quinta-feira, 27 de março de 2014

Golpe no cinema

Em vários países, a data de 1º de abril é celebrada como o Dia da Mentira. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, há uma tradição de os jornais publicarem manchetes brincalhonas nas primeiras páginas, atraindo a atenção de leitores desavisados, e ainda há quem acredite ou replique tais gozações como sendo verdades científicas! Aqui no Brasil, de uns anos para cá, com a popularização de sites especializados em paródias e vídeos de humor na internet, a essência da data perdeu um tanto de força, porque as brincadeiras acabam sendo diárias.

Por uma desagradável ironia, há um outro aspecto relacionado à data aqui no país, e este sem qualquer graça, muito pelo contrário. Na véspera, 31 de março de 1964, o Brasil foi dormir à sombra do Golpe Militar que lançou o país em duas décadas de trevas durante as quais a ditadura controlou cada movimento dos cidadãos. Na manhã seguinte, o popular Dia da Mentira, o clima no ar já não estava propício para brincadeira nem gozações. Foi o período mais negro da vida pública nacional, e somente quem o viveu pode testemunhar por experiência própria - eu nasci exatamente no meio dessa época e não tenho muitas lembranças, e mesmo as que me restam são um tanto difusas e pouco confiáveis.

A julgar pela quantidade de obras artísticas produzidas tendo a ditadura como mote, esta é uma ferida que continua aberta e dificilmente irá cicatrizar na alma brasileira. Foram incontáveis músicas escritas, filmes produzidos e livros publicados sobre o assunto, alguns tratando-o de forma indireta. Neste ano em que o Golpe Militar completa seu jubileu de ouro, é uma boa oportunidade para ver, rever ou conhecer a produção cultural que se debruçou sobre os chamados Anos de Chumbo.

O assunto sempre foi recorrente no cinema brasileiro, e não é difícil encontrar bons exemplos de como o período serviu de base para diversas produções. A lista a seguir relaciona títulos óbvios com outros em que o assunto é apenas citado, o que serve para ampliar a discussão para além do tema e estabelecer um diálogo com outras conexões da vida nacional.

VOZES DO MEDO (1972) – Um dos primeiros a abordar as conseqüências do Golpe. Realizado por vários diretores, que se revezam apresentando histórias independentes e alegóricas sobre a situação do país. Filmado de forma quase clandestina, tem inegável valor histórico, compensando o conjunto algo irregular.

PRA FRENTE, BRASIL (1982) – Durante a Copa de 70, um pacato cidadão é confundido com um ativista político, sendo preso e torturado. Paralelamente, sua família o procura e busca notícias. Um dos mais famosos realizados dentro do período da ditadura, venceu o Festival de Gramado daquele ano. Foi inicialmente censurado, mas liberado com cortes um ano depois. Curiosidade: o hoje ministro Celso Amorim, à época presidente da extinta Embrafilme, foi um dos financiadores do projeto, e acabou sendo demitido por pressão militar.

CABRA MARCADO PARA MORRER (1984) – O filme começou a ser rodado 20 anos antes, mas foi interrompido pelo Golpe Militar. Duas décadas depois, Eduardo Coutinho voltou aos mesmos lugares, entrevistou as mesmas pessoas e tentou desvendar o que teria acontecido durante aquele período. Está sendo finalmente lançado em DVD, em uma edição bem caprichada da Videofilmes.

QUE BOM TE VER VIVA (1989) – De Lúcia Murat. Mistura de documentário (com depoimentos reais exibidos na tela em uma janelinha 3x4) e ficção, é uma ode às mulheres que participaram da luta armada, simbolizadas na voz de uma ex-guerrilheira, interpretada por Irene Ravache, que relembra momentos de sua atuação naquele período.

LAMARCA (1994) - Os últimos dias de vida de Carlos Lamarca, que desertou do Exército e se tornou um dos mais destacados líderes da oposição política nos anos 60. Elogiada atuação de Paulo Betti no papel principal.
 
O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (1997) – Adaptado de livro homônimo escrito por Fernando Gabeira, é um dos títulos mais famosos da Retomada, muito criticado por pesquisadores e historiadores, que apontaram inúmeras falhas. Mas teve carreira vitoriosa no exterior e chegou a ser indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro (perdeu para o holandês Caráter).

