quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Coisas para ler

O livro: resgate com respeito.
Há algum tempo, comentei aqui sobre este livro, Coisas eróticas - A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional (Panda Books), que foi lançado meio na moita, sem muita divulgação, talvez por tratar de um tema complicado e ingrato. Também por abordar uma época da qual hoje muita gente se envergonha, a "era de ouro" da chamada Boca do Lixo paulistana, marcada pela fértil produção de filmes pornôs. No caso, o título já entrega aquele que foi considerado o grande sucesso do gênero, Coisas eróticas, dirigido pelo ítalo-brasileiro Raffaele Rossi. Só agora tive a oportunidade de lê-lo. E o recomendo com entusiasmo. Não é um livro sobre pornô: é sobre cinema brasileiro.

Eu não gosto de filme pornô. Já não gostava quando era garotão adolescente, talvez porque nunca via meus fetiches e fantasias refletidos ali, era sempre mais do mesmo, e menos ainda agora beirando os 40 e já sem mais aquela necessidade juvenil de desafogar meus hormônios em ebulição. Apesar disso, sempre conferi ao gênero a mesma importância que é dada a qualquer outro, por entender que pornô é cinema, tem uma característica própria, uma delimitação genérica particular como os filmes de faroeste ou de ficção científica. Tanto que sempre incluí Garganta profunda na minha lista de grandes filmes de todos os tempos, no mesmo nível de Ben Hur e Casablanca, claro que guardadas as devidas (e enormes) distâncias entre uns e outro. Por ironia, o clássico de Damiano é justamente o único filme pornô que povoou meus sonhos de adolescência, muito mais por ouvir falar e ler sobre ele do que propriamente por interesse pessoal em assisti-lo, o que só veio a acontecer depois de adulto, e, portanto, quando eu estava mais "bem-preparado" para aproveitá-lo. Mas não é de cinema pornô que vou me ocupar aqui.

Cena do filme, com o "Selo Rossi de Qualidade".
Não sei se o livro em questão pode ser apontado como a melhor fonte ou o melhor trabalho já realizado no terreno documental sobre o universo pornô brasileiro, mas é, com certeza, um dos melhores. Um minucioso trabalho de pesquisa empreendido pelos autores, o casal de jornalistas Denise Godinho e Hugo Moura, acompanha a produção de Coisas eróticas, o primeiro filme nacional de sexo explícito lançado nos cinemas, no começo dos anos 80, ousando desafiar os ventos da ditadura, que ainda sopravam com força, poucos anos antes da chamada "abertura democrática". Com um texto saboroso, que se lê de uma tragada, o livro é sobretudo um registro interessante das dificuldades de se fazer cinema no Brasil. Enfoca uma época particularmente complicada para os cineastas, sobretudo os de São Paulo, apertados entre seguirem no ofício ou dependerem de simpatias políticas para poderem tocar seus projetos. Rossi era um desses.

Rossi, o "homem do futuro", em rara foto.
Seria ele um visionário? O fato é que ele farejou potencial em um nicho então inimaginável por aqui. Sua idéia ganhou corpo no final da década de 70, quando o clássico erótico japonês O império dos sentidos foi liberado para exibição na Mostra de Cinema de São Paulo. Então, Rossi resolveu também rodar um filme brasileiro que mostrasse sexo explícito, nos moldes daquele. Daí surgiu Coisas eróticas, realizado em 1982, e que foi lançado cerca de um ano depois, na íntegra, graças a uma artimanha usada pelo diretor para ludibriar a censura. Claro que estourou nos cinemas, que abriam sessões das 9h até as 21h para dar conta de tantos espectadores interessados em ver na tela como o brasileiro fazia sexo. Afinal, era uma grande novidade. Hoje, produtores estouram champanhe quando um bloquibuste nacional chega à marca de 1 milhão de espectadores. Pois Coisas eróticas fez, segundo registros da época, cerca de 4 milhões de pagantes - o número pode ter sido ainda maior, já que nas cidades do interior não era possível controlar a venda de ingressos, que eram reaproveitados para sessões seguintes. Neste século XXI, quando a pornografia está ao alcance de um clique, parece irreal que tanta gente tenha pago para ver sexo na tela grande. De certa forma, isso confere um grau de romantismo ao vislumbre erótico de Rossi.

