da revista France Football, em 1988. Atuou também pelo arquirrival Fenerbahce. Sem disputar as principais ligas européias, conseguiu a proeza de ter seu nome conhecido e badalado pela imprensa esportiva internacional. Mas a fama nunca serviu de chamariz para grandes centros e se limitou a seguir carreira apenas em seu país. Demorou quase duas décadas até que a Turquia reunisse uma geração talentosa, que disputou a Copa de 2002, quando chegou em quarto lugar e vendeu caro as duas derrotas para o Brasil naquele torneio. Mas aí já era tarde, Colak havia se aposentado.

MALDONADO – Hoje a Venezuela ensaia se classificar para sua primeira Copa, mas por anos foi o saco de pancadas do continente. Foi nesse cenário desolador que Maldonado despontou,  sendo considerado naquela época o melhor jogador de seu país. Ficou famoso ao marcar um gol contra o Brasil, na Copa América de 1989, o primeiro da Venezuela contra nós em jogos válidos por competições profissionais, e depois chegou a jogar pelo Fluminense. Nunca foi grande referência, mas deixou um nome de certa forma e só por ter se destacado em um futebol inexpressivo merece a lembrança.

Friedenreich, "El Tigre": fora da Copa de 1930.
CANTONA – O atacante francês era tão genial com a bola nos pés quanto foi azarado dentro dos gramados. Sua carreira na seleção francesa, entre 1987 e 1995, coincidiu com o período mais apagado dos Bleus: a França não conseguiu se classificar para as duas Copas disputadas no intervalo. De temperamento explosivo, abandonou a carreira com apenas 30 anos, depois de ser preterido da convocação do grupo que seria campeão mundial em 1998. Virou ator e já acumula 27 créditos, sendo que seu papel mais famoso foi em À procura de Eric (2009), de Ken Loach, em que interpreta a si próprio.

FRIEDENREICH – Tem figurinha brasileira neste álbum às avessas da Copa do Mundo. E carimbada. Arthur Friedenreich foi vítima da briga política que afastou todos os jogadores paulistas da Seleção Brasileira que disputou a Copa de 1930. Muitos historiadores e pesquisadores apontam o jogador como o maior artilheiro do futebol brasileiro, com mais de 1.200 gols assinalados, mas a conta é incerta por causa da falta de registros confiáveis. De todo o modo, foi um dos grandes artilheiros do nosso futebol. Mas nunca disputou uma Copa.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Fast Fritas - Uma guerra, uma paixão, uma ponte

Nova sessão no blog a partir desta semana. Como nem sempre disponho de tempo livre para me dedicar a textos longos, criei o Fast Fritas, onde comentarei de forma breve sobre um ou mais filmes que tenha visto recentemente. O formato atende ainda a uma sugestão feita em off por alguns leitores, e é também a provável forma que será utilizada durante o período da Copa do Mundo, quando quase todas as minhas atenções estarão voltadas para o Mundial.

A PONTE DE WATERLOO
(Waterloo bridge)
EUA, 1940. 103 minutos. Direção de Mervyn LeRoy. Roteiro de Robert E. Sherwood (baseado em peça de sua autoria), S. N. Berhman, Hans Rameau e George Froeschel. Com Robert Taylor, Vivian Leigh, Lucile Watson, Virginia Field, Maria Ouspenskaya, Virginia Carroll.
Sinopse: Na I Guerra Mundial, casal se conhece durante um ataque aéreo em Londres. Ele vai para o front, ela permanece na cidade, mas, quando ele retorna, uma tragédia os aguarda.
Comentários: Um dos mais famosos dramas românticos do cinema permaneceu inédito em formato caseiro no Brasil por anos, até ser finalmente lançado em DVD pela Versátil em 2010. Por isso, sempre foi mais comentado do que visto ou conhecido. Esta é a segunda versão da história  a anterior é de 1931 e foi dirigida por James Whale. Ainda houve uma terceira, Gaby, de 1956 (direção de Curtis Bernhardt), com detalhe final modificado. Mas esta é considerada a melhor. Dirigido com elegância por LeRoy, o filme é um grande flashback onde Roy Cronin (Taylor), já envelhecido, relembra sua história de amor com a bailarina Myra Lester (Leigh), iniciado casualmente durante um bombardeio e interrompido porque ele, oficial do Exército, precisou se apresentar no front. Quando retorna à cidade, quase um ano depois, nada sai como planejava. Omito detalhes do roteiro por força do hábito, já que muita gente deve conhecer a história. Justamente esse "segredo" deve ser relevado, já que o mundo mudou bastante e o dilema moral da protagonista hoje é de uma ingenuidade quase constrangedora. Mas causou comoção há 70 anos, quando o filme foi lançado. Egressa do sucesso de E o vento levou..., Leigh já era quase balzaquiana, mas de fato está com cara de menina e convence plenamente no papel, além de estar no auge de sua beleza. Forma um par muito fotogênico com Taylor, considerado então o homem mais bonito do cinema. Os espectadores que têm um mínimo de sensibilidade romântica certamente ficarão arrepiados com o desenrolar da história, mas a nova geração, um tanto cínica, pode achar tudo uma grande bobagem. Vale conhecer ou relembrar.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Machadão do povão