AÇÃO ENTRE AMIGOS (1998) Acerto de contas promovido por quatro amigos presos e torturados nos anos 70. O tempo passa e 25 anos depois, eles descobrem que o algoz continua vivo. Resolvem então executar um plano de vingança. Um dos títulos mais celebrados do diretor Beto Brant.

CASSETA E PLANETA A TAÇA DO MUNDO É NOSSA (2003) – Primeiro filme do grupo, que somente se arriscou nas telas mais uma vez, no igualmente fraco Casseta e Planeta – Seus problemas acabaram!!! (2006), ambos muito pobres se comparados ao programa de TV. Também foi fracasso de bilheteria, sobretudo porque é difícil fazer piada com um tema tão sério e doloroso.

ARAGUAYA, A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO (2004) – Joga luzes sobre um dos episódios menos comentados do período, a Conspiração do Araguaya, mostrando como a resistência captou também membros em comunidades rurais do Brasil Central. Também é entremeado por depoimentos de quem viveu o conflito (José Genoíno é um deles). Sério e bem-produzido, mas tem um som catastrófico!

SONHOS E DESEJOS (2006) – Possivelmente o pior filme já feito sobre o tema. Nos anos 70, um professor de literatura engajado na guerrilha contra os militares se muda para Belo Horizonte com a namorada e lá acolhem um companheiro de luta ferido na mão. O diretor Marcelo Santiago tranca esses três personagens em um "aparelho" e conduz a história de forma tola e letárgica, sem que nada aconteça, sem que nenhum conflito se imponha, nenhuma questão pertinente seja levantada. Ricardo Pereira paga mico e Mel Lisboa repete os cacoetes eróticos de sua recém-interpretada Anita da famosa minissérie da TV.

BATISMO DE SANGUE (2006) – A luta armada vista pelos olhos da Igreja. O palco da ação é um convento, no final dos anos 60, no qual os padres locais apóiam um grupo de guerrilheiros e, por isso, são presos e torturados. Prêmio de Melhor Diretor para o argentino Helvécio Ratton e fotografia no Festival de Brasília.

O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS (2006) – Um dos mais líricos a abordar o assunto. Menino fica aos cuidados do avô quando seus pais militantes precisam fugir do país para escapar do cerco aos oposicionistas do regime. Uma das grandes surpresas da história do Oscarito, ao receber o prêmio de melhor filme, superando o favorito Tropa de elite.

ZUZU ANGEL (2006)  A luta da estilista Zuzu Angel para localizar e enterrar o corpo do filho, seqüestrado e morto pelos militares. Reconstituição de um dos mais famosos casos do período. Comovente atuação de Patrícia Pillar como a protagonista. Oscarito de Figurinos.

OS DESAFINADOS (2008) – Quatro amigos tentam a sorte na música durante a eclosão da Bossa Nova, nos anos 60. O roteiro se concentra nos dramas pessoais e profissionais de cada um, mas toca de leve no assunto quase no fim da história, quando um dos artistas se revela integrante da luta armada e acaba sendo perseguido pelos militares.

UMA LONGA VIAGEM (2011) – Outro de Lúcia Murat. Misto de drama e documentário, narra os desencontros de três irmãos: o mais novo é mandado para Londres, para não entrar na luta armada que acaba por seduzir o irmão mais velho. Já a irmã do meio se torna presa política e, anos depois, cineasta formada, relembra a história por meio de cartas que trocou com o irmão exilado e entrevistas feitas com ele. Sensível e poético, é uma espécie de expurgo das dores familiares da diretora. Vencedor do Festival de Gramado, também rendeu a Caio Blat o prêmio de melhor ator.

O DIA QUE DUROU 21 ANOS (2012) – Produzido pela TV Cultura e dividido em quatro partes, revela uma até então desconhecida conspiração segundo a qual o Golpe Militar teria sido uma forma de o governo norte-americano de John Kennedy e Lyndon Johnson controlar o avanço de idéias "comunistas" no Brasil. Um dos melhores documentários sobre o tema.

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