quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A câmera nas mãos do idiota


Nunca entendi esse fanatismo religioso que caracteriza alguns povos ao redor do mundo. Talvez por ser ateu ou viver em um país que permite a livre expressão de credos e crenças, onde umbandistas, católicos e evangélicos convivem em harmonia, desde que, logicamente, respeitadas as convicções de cada um. Na Escócia, por exemplo, de tão inflamadas, as diferenças religiosas chegam a extrapolar e invadir o campo esportivo. O clássico nacional entre Celtic e Glasgow Rangers é mais do que um jogo de futebol. Para muitos torcedores, é a oportunidade de provar no gramado a superioridade de uma religião sobre outra, já que os times são historicamente identificados com protestantes e católicos, respectivamente. Não raro os encontros terminam em pancadaria e violência generalizada.

No Oriente Médio, nem é preciso falar. Como, repito, não entendo esse fanatismo que move as ações de judeus, árabes e israelenses uns contra os outros, fico me perguntando para que tanta guerra, tanta intolerância, por que essa necessidade quase animalesca de eliminar os devotos de uma e de outra religião. Ouço falar em guerra santa desde que eu era pirralho e a cada semana surge “mais do mesmo”: atentados, homens-bomba, destruição de templos etc. Será que esse povo nunca se cansa? Será que isso nunca vai ter fim? Mata-se mais em nome de Deus do que se vive sob seus princípios. Se essa matança infinda ocorre por ordens dele, então é muita sorte que o resto da humanidade ainda não tenha sucumbido, porque um Deus assim, que prega a destruição, é de meter medo!

O leitor eventual do espaço deve estar se perguntando o que esse assunto tão pesado está fazendo no blog que tem, por princípio, ocupar-se de temas voltados à cultura. Explico. Há alguns dias, várias embaixadas norte-americanas no Oriente Médio foram atacadas por fundamentalistas islâmicos, resultando em mortes, incluindo alguns diplomatas ianques. O estopim teria sido a veiculação de um filme que conteria diversas injúrias contra o islamismo. Algumas: mostra-se Maomé em forma humana, interpretado por um ator, conferindo-lhe, portanto, um rosto, o que é proibido pelas leis islâmicas. Mais grave: esse próprio “Maomé” afirmaria que tal religião é um câncer, exorta seus seguidores a assassinar crianças e escravizar pessoas, além de fazer piada com outros dogmas sagrados das crenças locais.

O filme em questão se chama A inocência dos muçulmanos, na verdade um curta-metragem de 14 minutos de duração, que até a semana passada estava disponível em diversos sites de compartilhamento – hoje já foi varrido de quase todos eles, mas o leitor que tiver interesse pode procurar na rede que talvez encontre; assista por sua conta e risco. Trata-se de uma patetice despropositada, visivelmente amadora, levada em tom de comédia, com o único objetivo de debochar do islã, chamando-os de terroristas que propagam o mal e espalham destruição. O escritor Salman Rushdie classificou o vídeo como “um lixo”. Outras autoridades condenaram a produção tanto pela pobreza da realização quanto pela gratuidade das ofensas proferidas. Atores e equipe técnica que participaram do filme se disseram enganados pelos produtores, pois haviam sido contratados para rodar um épico chamado Guerreiro do deserto e se surpreenderam ao ver o resultado. Nem vale a pena comentar outros aspectos dessa sandice.

Sou inteiramente a favor da liberdade de expressão. Cada um tem o direito de se manifestar a respeito do que bem entender, da forma que quiser. Mas é preciso que haja um propósito, uma mensagem a ser passada. O que se vê nos 14 minutos da produção é um ataque gratuito a uma religião, sem qualquer estofo dramático consistente que o justifique. O diretor disse que fez um filme político, não religioso, mas não é o que se pode constatar. Além disso, é difícil separar uma coisa da outra em uma região como o Oriente Médio, em que ambos os assuntos estão estreitamente ligados.

A identidade do autor de A inocência dos muçulmanos permanece envolta em mistério, embora pipoquem no território livre da internet algumas versões para sua origem. Sabe-se que Sam Bacile, o nome com o qual foi inicialmente identificado, não existe. Este seria um pseudônimo de Nakoula Basseley Nakoula, um judeu copta de 55 anos (algumas fontes citam 45). Mas também não é oficial. Outras versões dizem que o diretor verdadeiro é Alan Roberts, que tem longa carreira no cinema pornô, embora também não conste nada a seu respeito no IMDB. Atores e atrizes que atuam no filmete também seriam egressos do universo de produções adultas, sendo que uma delas, Amina Noir, chegou a ser modelo da TV Playboy. Tudo especulação.

Há muitos outros aspectos mal explicados. Como uma produção amadora, que nunca foi lançada comercialmente, em tese foi pouco ou mal vista, pode ter deflagrado uma onda de violência tão grande? A versão conhecida tem 14 minutos, com cortes evidentes; existe uma versão completa? A montagem feita tira a obra de seu contexto original ou a idéia era mesmo atacar o islã? Por que não há informações concretas sobre os intérpretes? Tudo nebuloso. Essa falta de pistas é de certa forma simbólica. Talvez seja mesmo o melhor destino para essa aberração: o anonimato e a obscuridade eternos.

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