Sou a favor de qualquer iniciativa que promova a leitura. Mas é preciso usar de sabedoria para divulgar esse hábito. Uma das idéias mais absurdas que já vi circulou pela imprensa na semana passada e previa a simplificação das obras de Machado de Assis para torná-las mais acessíveis a uma parcela significativa de leitores, especialmente os mais jovens. A justificativa para tamanha sandice é que o estilo do autor é muito complexo para as novas gerações que, por isso, acabam por se afastar de seus livros. Pior que essa idéia partiu de uma escritora, Patrícia Secco (nenhum parentesco com a atriz), com larga experiência na literatura infantojuvenil. Pior ainda: parece contar com o aval do Ministério da Educação e Cultura (MEC)!

Tive de ler a reportagem várias vezes para me convencer que era verdadeira. A autora prepara o lançamento de uma versão "simplificada" da novela O alienista, sem os termos considerados complicados e reduzindo o tamanho das frases e períodos originalmente adotados por Machado. "Entendo porque os jovens não gostam [de Machado de Assis]", explicou Patrícia nas entrevistas de divulgação. "Os livros dele têm cinco a seis palavras por frase que não são compreensíveis." Como exemplo, a palavra "sagacidade" saiu do texto e deu lugar a "esperteza". Patrícia ainda se defendeu das acusações de que teria alterado a obra, lançada em 1882: "Não modifico nada, apenas simplifico". 

Morreu mas depois voltou
A iniciativa passou algo despercebida pela população em geral, o que era esperado, afinal, quem vai espernear por causa de um assunto desimportante como este? Mas gerou revolta nos meios intelectuais e motivou reações indignadas de pessoas que militam no universo artístico como um todo. Meu amigo Jorge Ney Valentim, ilustrador e professor de História da Arte, fez uma previsão sombria em uma rede social: "Espero que de hoje em diante (...) grandes exposições como tivemos aqui de Modigliani, os Impressionistas e outros maravilhosos artistas (...) acompanhem-se de um catálogo com simplificações de suas obras para que os nossos 'idiotas' sem orientação educacional possam entender!" Infelizmente, a coisa caminha para esse nível. (Tomei a liberdade de auxiliar por conta própria no processo de simplificação, sugerindo novos títulos para obras de Machado, como se lê nas legendas das ilustrações ao longo da coluna.)

Machado de Assis sempre foi considerado um dos autores mais populares do país, mas sempre imaginei que tal honraria se deve muito mais ao fato de ser bastante cobrado nas provas de vestibular, o que naturalmente faz com que seu nome e seus livros circulem, mesmo que à fórceps, entre os estudantes. Não significa que todo mundo o leia contra a vontade. Em uma idade na qual os adolescentes estão firmando o hábito da leitura, é possível descobrir o universo machadiano e se encantar por ele, levando-os posteriormente a conhecer outros autores. Se ele utiliza palavras complicadas ou pouco conhecidas, não é nada que uma simples consulta a um bom e velho dicionário não seja capaz de resolver. Estarão as novas gerações tão entretidas com seus smartphones e tablets que não têm tempo para folhear um dicionário? Será preguiça?

A ledora de mãos
Há outras questões que tangenciam essa discussão. A mais relevante, a meu ver, é a comprovação da falência do sistema educacional como um todo, hoje incapaz de despertar um mínimo de interesse na prática da leitura. Esse é um problema antigo. Professores de forma geral obrigam seus alunos a ler para cobrar pontos em prova, ou seja, o que deveria ser incentivado como um prazer vira uma tortuosa obrigação, e não há como desfrutar de uma atividade estreitamente relacionada a uma "recompensa acadêmica", no caso, uma nota boa ou ruim. No meu tempo de moleque já era assim, eu é que gostava de ler mesmo, lia por conta própria, sem esperar que os professores determinassem.

