Em vários países, a data de 1º de abril é celebrada como o Dia da Mentira. Na
Inglaterra e nos Estados Unidos, há uma tradição de os jornais publicarem
manchetes brincalhonas nas primeiras páginas, atraindo a atenção de leitores
desavisados, e ainda há quem acredite ou replique tais gozações como sendo verdades
científicas! Aqui no Brasil, de uns anos para cá, com a popularização de sites
especializados em paródias e vídeos de humor na internet, a essência da data
perdeu um tanto de força, porque as brincadeiras acabam sendo diárias.
Por uma desagradável ironia, há um outro aspecto relacionado à data aqui no país, e este sem qualquer graça,
muito pelo contrário. Na véspera, 31 de março de 1964, o Brasil foi dormir à sombra do Golpe Militar que lançou o país em duas décadas de trevas durante as quais a ditadura
controlou cada movimento dos cidadãos. Na manhã seguinte, o popular Dia da Mentira, o clima no ar já não estava propício para brincadeira nem gozações. Foi o período mais negro da vida pública
nacional, e somente quem o viveu pode testemunhar por experiência própria - eu
nasci exatamente no meio dessa época e não tenho muitas lembranças, e mesmo as
que me restam são um tanto difusas e pouco confiáveis.
A
julgar pela quantidade de obras artísticas produzidas tendo a ditadura como
mote, esta é uma ferida que continua aberta e dificilmente irá cicatrizar na alma brasileira.
Foram incontáveis músicas escritas, filmes produzidos e livros publicados sobre
o assunto, alguns tratando-o de forma indireta. Neste ano em que o Golpe
Militar completa seu jubileu de ouro, é uma boa oportunidade para ver, rever ou
conhecer a produção cultural que se debruçou sobre os chamados Anos de Chumbo.
O assunto sempre foi recorrente no cinema brasileiro, e não é difícil encontrar bons exemplos de como o período serviu de base para diversas produções. A
lista a seguir relaciona títulos óbvios com outros em que o assunto é apenas
citado, o que serve para ampliar a discussão para além do tema e estabelecer um
diálogo com outras conexões da vida nacional.
VOZES
DO MEDO
(1972) – Um dos primeiros a abordar
as conseqüências do Golpe. Realizado por vários diretores, que se revezam
apresentando histórias independentes e alegóricas sobre a situação do país.
Filmado de forma quase clandestina, tem inegável valor histórico, compensando o
conjunto algo irregular.
PRA
FRENTE, BRASIL (1982) – Durante a Copa de 70, um pacato
cidadão é confundido com um ativista político, sendo preso e torturado.
Paralelamente, sua família o procura e busca notícias. Um dos mais famosos realizados
dentro do período da ditadura, venceu o Festival de Gramado daquele ano. Foi inicialmente censurado, mas liberado com cortes um ano depois. Curiosidade: o hoje ministro Celso Amorim, à época presidente da extinta Embrafilme, foi um dos financiadores do projeto, e acabou sendo demitido por pressão militar.
CABRA
MARCADO PARA MORRER (1984) – O filme
começou a ser rodado 20 anos antes, mas foi interrompido pelo Golpe Militar. Duas
décadas depois, Eduardo Coutinho voltou aos mesmos lugares, entrevistou as
mesmas pessoas e tentou desvendar o que teria acontecido durante aquele
período. Está sendo finalmente lançado em DVD, em uma edição bem caprichada da
Videofilmes.
QUE
BOM TE VER VIVA (1989) – De Lúcia
Murat. Mistura de documentário (com depoimentos reais exibidos na tela em uma
janelinha 3x4) e ficção, é uma ode às mulheres que participaram da luta armada,
simbolizadas na voz de uma ex-guerrilheira, interpretada por Irene Ravache, que relembra momentos de sua
atuação naquele período.
LAMARCA
(1994) - Os últimos
dias de vida de Carlos Lamarca, que desertou do Exército e se tornou um dos
mais destacados líderes da oposição política nos anos 60. Elogiada atuação de
Paulo Betti no papel principal.
O
QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (1997)
– Adaptado de livro homônimo escrito por Fernando Gabeira, é um dos títulos mais
famosos da Retomada, muito criticado por pesquisadores e historiadores,
que apontaram inúmeras falhas. Mas teve carreira vitoriosa no exterior e chegou
a ser indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro (perdeu para o holandês Caráter).