O livro esmiúça a vida de quase todos os envolvidos naquele, hum, projeto. Seria de se esperar que todos tenham ficado milionários, mas não foi bem o que aconteceu. Raffaele Rossi foi quem mais capitalizou o dinheiro ganho. Fez viagens em família, comprou uma chácara, até montou um time de futebol de salão, esporte pelo qual era apaixonado, e que chegou a disputar o Campeonato Paulista durante alguns anos. Mas perdeu tudo e teve uma morte lenta e dolorosa em 2007. Oásis Minniti, astro da fita, continuou fazendo filmes pornográficos na Boca por mais cinco anos, até se cansar e investir em um curso de técnicas de interpretação para o cinema... pornô!

Cenas como esta fizeram muita gente delirar no cinema.
É curioso também observar como a sociedade se comportou de maneira distinta na hora de receber o elenco do filme depois que ele foi lançado. O pensamento machista se impôs forte na hora de celebrar os "garanhões" e condenar as "vagabundas", já que os atores chegaram a ser recebidos como heróis em alguns lugares, caso de Walder Laurentis quando retornou para sua cidade natal, ao passo que as atrizes pagaram um preço muito alto pela ousadia. A estrela Vânia Bonier chegou a ser agredida pelo irmão, que não gostou de ouvir comentários masculinos exaltando suas formas e rompeu com ela pelo resto da vida. Mas todos os envolvidos concordam em um ponto: o filme foi praticamente uma maldição na carreira e na vida de quem tomou parte nele. A maioria o renegou (apenas Laurentis fala com orgulho de sua participação), muitos nem quiseram ser entrevistados para o livro. Ficou a mancha no currículo. Mas nada apaga a marca que ficou na história.

Os próprios autores adaptaram a obra para o cinema, em documentário homônimo. Obras como Coisas eróticas - A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional são importantíssimas para manter viva a memória do cinema brasileiro, e fundamentais para quem estuda o assunto ou pretende entendê-lo em todas as suas vertentes. O passado até pode condenar, mas não tem como ser apagado. Afinal, nem só de Limite e Terra em transe se fez a história da Sétima Arte nacional. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Houve uma vez uma primavera

Spring breakers - Garotas perigosas (2012)
Ao final da hora e meia de duração de Spring breakers - Garotas perigosas, eu estava chapado. Tinha acabado de assistir ao melhor filme do ano. Fui vê-lo com os dois pés atrás, já que o trabalho anterior do diretor Harmony Korine havia me decepcionado bastante - o pouco visto Mr. Lonely (2007). Ele também tem um histórico de roteiros furados, que parecem mais interessados em chocar a platéia do que em discutir um tema ou uma idéia. Não sei se ele cresceu, ou se sempre foi o grande diretor que mostrou aqui. O fato é que Korine legou um filme para a posteridade.

Devo ter ficado muito chato ou exigente demais ao longo dos anos, mas, em matéria de cinema, quase nada me surpreende hoje em dia. É raro ver um filme que me chame a atenção, me encha os olhos e me faça agradecer por estar vivo e poder assisti-lo. Onde outros amigos cinéfilos vêem qualidades, só consigo enxergar banalidades e derivações, e bem que eu tento ver com outros olhos. Este Spring beakers - Garotas perigosas é uma dessas honoráveis exceções. Um bálsamo para minhas retinas fatigadas que se renderam ao espetáculo visual que se me descortinou durante a projeção.

A trama acompanha quatro amigas que vão passar as férias de primavera do título em um balneário na Flórida. Elas assaltam um restaurante para conseguir o dinheiro da viagem e, lá chegando, acabam se envolvendo com o submundo das drogas. Só descrito assim parece uma bobagem, um daqueles filmes descartáveis movidos a sexo e rock que já foram feitos aos milhares. Ocorre que este filme é o que se pode chamar de experiência, cujas qualidades estéticas superam com folgas as eventuais falhas do roteiro.

Harmony Korine se tornou mundialmente conhecido em 1995, com o roteiro de Kids, cujos cartazes de divulgação nos cinemas daqui traziam a frase: "Um alerta para o mundo!" O filme falava sobre um grupo de adolescentes que praticava sexo sem proteção, freqüentava festinhas de embalo movidas a drogas e bebia até cair. Apresentava-se como um retrato cru e verdadeiro daquela geração. De fato, trazia cenas chocantes, mas, no todo, era oco: não acrescentava nada ao debate sobre o tema, nem apresentava soluções ou caminhos para sua resolução. Ficou a impressão de que Korine queria causar escândalo e sair de fininho, sem apresentar idéias que sustentassem uma discussão mais séria.