O mais grave, contudo, é perceber que estamos (a sociedade como um todo) regredindo assustadoramente em diversos níveis, sobretudo intelectual. Ao invés de propor a melhoria da qualidade do ensino e se preocupar em fomentar práticas educacionais que elevem o interesse pela leitura, o MEC, disfarçadamente, assume que a coisa não tem mais solução, chegou ao fundo do poço, e a única saída para evitar uma catástrofe cultural de proporções ainda maiores é simplificar um texto que há mais de 100 anos é reverenciado como um dos grandes exemplares das letras nacionais. Ou seja, a cultura deve se dobrar ao nível mais rasteiro da compreensão para ser consumida, difundida, para que haja interesse. Será que alguém nas altas esferas do supracitado ministério tem noção do que significa esse nivelamento? Será que ninguém percebe onde iremos parar se continuarmos seguindo essa linha de pensamento?

Antes de virar borboleta era isso
O Brasil atravessa um período falimentar em termos de cultura, educação, inteligência. Jovens ouvem insignificâncias sonoras que, em tempos idos e mais sérios, sequer seriam mencionadas pela imprensa, mas hoje são cultuadas, apresentam-se regularmente nos programas de televisão divulgando sua "arte". O país pára por causa do capítulo final da novela, comentam-se as baixarias do reality show, mobilizam-se multidões enlouquecidas em torno de um espetáculo de selvageria sanguinolenta travestido de esporte, exaltam-se figuras que são um zero absoluto em termos de construção da identidade nacional – é quase inacreditável que a maior rede de TV brasileira ocupe um programa dominical inteiro lamentando a morte de um cidadão que era nada, celebrizando a nulidade, muita gente que chorou por ele nem sabia de quem se tratava até a semana anterior, se cruzasse com ele na rua nem iria reconhecê-lo. Recentemente perdemos artistas e cantores representativos do cenário cultural brasileiro e não vi a mesma preocupação em homenageá-los de forma condizente com sua grandeza, nenhum programa dedicado a este ou àquele artista. 

Dom Teimosão
Mais grave é que não se vê nada, nenhuma iniciativa séria, nenhuma preocupação efetiva que aponte soluções ou busque caminhos para melhorar ou ao menos evitar a hecatombe sociocultural que se prenuncia de forma galopante e incontornável. É neste cenário que uma escritora – justamente uma escritora! – se propõe a "ajudar" as novas gerações a lerem Machado de Assis. Não por meio do debate sadio, da investigação do estilo, da curiosidade pela descoberta. Apenas por meio da simplificação de palavras, porque – a verdade é uma só, tristemente arremessada na nossa frente – os jovens de hoje não têm inteligência para compreender uma frase de estilo mais complexo. Não sabem o que é "sagacidade", mas cantam os "pancadões" cujas letras parecem ter sido buriladas por algum oligofrênico (que palavra é esta? Existe?), repetindo a poesia concreta das poderosas e pensadoras que fazem sucesso. Quanta cultura! Altíssimo nível! É duro, meu camarada!

O assunto é tão rico em discussão que caberia em mais duas ou três postagens, mas os textos ficariam grandes demais, vai que algum "leitor da nova geração" reclama do tamanho e me acusa de antiquado, de complicado (se isso acontecer, agradeço desde já!) ou de termos menos cavalheirescos e de uso mais corrente. Além disso, a insistência opinativa torna-o repetitivo e algo cansativo. Mas que é de partir o coração, não há dúvida. Pelo visto, teremos de nos conformar em aguardar o trepidante lançamento de Dom Teimosão para os próximos meses. Socorro!!! 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Mistérios rastejantes

Obaba (2005)
"Se há uma cidade da qual o mundo não sentirá a menor falta, esta cidade é Dogville." A última fala de Nicole Kidman na obra-prima Dogville, de Lars Von Trier, pode ser aplicada também a Obaba, vilarejo perdido nas montanhas ibéricas imaginado pelo escritor Bernardo Atxaga no livro Obabakoak (não lançado no Brasil) e levado às telas por Montxo Armendariz. No entanto, ao contrário da comunidade concebida por Von Trier, esta aqui não atrai o espectador, não apresenta sequer conflitos que justifiquem sua existência.