AÇÃO
ENTRE AMIGOS (1998) – Acerto de contas promovido por quatro amigos presos e torturados nos
anos 70. O tempo passa e 25 anos depois, eles descobrem que o algoz continua
vivo. Resolvem então executar um plano de vingança. Um dos títulos mais
celebrados do diretor Beto Brant.
CASSETA
E PLANETA – A TAÇA DO MUNDO É NOSSA (2003) – Primeiro filme do
grupo, que somente se arriscou nas telas mais uma vez, no igualmente fraco Casseta e
Planeta – Seus problemas acabaram!!! (2006), ambos muito pobres se comparados
ao programa de TV. Também foi fracasso de bilheteria, sobretudo porque é
difícil fazer piada com um tema tão sério e doloroso.
ARAGUAYA,
A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO (2004) – Joga luzes
sobre um dos episódios menos comentados do período, a Conspiração do Araguaya,
mostrando como a resistência captou também membros em comunidades rurais do
Brasil Central. Também é entremeado por depoimentos de quem viveu o conflito
(José Genoíno é um deles). Sério e bem-produzido, mas tem um som catastrófico!
SONHOS
E DESEJOS
(2006) – Possivelmente o pior filme
já feito sobre o tema. Nos anos 70, um professor de literatura
engajado na guerrilha contra os militares se muda para Belo Horizonte com a
namorada e lá acolhem um companheiro de luta ferido na mão. O diretor Marcelo
Santiago
tranca esses três personagens em um "aparelho"
e conduz a história de forma tola e letárgica, sem que nada aconteça, sem que
nenhum conflito se imponha, nenhuma questão pertinente seja levantada. Ricardo
Pereira paga mico e Mel Lisboa repete os cacoetes eróticos de sua recém-interpretada Anita
da famosa minissérie da TV.
BATISMO
DE SANGUE (2006) – A luta armada
vista pelos olhos da Igreja. O palco da ação é um convento, no final dos anos
60, no qual os padres locais apóiam um grupo de guerrilheiros e, por isso, são
presos e torturados. Prêmio de Melhor Diretor para o argentino Helvécio Ratton
e fotografia no Festival de Brasília.
O
ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS (2006) – Um dos mais líricos a abordar o assunto. Menino fica aos
cuidados do avô quando seus pais militantes precisam fugir do país para
escapar do cerco aos oposicionistas do regime. Uma das grandes surpresas da história do
Oscarito, ao receber o prêmio de melhor filme, superando o favorito Tropa de elite.
ZUZU ANGEL (2006) – A luta da estilista Zuzu Angel para localizar e enterrar o corpo do filho, seqüestrado e morto pelos militares. Reconstituição de um dos mais famosos casos do período. Comovente atuação de Patrícia Pillar como a protagonista. Oscarito de Figurinos.
ZUZU ANGEL (2006) – A luta da estilista Zuzu Angel para localizar e enterrar o corpo do filho, seqüestrado e morto pelos militares. Reconstituição de um dos mais famosos casos do período. Comovente atuação de Patrícia Pillar como a protagonista. Oscarito de Figurinos.
OS
DESAFINADOS
(2008) – Quatro amigos tentam a
sorte na música durante a eclosão da Bossa Nova, nos anos 60. O roteiro se
concentra nos dramas pessoais e profissionais de cada um, mas toca de leve no
assunto quase no fim da história, quando um dos artistas se revela integrante
da luta armada e acaba sendo perseguido pelos militares.
UMA
LONGA VIAGEM
(2011) – Outro de Lúcia Murat. Misto de drama e documentário, narra os
desencontros de três irmãos: o mais novo é mandado para Londres, para não
entrar na luta armada que acaba por seduzir o irmão mais velho. Já a irmã do
meio se torna presa política e, anos depois, cineasta formada, relembra a
história por meio de cartas que trocou com o irmão exilado e entrevistas feitas
com ele. Sensível e poético, é uma espécie de expurgo das dores familiares da
diretora. Vencedor do Festival de Gramado, também rendeu a Caio Blat o prêmio
de melhor ator.
O
DIA QUE DUROU 21 ANOS (2012) –
Produzido pela TV Cultura e dividido em quatro partes, revela uma até então
desconhecida conspiração segundo a qual o Golpe Militar teria sido uma forma de
o governo norte-americano de John Kennedy e Lyndon Johnson controlar o avanço
de idéias "comunistas" no Brasil. Um dos melhores documentários sobre o tema.