Essa impressão se reforçou em seu trabalho seguinte lançado aqui, o horrível e hoje esquecido Ken Park (2002), que repisava o assunto sem qualquer novidade, mas causava risos por mostrar a cena de sexo mais ridícula da história. Vistos hoje, porém, penso que a culpa foi de Larry Clark, que assinou a direção de ambos os trabalhos. Pode ser que ele tenha estragado as histórias com sua conhecida preferência em mostrar rapazes imberbes nus ou de cueca em cena (ele é homossexual assumido), exercitando seu fetichismo doentio. Ou seja, subverteu o potencial dramático de ambas narrativas para promover onanismo audiovisual.

Selena Gómez (esq.) e suas amigas: férias inesquecíveis.
Impliquei com Korine por causa do roteiro de Mr. Lonely, que é um apanhado de ótimas idéias desperdiçadas por uma conclusão frouxa (veja a crítica que escrevi sobre o filme aqui no blog; depois, procure conhecê-lo, existe em DVD). No entanto, o visual daquele filme me impressionou. Havia um excelente uso da fotografia, tirando o máximo proveito dos cenários. Em Spring breakers - Garotas perigosas, Korine conseguiu unir essa qualidade a um roteiro contundente, embora haja falhas eventuais, sobretudo na composição das personagens femininas. Aqui, as imagens explodem na tela, formando um caleidoscópio de cores quentes e contrastantes, reforçado pela direção de arte agressiva, de grande impacto visual. Ele também traduz essa beleza de forma física, explorando os corpos jovens de suas atrizes, que passam o filme inteiro só de biquíni, o que não deixa de ser um atrativo e tanto para o espectador macho e pervertidão, mas não há nudez.

Os maneirismos técnicos criados pelo diretor estão a serviço da história, não são usados de forma gratuita - o que livra o filme de ser um daqueles pastéis de vento sobre os quais já escrevi. A trilha sonora de sucessos recentes presta suporte preciso às cenas e, combinada com a montagem dinâmica, suaviza a extrema violência de várias de suas passagens. Uma cena antológica é aquela em que o traficante toca piano e as meninas dançam ao som de Britney Spears enquanto imagens em perspectiva de suas atividades criminosas vão desfilando na tela. Bonito de fazer chorar.

Korine também foi muito feliz na condução do elenco. James Franco está irreconhecível como o traficante barato, que se disfarça de animador cultural enquanto arregimenta novos usuários para sua rede de viciados. O sucesso lhe sobe à cabeça e ele acaba se tornando algoz do chefão local, de quem até então era protegido (papel do rapper Gucci Mane). As garotas interpretam com muita naturalidade, sem excessos ou afetações. Selena Gómez é a carola certinha, de forte formação religiosa, que entra inocente no esquema da viagem mas tira o corpo fora quando percebe os rumos que a aventura vai tomando, e deixa as amigas Candy (Vanessa Hudgens), Brit (Ashley Benson) e Cotty (Rachel Korine, esposa do diretor) por conta e risco próprios. As férias de primavera vão ser muito divertidas. Só que deixarão marcas profundas em todos.

Entre um tiro e uma cheirada, James Franco agita a massa.
Reclamei que os personagens femininos são mal desenvolvidos. Terminamos o filme sem saber praticamente nada das meninas, suas motivações para agirem daquela forma, se é apenas um desejo de transgressão ou uma predisposição natural para o crime, fundamentada em um núcleo familiar disfuncional. Com exceção de Faith (Selena), cuja rotina é mostrada rapidamente e justifica sua decisão de retornar, as restantes flutuam em um mar de possibilidades. Talvez tenham laços familiares sólidos (telefonam para casa, dão satisfação para suas mães), talvez venham a se conhecer de verdade naquela situação, "sozinhas", guiadas por seus instintos e seus demônios pessoais. Não é assim com muita gente? Talvez ajam daquela forma só por farra, como uma inconseqüência normal da adolescência. Talvez seja o começo de algo maior, que as espera no futuro.

Spring breakers - Garotas perigosas é um dos títulos mais esperados no Festival do Rio, que começa na próxima sexta-feira. Não se sabe se ele entrará em circuito depois ou se irá direto para o mercado de vídeo - esta parece ser a hipótese mais viável, a julgar por uma das fotos de divulgação, que é justamente a capa do DVD nacional! Mas, na tela grande ou no conforto do lar, merece ser visto e apreciado. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Los mejores de Latinoamérica

O Festival de Valdívia é uma das inúmeras mostras de cinema que se realizam anualmente pelo mundo e, embora pouco conhecida por aqui, está completando 20 anos de existência. Para marcar a data, os organizadores do evento divulgaram, na primeira semana de setembro, uma lista (minha perdição) dos dez melhores filmes latino-americanos que foram exibidos naquela cidade chilena ao longo de suas duas décadas. Como toda relação do gênero, esta contém surpresas e, particularmente para nós, brasileiros, uma constatação não muito agradável.