Filmes que se dividem em episódios normalmente são irregulares por natureza, mas Obaba se esmera na arte de enfileirar histórias e situações sem que haja qualquer sentido oculto no final das contas. Já começa enganando o espectador, que pensa estar diante de uma trama de suspense. Uma jovem conduz seu carro por uma estrada sinuosa, à noite, quando encontra um homem atravessando a pista com um lagarto na mão (!). Ela pergunta quanto falta para chegar a Obaba e recebe a estranha resposta: "87 curvas". Essa obsessão numérica tornada clara pelo informante - logo depois, a jovem confessa que tudo na cidade era medido por grandezas numerais, não por precisões referenciais, como duas quadras ou quatro ruas - aparece em outros momentos isolados do filme, sem, contudo, acrescentar nada de efetivo ao clima ou ao desenvolvimento, tanto da história, quanto dos personagens. Assim ela chega ao local e se hospeda no único hotel da cidade, administrado pelo mesmo homem que lhe fornecera a informação horas antes. A jovem está lá para finalizar um trabalho acadêmico da faculdade de Cinema, e, sem uma razão muito convincente, decide escavar o passado daquele lugar, ouvindo as histórias de vida dos poucos moradores que ainda restaram.

O roteiro vai, então, montando a narrativa em dois planos alternados. No principal, vemos flashes de diversos pequenos episódios envolvendo alguns antigos habitantes, todos centralizados de certa forma na figura da professora (Pilar López de Ayala), responsável por um escândalo na cidade, e cuja vida se entrelaça à de seus alunos, cada qual guardando um segredo que será devidamente explicado ao longo do filme. O plano secundário mostra o gradual envolvimento da estudante com os moradores restantes, que reconstroem o passado da cidade a partir de suas lembranças, que podem ser autênticas ou degradadas pela memória e até por motivos particulares. No processo, a jovem se sente indelevelmente atraída por Obaba, ainda que a cidade nada tenha de especial. O suspense não se instala e a trama caminha a passos trôpegos. 

Jogo do erro único: há algo perturbador nesta foto. 
Embora haja elementos suficientes para instigar o espectador, eles simplesmente não são bem desenvolvidos, gerando certa frustração. Por exemplo, se a finalidade dos muitos lagartos que rastejam pela cidade acaba sendo explicada nas entrelinhas, por outro lado, a obsessão do hoteleiro pelos répteis soa gratuita, sem uma motivação firme que a sustente. A imagem perturbadora que a estudante flagra na antiga foto do colégio pode denotar um fato cruel, defendido como lenda contada pelos mais antigos, ou ser apenas uma travessura sem maiores conseqüências. O espectador decide em que acreditar.

Obaba termina sendo um filme sobre nada. Poderia ter rendido uma história envolvente, um drama pontuado de mistério, mas se perde em uma narrativa lenta e desinteressante. Quem resolver embarcar na viagem feita pela heroína talvez descubra um universo tão poético quanto trágico. Não foi o meu caso. A elogiar, a beleza das locações e de Bárbara Lennie, que interpreta a jovem pesquisadora e foi indicada ao Goya de Atriz Estreante em 2006 (e esteve em A pele que habito, de Almodóvar). A produção ainda concorreu em outras 9 categorias, incluindo Filme, Diretor, Atriz Coadjuvante (Pilar) e Roteiro Adaptado, e ganhou o prêmio de Melhor Som.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Mito que se escreve com S

Senna (2010)
Quando esta coluna estiver indo ao ar, neste feriado de 1º de maio, o mundo estará celebrando os 20 anos da morte de Ayrton Senna. As devidas homenagens já terão sido feitas, por meio de eventos, reportagens especiais em veículos de comunicação e talvez se prolonguem até o próximo dia 11, data do GP da Espanha, no qual, imagina-se, a FIA prestará também sua lembrança à memória do piloto. Só fica faltando aquela que sempre foi esperada, mas nunca saiu do papel: uma cinebiografia sobre Senna.

