(Continuação da postagem anterior) Quem assistiu a Quem quer ser um milionário?, o grande vencedor do Oscar deste ano com oito estatuetas, teve uma pálida idéia do que é uma produção típica de Bollywood com a antológica cena final, em que todo o elenco dança e canta a contagiante “Jai ho”, também premiada com o Oscar. É claro que a seqüência em questão é apenas uma espécie de homenagem e referência ao estilo dos filmes daquela indústria, que naturalmente não deveria faltar em uma história toda rodada e passada na Índia (mas que nem sequer é indiano, o que rendeu muitas críticas ao diretor, o inglês Danny Boyle, acusado de ter feito um pastiche da cultura daquele país e embalar tudo para consumo externo). Mas se engana quem pensa que apenas aquelas poucas cenas servem como iniciação ao cinema indiano. No máximo, servem como curiosidade e cartão de visitas para quem quiser conhecer mais.
Embora poucas, há opções disponíveis nas locadoras para quem quiser ampliar seus horizontes culturais e assistir a um filme indiano. Como Lagaan – a coragem de um povo, indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro em 2002, o que favoreceu seu lançamento por aqui, ainda que apenas em DVD. O filme se passa na época da colonização inglesa e retrata uma disputa esportiva entre os habitantes locais e os oficiais britânicos. O esporte, em questão, é o críquete, muito popular naquele país. Há ação, romance e algumas doses de humor, mas a longuíssima duração de 225 minutos e o apelo esportivo pouco atraente para o público brasileiro tornam este um programa mais para os iniciados no cinema indiano ou amantes do cinema alternativo e de arte. Outra opção é Missão Kashmir, saga de um terrorista que busca vingar-se do homem que assassinou sua família quando era criança. Com muitos interlúdios musicais, este filme pode causar ainda mais estranheza no espectador que não estiver familiarizado com a cultura cinematográfica local ou ignorar certas regras vigentes na maneira de fazer filmes que impera na Índia. Há ainda os filmes dirigidos por Mira Nair, indiana radicada há anos nos EUA e cujos trabalhos versam sobre o choque de culturas e permitem o olhar “externo” sobre questões referentes à sociedade norte-americana, sempre envolvendo seus conterrâneos. Assim é com Mississipi Masala (com Denzel Washington), disponível somente em VHS. Ou Um casamento à indiana, comédia mostrando os preparativos de uma festa nupcial típica, um precursor, na idéia, do Casamento grego de Nia Vardalos, lançado um ano depois. Em Nome de família, a diretora volta ao tema da construção da identidade indiana em terras norte-americanas, centrando a narrativa em um nativo dividido entre as tradições familiares e a cultura local. Além destes, há a já citada Trilogia de Apu, que continua sendo a melhor porta de entrada para o cinema indiano, até pelo seu aspecto mais humanista, sem os arroubos festivos aos quais atualmente associamos mais a produção daquele país.
De minha parte, o primeiro contato travado com o cinema indiano foi altamente positivo. Em 2004, o Festival do Rio apresentou uma mostra inteiramente dedicada a Bollywood. Era um dever de cinéfilo conferir ao menos uma das produções. Escolhi a de título mais estranho – Estarei sempre aqui para você – e me encantei. Reproduzo abaixo, na íntegra, a crítica que escrevi na ocasião.
“Ferido mortalmente em missão de segurança, um coronel do exército revela a seu filho que ele tem um irmão, fruto de antigo relacionamento, e pede que o rapaz saia à sua procura. Paralelamente, o rapaz é convocado por um oficial para fazer a segurança de sua filha, uma jovem estudante universitária. Nessa viagem, tudo irá se esclarecer. Uma curiosidade absoluta: trata-se de um filme indiano. E é uma jóia. Não se engane: se você espera encontrar uma produção modesta e pobrezinha, vai se surpreender com a riqueza e os efeitos especiais (muito bons!). É diferente de tudo o que já se viu em matéria de cinema (acreditem, quem escreve aqui é um cinéfilo que vê filme de tudo que é canto). Extremamente divertido, tem como grande vantagem nunca se levar a sério, usando o roteiro para satirizar filmes famosos, sobretudo americanos. O filme começa com uma seqüência de ação ao estilo de Missão impossível. Depois, há toneladas de referências e citações (Rambo, Apocalypse now, E.T., o extraterrestre, O tigre e o dragão e até Vem dançar comigo!). Mas as melhores piadas referenciais são em cima de Matrix. Há pelo menos uma cena antológica, que copia o bullet time, usado quando o herói se desvia de uma cusparada! E o mais engraçado é que uma personagem cita Matrix na hora!!! Mas não confundam essas sacadas com ridículo amadorismo, por favor. O filme é delicioso, muito agradável de assistir e os 195 minutos de projeção passam voando (uma característica do cinema local, as histórias têm sempre longa duração – curioso é que há uma pausa para o intervalo). É até difícil classificá-lo porque muda rapidamente de um gênero a outro. Começa como filme de ação, vira comédia adolescente de universidade, drama familiar, filme de guerra, musical (outra característica dos filmes indianos, a ação é interrompida várias vezes para a exibição de números musicais, todos muito alegres, com música vibrante e coreografias inusitadas, nada a ver com os antigos musicais da Metro). As atrizes são lindíssimas e se vestem de maneira sensual (minissaia, barriga de fora), longe, portanto, do estereótipo das muçulmanas recatadas. Ou seja, é um deleite para olhos e ouvidos, surpreendente do começo ao fim. Há ainda um pano de fundo político (a guerra entre Índia e Paquistão, parece que é outro assunto recorrente na produção local), que, no fim das contas, serve de base para o roteiro. Falada em hindu, a cópia foi exibida com legendas em inglês. Mesmo tendo conhecimentos apenas básicos de inglês, consegui acompanhar tudo perfeitamente. Um ou outro detalhe dramático se perdeu, mas isso foi irrelevante na compreensão da história. É, enfim, um filme muito interessante, que merecia ser distribuído no Brasil, nem que fosse em vídeo ou DVD.”
Resolvi reproduzir a crítica porque, ano passado, assisti a outro filme de Bollywood no mesmo Festival do Rio (o que seria de nós, cinéfilos, sem o Festival?). Chamava-se Om Shanti om, e seguia basicamente a mesma estrutura desse antecedente. A mim, já não causou muito espanto nem foi exatamente uma novidade, embora o tenha achado igualmente divertido, sobretudo na trilha sonora, contagiante. Lembro que, logo após a sessão, fiquei pensando se alguma das outras pessoas ali presentes também havia experimentado a mesma sensação que eu da outra vez: a de ter descoberto um tipo de cinema muito peculiar, de ter se encantado – e não se irritado ou se frustrado – e de querer conhecer mais. Eu reforcei as melhores impressões que já tinha do cinema indiano e continuo querendo assistir a mais filmes de lá. Que sejam todos bollywoodianos e inconseqüentes, não importa. Afinal, em qualquer lugar, cinema é a maior diversão.