quinta-feira, 20 de março de 2014

A bela criação e a fera criadora

Walt nos bastidores de Mary Poppins (2013)
Embora tenha colhido diversos elogios na temporada pré-Oscar, Walt nos bastidores de Mary Poppins terminou esnobado pela Academia, que só o indicou para Melhor Trilha Sonora. Triste esquecimento. Sua indicação à categoria principal faria justiça à alta qualidade dos selecionados deste ano, bem como poderia ter recebido no mínimo mais três nomeações.

Na época em que eram feitas as adaptações de Harry Potter para o cinema, ficou famoso o controle rígido que a autora J. K. Rowling mantinha sobre cada aspecto da produção. Cuidava de tudo, desde os diálogos até pequenos detalhes dos figurinos. Nada podia sair em desacordo com sua visão de criadora dos personagens. Se não tivesse sua aprovação, simplesmente não ia para a tela. Pois em 1964 a senhora Pamela Travers era uma espécie de J. K. Rowling ampliada por um poderoso microscópio. Naquele tempo, ela já era a famosa criadora de uma série de livros protagonizados por Mary Poppins e vivia da renda dos direitos autorais. Quando o filme começa, porém, Travers está em situação financeira delicada, já que as vendas caíram assustadoramente. Seu agente tenta convencê-la a vender os direitos de adaptação para Walt Disney, fã assumido da personagem e que há mais de 20 anos tentava obter licença para filmar uma história baseada na babá encantada. Pamela resistiu por todos aqueles anos, porque se recusava, entre outros motivos, a ver sua obra diluída em mero instrumento de fazer dinheiro no império de Disney.

É assim que ela vai da sua Austrália natal até os Estados Unidos para uma série de reuniões com o próprio Disney (que prefere ser chamado apenas de Walt por seus funcionários). Muito já se falou e escreveu sobre o "pai" do Mickey, mas pouco se sabe a respeito da autora de Mary Poppins. A julgar pela fita, era uma mulher intragável, amarga, ranzinza, mal-humorada, que começa a desfiar seu rosário de reclamações antes mesmo de o avião decolar. A situação não melhora nem um pouco ao chegar a Los Angeles, apesar da simpatia com que é recebida por parte da equipe de Disney responsável por tocar o projeto da adaptação, os dois letristas da história, o que já causa desagrado a Travers: nem em sonho que Mary Poppins seria convertida em uma boneca dançarina daqueles musicais infantilizados do cinema. Os conflitos vão encorpando à medida em que ela vai determinando o que deve ou não ser feito no filme, os diálogos que considera mais adequados, descrições de cenários etc. Discute tudo, recusa a maioria das sugestões, tenta impor sua vontade. Disney se curva: quer levar a obra para o cinema, torná-la mais conhecida das pessoas. Travers se irrita com a idéia de ver pingüins animados em uma das seqüências, ameaça retornar a seu país. 

Mr. Banks (Farrell, à dir.) foi redimido de suas bebedeiras.
Paralelamente a esses embates, o roteiro engenhoso, escrito em parceria entre Kelly Marcel e Sue Smith, estreantes em longas (ambas egressas de séries de TV, a segunda com mais créditos) recua várias vezes no tempo, até 1906, mostrando a infância da autora - que, vemos de início, se chama Ginty Goff; seu pseudônimo será explicado no momento adequado - e sua relação um tanto conturbada com o pai, o tal Mr. Banks do título original, um beberrão assumido, que era um bom homem, mas incapaz de cuidar de si mesmo, quanto mais de sustentar uma família, que conta também com outra filha, um pouco maior, da qual nada de diz depois de crescida. Oscilando de emprego a emprego, acabou marcando de forma indelével a primogênita, e são essas lembranças que irão nortear a criação artística de Mary Poppins. A cada cena no tempo presente, corresponde uma passagem de sua infância, que ilustra e esclarece certos aspecto de sua obra. 

Na verdade, toda a obra de Travers é um acerto de contas com sua vida. Sua amargura tem razão de ser. O zelo excessivo com que trata sua personagem, contudo, se revelará uma camisa de força. A menos que consiga se libertar, ela a condenará ao esquecimento pelo resto da vida. De certa forma, foi salva por Disney. A cena final, mostrando sua reação ao ver o filme na tela durante a pré-estréia, alternando-se entre o espanto e a sincera satisfação, pode arrancar lágrimas.

Walt e Travers nos bastidores da Disney.
Toda a parte técnica do filme é muito bem-cuidada, desde os figurinos, a direção de arte, a fotografia, conferindo-lhe um visual bonito e atraente. Tom Hanks está bem no papel de Disney, embora a maior parte do mérito se deva à maquiagem, também bastante elogiada e igualmente esquecida pela Academia. Emma Thompson dá seu show particular como Travers. De início ranzinza e até arrogante, vai se transformando na medida em que Mary Poppins vai ganhando verdade na tela. É um expurgo, uma catarse interior. É uma vida redimida pela magia do cinema. 

A crítica especializada, de maneira geral, foi bastante contida e bem pouco entusiasmada com o filme. No meu caso, achei tudo em perfeita sintonia, tanto a ponto de conferir a cotação máxima. Até porque não é preciso ser fã de Mary Poppins para gostar da história e se emocionar com o processo de criação do filme (eu mesmo não morro de amores), mas é claro que os apreciadores do musical irão aproveitar muito mais. Quem gostar, ou os que quiserem conhecer a história de outra forma, pode também ler Mary Poppins e sua criadora, escrito por Valerie Lawson, que acaba de ser lançado pela Prata Editora, como sempre na esteira do filme - pelo menos a capa é diferente do cartaz original!

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