De uns anos para cá, a Fórmula 1 vem experimentando um decréscimo de audiência e popularidade, sobretudo no Brasil, onde sempre teve boa acolhida (nos Estados Unidos nunca foi grande chamariz). Em parte pelo andamento pouco dinâmico das temporadas, quase sempre restritas a um único piloto, em parte pela sonolência das provas, com muitos competidores e raros momentos de emoção. Para nós, brasileiros, há ainda o agravante de praticamente não termos mais para quem torcer, já que as apostas nacionais após a morte de Senna se revelaram verdadeiros pneus furados. Rubens Barrichello passou a carreira toda à sombra de Schumacher, sem ousadia nem personalidade para peitar um tratamento igual. Felipe Massa prometia muito no começo, mas nunca estourou como se esperava, ao contrário, quase se estourou todo em um acidente, em 2009. A categoria também perdeu credibilidade por conta do famigerado "jogo de equipes", que determina a vitória ou ultrapassagem do piloto mais bem colocado na tabela de classificação - afinal, quem vai assistir a uma competição cujos resultados obedecem a interesses internos e podem ser manipulados? (E alguém imagina que Senna fosse se dobrar a um teatrinho desses?) Ou seja, é muita coisa contra.

Assim, as novas gerações que não vêem muita graça na categoria não fazem idéia do que era se postar diante da TV nas manhãs de domingo e vibrar a cada acelerada, a cada ultrapassagem feita por Ayrton Senna. Torcia-se de fato, não só pela vitória na corrida, mas pelo título, que ele conquistou de forma brilhante em três ocasiões (1988, 1990 e 1991). Admirado pelo arrojo com que dobrava cada curva, respeitado pelos demais pilotos pela liderança e profissionalismo, Senna pode ter sido o último verdadeiro grande herói das pistas. Por mais vitorioso que seja hoje, Sebastian Vettel praticamente não tem ou teve adversários, e qualquer embate dele com Lewis Hamilton, Fernando Alonso ou Jenson Button não é nada perto dos pegas promovidos entre Senna e Prost ou Senna e Mansell. Custa crer que até hoje sua carreira não tenha rendido sequer um curta-metragem documental aqui no Brasil, que confirma ser mesmo um país sem memória e que se esquece rápido de seus ídolos.

Imagem clássica: emoções dominicais. 
Como ninguém fazia nada por aqui, coube a um inglês preencher essa lacuna. Em 2010, Asif Kapadia levou às telas o documentário Senna, que fazia uma radiografia, ainda que algo morna, da carreira do piloto, com alguns detalhes preciosos, como uma seqüência de imagens gravadas de dentro do cockpit pouco antes do acidente que o matou, na hoje tristemente famosa curva Tamburello, no circuito de Ímola, na Itália - por ironia do destino, a seqüência é interrompida segundos anteriores ao desastre. O filme acabou sendo tão vitorioso nas telas quanto Senna foi na pista, angariando 13 prêmios em festivais diversos. Os principais foram o Bafta de Documentário e Montagem, além do Prêmio da Audiência em Sundance, quando saiu aclamado pela crítica. Mas terminou injustamente esquecido tanto no Globo de Ouro quanto no Oscar, para os quais sequer foi indicado.

Um projeto de ficção sobre a vida e a carreira de Ayrton Senna chegou a ser cogitado logo após sua morte, e seria estrelado por Andy García no papel-título, contando ainda com Antonio Banderas no elenco, mas não seguiu adiante. Em seu próprio país Senna nunca foi personagem de produção alguma, fora as reportagens de televisão. Provavelmente por uma questão de direitos, rigidamente controlados por sua irmã Viviane, presidente do Instituto Ayrton Senna e responsável pela memória de tudo ligado ao piloto. Ou isso ou então foi por desinteresse mesmo. Prefere-se exaltar figuras da criminalidade, vigaristas, do que enaltecer quem de fato merece. Isto é Brasil!

O outro DVD sobre Senna. E só.
Senna chegou a ser lançado em várias edições em DVD. Uma simples, para locação, outras duplas, sendo que uma delas, especial para colecionadores, ainda trazia a miniatura da McLaren com a qual ele conquistou seus três títulos. Recentemente o filme foi relançado nas lojas com capa cinza (antes era amarela) mas em versão simples e trazendo um adesivo de brinde. Mas há ainda outra edição especial em Blu-Ray que também traz a miniatura.

Além deste, também é possível encontrar An official tribute to Senna, considerado o melhor documentário já feito sobre o piloto, trazendo, em dois discos, mais de três horas de informações e entrevistas com pessoas ligadas à carreira de Senna. E só. Materiais relacionados a ele, sobretudo livros, só podem ser encontrados no exterior, e mesmo assim, não são fáceis de achar, porque a maioria já se esgotou. Enquanto isso, na pátria que tanto se orgulhou em defender e representar, ao menos em termos de audiovisual, Senna recebe o mesmo tratamento que os pilotos da extinta Minardi mereciam nas provas que disputavam: insignificância total.