quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A obra-prima natimorta

Duna de Jodorowsky (2013)
A história do cinema registra inúmeros grandes filmes que nunca foram feitos, entre eles o Dom Quixote de Terry Gilliam, O coração das trevas de Orson Welles e, por quê não?, o Chatô do nosso Guilherme Fontes. O maior de todos, contudo, parece ter sido Duna, acalentado projeto de Alejandro Jodorowsky que nunca saiu do papel. Frank Pavich não tomou para si essa tarefa, mas fez um documentário expondo a história e de que modo ele poderia ter mudado os rumos do próprio cinema.

Pode-se amar ou odiar o cinema de Jodorowsky. Há os que o cultuam como um gênio verdadeiramente original e renovador da linguagem visual da Sétima Arte, entre os quais me incluo; outros o consideram um enganador, um charlatão. Mas não se pode é ficar indiferente a seu universo. Sua idéia de levar Duna para as telas vem da segunda metade dos anos 70. Ele se tornou um nome famoso na Europa graças à exibição, em Paris, de A montanha sagrada (1973). O filme encantou e hipnotizou o produtor Michel Seydoux (tio-avô de Léa Seydoux, de Azul é a cor mais quente), que se encontrou com o diretor e deu-lhe carta branca para fazer o que quisesse. Jodorowsky respondeu no ato, citando o nome do livro pelo qual havia se apaixonado.

Duna foi escrito por Frank Herbert em 1965. É considerado um monumento da literatura de ficção científica, a Bíblia do gênero. Ao longo de suas quase 700 páginas, desfila um universo impactante, repleto de figuras míticas, guerreiros, monstros, enfim, a essência de uma criação, capaz de transportar o leitor a um outro mundo e, mais importante, fornecer elementos suficientes para que abra sua mente e expanda seu horizonte intelectual e espiritual. No Brasil, foi publicado inicialmente pela pequena Editora Aleph e, posteriormente, pela Nova Fronteira.

Jodorowsky: antes de tudo, um visionário.
Com o aval de Seydoux, Jodorowsky se cercou daqueles que considerava os melhores e mais capacitados profissionais para concretizar o sonho de levar o livro para o cinema. Assim, escalou o premiado Jean Giraud, o quadrinista Moebius, para desenhar os storyboards; os efeitos especiais seriam criados por H. R. Giger, que se consagrou no final daquela década com Alien, o oitavo passageiro; a trilha sonora seria composta por sete bandas diferentes, cada uma para um universo particular de Duna, incluindo Pink Floyd, cujo álbum "Dark Side Of The Moon" cativou Jodorowsky. A maior ousadia, contudo, era no casting. O diretor sonhava em ter Mick Jagger, o pintor Salvador Dalí (que teria feito uma exigência salarial surrealista para participar), Orson Welles e David Carradine, este egresso da série Kung-Fu. O papel principal seria do próprio filho do diretor, Brontis, que chegou a ser treinado exaustivamente durante dois anos pelo mesmo professor de Bruce Lee (!) para apreender técnicas precisas de luta e movimentos.

A nave do imperador, na visão de Jodorowsky.
O diretor repete várias vezes que o seu Duna seria o maior filme da história do cinema, "algo que mudaria completamente a própria humanidade". Uma hipérbole presunçosa, talvez, mas quando vemos a arte criada por Moebius, reproduzindo as idéias do diretor, traduzindo-as em imagens por vezes delirantes, dá para ter uma noção de quão grandioso era o projeto. E é claro que não seria apenas mais um filminho descartável como tantos feitos em Hollywood: sendo uma obra de Jodorowsky, haveria uma mensagem metafísica, algo muito maior do que mero entretenimento. Gigantesco até na duração, porque o diretor o concebia como um filme de 12 horas, podendo chegar a 20!

Todo o infográfico do projeto foi reunido pelo diretor em um livro e distribuído aos estúdios de Hollywood. Os executivos ficaram impressionados com o material e muitos se dispuseram a filmá-lo, mas queriam que outro diretor tocasse o projeto. Claro que Jodorowsky não aceitou ("Era o meu sonho! Como vou deixar que outra pessoa mexa no meu sonho?"). As negativas constantes o levaram a uma longa fase de desânimo, na qual se distanciou do cinema e se embrenhou por outras áreas artísticas e pelo estudo de religiões.

As idéias nunca filmadas viraram livro.
A verdade é que o projeto foi considerado megalomaníaco demais, caro demais e, sobretudo, com baixa garantia de retorno, ou seja, provavelmente não seria compreendido pelo público. Era algo muito fora dos padrões hollywoodianos. A melhor explicação é dada por Richard Stanley, em uma das entrevistas: "Hollywood só se interessa pelo que entende. Uma mistura de vampiros com dinossauros é algo que faz sentido para eles, mas um filme com tamanha ousadia e com uma mensagem espiritual tão grande não seduz os estúdios." Muitos anos se passaram e essa definição nunca se mostrou mais atual. Seria diferente se Duna tivesse sido feito? Jamais saberemos.

Como todo mundo sabe, Duna chegou às telas em 1984, dirigido por David Lynch, escolha que Jodorowsky considerou acertada, porque era um cineasta que ele admirava. O resultado, contudo, foi desastroso e desagradou praticamente todo mundo. Ao que parece, nunca veremos o projeto original como pensado e estruturado por Jodorowsky. Mas partes dele ficaram espalhadas por diversos filmes, que aproveitaram alguns conceitos visuais criados para a Duna original, como O exterminador do futuro, Matrix e Contato, este utilizando toda a seqüência de abertura. E Jodorowsky também manteve a parceria com Moebius. Juntos criaram a série em quadrinhos Incal, outra obra que bebe nas referências criadas pelo diretor.

A considerar a crescente imbecilização do cinema norte-americano como um todo  e ouso dizer, da platéia de forma geral, refletindo a ignorância grassante em nossos tempos –, creio que nunca estaremos preparados para um projeto de tamanha magnitude estética ou espiritual, como acalentava o diretor.

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Em virtude da cobertura do Oscarito, o blog só volta a ser atualizado no dia 27 de agosto, com a lista dos premiados.

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