Muita
gente pode ter ficado surpresa com a inclusão de O som ao redor na lista dos 10 melhores filmes de 2012 do
prestigioso The New York Times. Afinal, como pode um filme brasileiro de perfil
autoral, que nem chegou a ser lançado em grande circuito, seduzir a tão severa
crítica norte-americana? Mas, para quem já conhecia o trabalho de seu diretor,
o pernambucano Kleber Mendonça Filho, o resultado não foi nada inesperado.
Surpresa, talvez, foi ele ter alcançado o reconhecimento internacional logo em
seu primeiro longa de ficção (seu primeiro filme no formato foi um
documentário, Crítico, de 2008), após
uma bem-sucedida carreira dirigindo curtas-metragens. Reconhecimento que, pelo
visto, por aqui, continua restrito a um público específico, já que, nos cinemas
brasileiros, o filme teve menos público do que deveria e poderia.
Em
O som ao redor, Kleber simplesmente
ampliou suas potencialidades narrativas que já vinham se desenvolvendo ao longo
dos anos e já eram perceptíveis desde seu primeiro trabalho, o apenas regular A menina do algodão (2002), que nada
mais é do que a transposição para celulóide de uma clássica lenda urbana que corria por sua Recife natal nos anos 70 e depois se espalhou pelo país: estudantes eram atacados nos banheiros e corredores das escolas pela alma de uma menina morta. Mesmo com a fragilidade do
argumento, Kleber chamava a atenção pela fotografia e a forma como trabalhava o
uso do som, recurso empregado com maestria agora. Esses dois
elementos foram fundamentais em seu projeto seguinte, que se constituiu uma
pequena obra-prima do horror e da fantasia, dois gêneros historicamente
escanteados pela produção nacional. Em Vinil
verde (2004), o tom de fábula macabra ganha cores e contornos precisos e o
resultado é uma experiência aterrorizante.
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Vinil verde (2004) |
A
exemplo do que fez na estréia, o diretor voltou a trabalhar na adaptação de uma
lenda, desta vez uma fábula de origem russa, As luvas verdes. O cenário original foi substituído por Recife, mas
isso não faz diferença. Podia se passar em qualquer lugar do mundo: sua
essência, como convém ao gênero, permanece intocada, e seu alcance, universal.
Uma
mulher presenteia a filha com uma caixa de discos com historinhas infantis,
daqueles coloridos, antigos. Mas faz uma ressalva: ela nunca deve escutar o de
cor verde. O apelo é reforçado diariamente antes de a mãe sair para trabalhar.
Pois é justamente o disco proibido que a menina escolhe para tocar em sua
vitrolinha. Dele, emana uma melodia perturbadora: “Nós somos as luvas verdes /
e vamos te pegar.” A partir da audição desta misteriosa cantiga, fatos
aterradores começam a acontecer, até culminarem em um final inusitado.
O
grande mérito do roteiro é fundir dois discursos narrativos em um só,
utilizando elementos de criação do universo fantástico (a narrativa de terror
tradicional) para construir uma metáfora psicológica sobre um rito de passagem.
A gradual desintegração física da mãe representa os anseios de crescimento e o
desejo da criança de se desgarrar da figura materna. Mesmo o estranhamento da
situação, vista com absurda naturalidade pelo olhar infantil, está bem inserido
no contexto moral abarcado pela fábula. Nesse sentido, o jogo proposto pela
dicotomia ficção-realidade ganha força, confundindo o espectador e levando a um
clima de loucura e tensão crescentes.
A
metáfora ganha especial contorno na insistência que a filha demonstra em
desobedecer as ordens maternas, primeiro escutando o disco que lhe fora
proibido, depois comprando um par de luvas verdes, o que também havia sido
desaconselhado pela mãe, que lhe prevenira desse perigo. Chama a atenção também
a curiosa inversão de expectativas geradas pela escolha cromática: geralmente
associado à esperança, o verde aqui se transfigura na cor diabólica, precedendo
tragédias e antecipando o horror.
Tecnicamente,
o filme é muito ajudado pela edição sonora, bastante eficiente, que compõe um
ambiente altamente sugestivo por meio da própria melodia, que ganhou uma letra
assustadora, e de ruídos de um disco empenado, o que ajuda a construir o clima
de medo que domina toda a narrativa.
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Verde, a cor da esperança? Vocês ainda não ouviram nada! |
Privilegiada
por uma montagem competente, a história é contada na forma de uma fotonovela,
por meio de imagens estáticas, com narração em off. Este recurso, que
nem chega a ser especialmente novo no formato, mantém o interesse o tempo todo,
deixando o espectador em constante suspense sobre o que virá a seguir. A câmera
capta planos inclinados, acentuando a sensação de incômodo. A fotografia, ao
mesmo tempo em que realça os ambientes mais iluminados, constrói um absorvente
contraste com as imagens mais escurecidas, o que favorece a sugestão de
pesadelo que, no fim, percorre toda a narrativa.
Após
se provar um legítimo renovador de um gênero tão desgastado e maltratado no
cinema de maneira geral, Kleber voltou-se para as neuroses urbanas e as paixões
impossíveis, respectivamente, com Eletrodoméstica
(2005) e Noite de sexta, manhã de
sábado (2007), retornando ao universo fantástico com a criativa ficção
científica Recife frio (2009). Com O som ao redor, veio a comprovação de
seu talento.
Este e todos os outros curtas de Kleber Mendonça Filho estão
disponíveis no Portacurtas, o maior portal brasileiro do formato. Aproveite e
faça uma retrospectiva completa de sua obra.
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