Nas
duas últimas semanas, o idioma oficial falado no Centro Cultural Banco do
Brasil (CCBB) foi o húngaro. A Mostra Geração Praça Moscou trouxe para o Rio de
Janeiro 16 filmes produzidos na república magiar entre 2001 e 2012, todos
inéditos na cidade. Uma excelente e única oportunidade para conhecer a
filmografia daquele país, que raramente dá as caras no Brasil, mesmo em
festivais. A seleção incluiu muitos dramas, uma ou outra comédia, espionagem e
até um documentário sobre Ferenc Puskas.
Até
onde me lembro, só vi dois filmes húngaros até hoje. Um no Festival do Rio do
ano passado, Apenas o vento, que
posteriormente foi reapresentado em outra mostra na cidade, e O cavalo de Turim, do mais conhecido
diretor húngaro da atualidade, Béla Tarr, de perfil mais autoral. Infelizmente,
por motivos particulares, não pude ver tanta coisa quanto gostaria. O jeito foi
pinçar os títulos que mais me atraíram, pela sinopse, e tentar me iniciar na
indústria do cinema da Hungria.
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Aglaja (2012) |
O
primeiro que vi foi Aglaja (2012),
que é baseado em uma história real. O título é o nome da protagonista, uma
menina cujos pais são artistas do Gran Circo do Estado, da Romênia, controlado
por Nicolae Ceausescu, o pai atuando como palhaço (seria, então, um pailhaço?)
e a mãe, trapezista. Eles fogem do país por motivos políticos e se refugiam na
Hungria. Logo o pai arruma trabalho em outro circo, enquanto a mãe resolve
criar um número até então inédito no meio artístico local: fazer malabarismos
pendurada pelos cabelos em um cabo de aço. A façanha é muito arriscada, e ganha
contornos dramáticos para Aglaja depois que ela testemunha a morte de outras
duas artistas que faziam apresentações parecidas. Mas os problemas da menina
ainda nem haviam começado.
Um
dia, fiscais da Assistência Social fazem uma revista no circo e descobrem que
Aglaja e sua irmã estão fora da escola, limitando-se ao trabalho no picadeiro, o
que é proibido pelas leis locais. As duas, então, são separadas da família e
recolhidas a um internato. Os anos se passam, Aglaja consegue sair do local,
mas já não tem mais para onde ir. Resolve explorar sua veia artística em um
cabaré, onde dança seminua para delírio da platéia masculina. Ao descobrir que
sua mãe está viva, vai procurá-la. Mais alguns contratempos acontecerão,
inclusive uma tragédia, até que Aglaja perceba que sua vida pode ser muito mais
do que os limites da lona do circo fazem supor.
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A família de Aglaja (à dir.) busca uma vida nova na Hungria. |
Embora
as primeiras imagens apontem para um visual lúdico e fantasioso, e haja alguns
lances cômicos, o filme é um drama por vezes pesado, que em mãos inábeis se
converteria em uma narrativa difícil e lacrimosa. No entanto, a diretora
Krisztina Deák sabe trabalhar os elementos do roteiro e consegue dosar o
resultado, alcançando um bom equilíbrio entre a descida aos infernos da jovem
Aglaja e seus anseios adolescentes - no começo do filme, a personagem tem 5
anos; quando sai do internato, 10 anos se passaram. Apesar disso, opta por um
final comercial, quando poderia ter ousado mais, sem que tal ousadia soasse
como incoerência.
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Ar fresco (2006) |
Esse peso que ameaça tornar Aglaja uma experiência
desagradável é o que norteia o outro filme que vi, Ar fresco (2006),
também dirigido por uma mulher, Agnés Kocsis - mais um pouco e poderiam
organizar uma submostra só de filmes húngaros dirigidos por mulheres! Viola
trabalha como faxineira de banheiro e sai com homens que conhece
ao acaso. Sua filha Angéla é costureira industrial, estuda e tem planos de se
tornar uma grande estilista, desenhando modelitos de roupas nos intervalos do
trabalho. Ambas só se vêem à noite, quando assistem a séries policiais gravadas
no videocassete da sala. Pouco interagem e menos ainda se falam. Levam uma vida
que beira a indigência, contentando-se com as migalhas de satisfação que a vida
oferece - no caso de Angéla, um namorado e sonhos de um futuro melhor; para
Viola, as aulas de dança de salão que freqüenta uma vez por semana. Duas almas
que apenas sobrevivem, enquanto a sorte não muda.
O
desejo de mudança é simbolizado pelos pequenos gestos que injetam ar fresco em suas vidas. Enquanto Viola espirra
desodorante no ar para perfumar um pouco o mau cheiro de seu local de trabalho,
Angéla, mal chega em casa, abre todas as janelas, deixando o vento entrar. Cada uma a seu modo, buscam a lufada de esperança que lhes dê algo mais que a satisfação de um dia mal vivido. Mas a vida pode ser muito dura, e os novos ares podem vir carregados de chumbo.
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O amor pode levar ar fresco à vida de Angéla. |
A
opção narrativa conseguida por meio da montagem é fazer com que o espectador se
sinta um cúmplice anônimo do cotidiano repetitivo e miserável de mãe e filha,
sinta o peso dos dias, das horas, sem que tal imobilidade afete a qualidade do
resultado. O filme se desenrola em tom árido, realçando a desesperança dos
personagens, sublinhado pela fotografia de tons escuros e a ausência de trilha
sonora. Até se torce pelo sucesso de ambas, mas a cena final, que mostra Angéla
enquadrada pela porta do banheiro, eternamente presa em um ritual infinito que
imita o da mãe, não deixa dúvidas quanto à falta de perspectivas que lhes resta.
Dois
bons cartões de visita da filmografia húngara. Deu vontade de assistir e
conhecer mais. Em tempo: o nome da mostra homenageia um conhecido ponto turístico de Budapeste, recentemente rebatizado, e foi escolhido pela crítica internacional para designar os novos realizadores magiares, que circularam com destaque no Festival de Cannes de 2010, além de ser também o título do filme mais antigo exibido no evento, de 2001.
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Antes
que me acusem de ser alienado por não tecer comentários acerca dos movimentos
populares que vêm sacudindo e despertando o país; ou de me refugiar na ilusão
escapista das salas de projeção, esclareço. É claro que tenho opinião sobre o
tema, e acho fundamental que intelectuais, literatos e supostos formadores de
idéias se manifestem e participem da vida pública nacional. Porém, deixo este
assunto para os comentaristas políticos. Nunca revelei a ninguém quais são as
minhas convicções políticas porque entendo que elas só dizem respeito a mim.
Além disso, não quero criar uma cizânia desnecessária externando meus
pensamentos sobre tais fatos e correndo o risco de ser mal interpretado ou
acusado disso e daquilo. Deixa quieto. Já que as coisas andam tão difíceis no
mundo lá fora, que haja uma brecha mínima por onde possamos respirar. Ainda que
esse ar que entra tenha cheiro de fritas.
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