Whisky (2004): o melhor de todos.
A imprensa e a "indústria" brasileiras muito cantam e recantam o aumento da qualidade das produções nacionais de uns anos para cá em vários aspectos, da engenhosidade dos roteiros à melhora da captação do som, um antigo problema dos nossos filmes. Eu mesmo escrevia aqui nos primeiros tempos do blog sobre a importância de valorizarmos o nosso cinema, incentivando os leitores a perderem o preconceito e assistirem a filmes nacionais. No entanto, tudo parece ter ido por terra ao analisarmos a tal lista e ver que nela figura apenas um filme brasileiro. E engana-se quem pensa que se trata de Cidade de Deus ou Tropa de elite ou qualquer outro título mais badalado: trata-se do documentário Santiago (2007), de João Moreira Salles, lançado em circuito restritíssimo ― o Instituto Moreira Salles (IMS), na inacessível Gávea, e o Espaço Itaú (na época, Unibanco), em Botafogo, ambas administradas pelos Moreira Salles. Lembro de uma crônica da época em que o autor se perguntava: "Se o filme é assim tão bom, por que só passa nos cinemas da família?" Fato é que Santiago caiu nas graças da crítica, a ponto de ser efusivamente saudado como obra-prima e ser eleito um dos melhores filmes daquele ano. Apesar disso, continua sendo pouco conhecido e pouco visto. 

Mas vamos ao que interessa. A lista é encabeçada pelo uruguaio Whisky (2004), que poderia ser outra surpresa, já que são poucos os filmes feitos naquele país e menos ainda os que chegam a nós, como este, que foi primeiramente exibido no Festival do Rio e depois entrou em circuito alternativo na cidade, onde fez algum sucesso. A crítica especializada, sobretudo, adorou a comédia dramática sobre um solteirão sexagenário que, para enganar o irmão que vai visitá-lo, pede a uma amiga da mesma idade que se faça passar por sua esposa. O filme foi dirigido pelos nomes mais conhecidos do cinema uruguaio, Pablo Stoll e Juan Pedro Rebella, falecido em 2006 com apenas 32 anos. É interessante, mas dos poucos filmes uruguaios que consegui ver até hoje, prefiro outro título, Ruído (2003),  inédito em circuito, mas que já foi exibido no Canal Brasil.

Os demais nove títulos se dividem (mal) entre quatro argentinos e um de Brasil, México, Colômbia, Chile e, pasme, Paraguai! Alguém já viu um filme paraguaio? Eu nem sabia que se fazia cinema lá, nem na Premiére Latina do Festival do Rio eles são exibidos. Veja abaixo a lista dos eleitos.

1- Whisky (Uruguai, 2004).
2- Luz silenciosa (México, 2007), de Carlos Reygadas.
3- Santiago (Brasil, 2007), de João Moreira Salles.
4- A liberdade (Argentina, 2001), de Lisandro Alonso.
5- O pântano (Argentina, 2001), de Lucrécia Martell.
6- Histórias extraordinárias (Argentina, 2008), de Mariano Lilnás.
7- Um tigre de papel (Colômbia, 2007), de Luís Ospina.
8- Hamaca paraguaia (Paraguai, 2006), de Paz Encina.
9- Sílvia Prieto (Argentina, 1999), de Martín Rejtman.
10- Aqui se constrói (Chile, 2000), de Ignácio Agüero.

A solidão de Santiago (2007) na lista: único nacional.
Alguns foram exibidos nos cinemas daqui, como Luz silenciosa e O pântano (alguém explica essa simpatia que a crítica têm pela sra. Martell?) e estão disponíveis em DVD. Histórias extraordinárias e Um tigre de papel passaram em festivais. Nunca ouvi falar dos demais.

Para formar a seleção dos melhores, foram convidados os programadores de outros nove festivais latino-americanos, nenhum deles muito conhecido por aqui. Do Brasil, a mostra pinçada foi o Festival de Tiradentes, cujo perfil é mais experimentalista, aberto a novas estruturas narrativas e visuais, ou seja, um tipo de cinema alternativo, autoral, o que leva a crer que os demais eventos também sigam a mesma proposta. Isso explica talvez a presença de filmes desconhecidos ou menos badalados na lista final. É a única justificativa possível para a ausência dos campeões de bilheteria do cinema brasileiro.

E o solitário representante tupiniquim na lista também atenta para outro fato preocupante: o chamado cinema de invenção feito hoje por aqui não tem sido tão inventivo assim, já que mal seduz o público externo.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Garotas boazinhas também atiram

A lei de Hannah (2012)
Faroestes estrelados por mulheres não são exatamente novidade. Já eram feitos nos anos 50 (Ardida como pimenta, 53, com Doris Day). Na década de 90, foram três quase em seguida (Três mulheres e um destino, 94; Rápida e mortal, 95, com Sharon Stone; e A forasteira, 95, com a brasileira Vanusa Spindler). Recentemente houve Bandidas (2008, com Penélope Cruz e Victória Abril). Então, este A lei de Hannah seria apenas mais um do lote. Mas há um elemento distintivo: a forma como a protagonista é apresentada. Hannah só é mulher para fins de gênero, sem que isso determine qualquer traço de seu comportamento.

O avanço feminino em diferentes campos da sociedade é inquestionável e irreversível. Como uma arte que reflete seu tempo, o cinema reproduz tal avanço na reconstrução de suas personagens femininas, seja apresentando uma complexificação da protagonista, que passa a enfrentar dilemas mais próximos de sua realidade, seja introduzindo novos formatos de heroínas, que não ficam simplesmente de braços cruzados esperando pelo príncipe encantado: arregaçam as mangas, vão à luta, buscam direitos e tentam se reposicionar no mundo. A mocinha frágil e sonhadora não existe mais, nem tem mais espaço. É assim que o faroeste, um gênero por essência masculino, também se reinventa e, acompanhando os tempos que correm (é uma produção recente), dispensa as prostitutas de saloon e as vaqueirinhas indefesas e dá voz a Hannah, uma caçadora de recompensas que se põe em pé de igualdade com os homens do lugarejo de Dodge City, no Kansas, em 1878.

O roteiro parte do mais surrado clichê do gênero. Quando criança, Hannah viu seus pais serem mortos e seu irmão seqüestrado por uma quadrilha. Doze anos depois, já adulta, retorna à cidade e busca os assassinos de sua família, enquanto captura bandidos procurados para se manter financeiramente. Em sua cruzada, contará com a ajuda do jovem xerife Wyatt Earp, do delegado Doc Holliday e de uma amiga.

Em sua trilha por justiça, Hannah desconsidera seu sexo. Ela é mulher, sim, mas não faz disso um privilégio frente às adversidades que precisa superar para alcançar seu intento. Hannah não se preocupa em seduzir os inimigos, em tentar ganhar a confiança deles usando seus atributos femininos, não vai para a cama com eles visando se vingar no momento do orgasmo. Da mesma forma, sua condição de mulher é praticamente ignorada pelo bando que ela persegue, e que, por sua vez, também tenta eliminá-la na tradicional cena de duelo. Há uma única referência a isso, quando o líder da quadrilha vê Hannah em posição de tiro e diz, entre dentes: "Ela não passa de uma mulher." O que poderia inflamar um discurso de supremacia masculina se limita a uma frase perdida em meio aos diálogos e ao barulho das balas que se segue. Ou seja, Hannah alcança a ampla e utópica igualdade que muitas feministas se esgoelam para defender, sem, contudo, apresentar propostas realmente igualitárias para isso. Ela é, antes e acima de tudo, uma pessoa em busca de vingança. É mulher por determinação genética, mas isso não faz a menor diferença na forma como se comporta perante o mundo.

Antes de Wyatt Earp, era Hannah quem punha ordem no Oeste.
Alguns podem afirmar que o personagem é absurdo, que jamais haveria espaço para alguém como Hannah na "vida real", sobretudo em um universo tão viril quanto o romanceado Velho Oeste. Pode até ser. Mas é inegável que ela está perfeitamente conectada com os tempos atuais, não importa que a história se passe no século XIX. Não deixa de ser uma forma de "modernizar" o gênero, normalmente rejeitado pelo público feminino, que pode, assim, se sensibilizar e se interessar por ele.

Quem assina a direção, correta mas sem qualquer ousadia, é Rachel Talalay, de carreira breve e desastrosa no cinema. Estreou com A hora do pesadelo 6 (1991), fez a seguir o fracassado O fantasma da máquina (1993) e o hoje esquecido Tank girl - Detonando o futuro (1995). Encontrou na televisão um nicho seguro, dirigindo inúmeros episódios de séries (Ally McBeal, O vidente), incluindo esta produção, feita para o canal Sony. Sara Canning (também de séries, Diários de um vampiro e Smallville, entre outras) dá vida a Hannah, coadjuvada luxuosamente por Billy Zane e Danny Glover.