quinta-feira, 19 de junho de 2014

Cinderela brasileira - Um musical trash

Cinderela baiana (1998)
Hoje ninguém mais fala em Carla Perez e dificilmente as novas gerações terão o dissabor de ouvir alguma composição do igualmente esquecido, mas resistentemente ainda na ativa, grupo É O Tchan. Mas quem viveu os anos 90 se lembra muito bem do que essa loura de corpo escultural provocou no imaginário popular. De certa forma, aquele período foi devidamente imortalizado em vídeo no quase inacreditável Cinderela baiana, que chegou aos cinemas tão logo Carla se tornou um fenômeno midiático, no final daquela década.

A segunda metade dos anos 90 foi particularmente trágica para a música brasileira. Se hoje torcemos os ouvidos para os acordes toscos de popozudas e funkeiros, tudo pode ter começado lá atrás, quando a moda era a Axé Music, gênero que se originou na Bahia e que semanalmente despejava nas rádios algumas das letras e refrões mais ridículos de que se guardam notícias. São dessa época pérolas como "Dança da Manivela" e "Na boquinha da garrafa". Ouvidas hoje, até podem parecer requintados trabalhos de poesia lírica se comparados com o que nos é empurrado por poderosas e lepo-lepos. E, para se fazer justiça, é verdade que o gênero também rendeu artistas de certo talento, como Daniela Mercury e Emanuele Araújo, hoje atriz, mas que começou como vocalista na Banda Eva. Os grupos mais populares pareciam competir na arte de se esmerar na criação de coreografias e dancinhas cujos movimentos acompanhavam a indigência de suas canções.

Foi nesse cenário de alegre desolação que se destacou o Gerasamba, egresso das ruas de Salvador. Começou como sucesso local, mas ganhou força depois que sua formação passou a contar com Carla Perez. Era uma menina loura, linda, na força e no vigor de seus 18 anos, que rebolava com mestria e acabava capitalizando a atenção, sobretudo masculina, durante as apresentações do grupo, que contava ainda com a morena Débora Brasil (que logo abandonou o barco), Jacaré, a parte masculina do show de dança (posteriormente alçado à condição de humorista em antigo programa de Renato Aragão) e os dois remanescentes de hoje, Beto Jamaica e o folclórico Compadre (ou "Cumpadi") Washington, o mesmo que virou meme na internet com seu bordão "Sabe de nada, inocente!". Depois que começou a estourar nas paradas, descobriu-se que o nome Gerasamba já estava registrado e pertencia a outro grupo. O jeito foi mudá-lo para É O Tchan, aproveitando a relação com o título da, hum, música de maior sucesso do quinteto, o "Melô do Tchan".
Lázaro Ramos (esq.): todos têm uma mancha no currículo. 

Muitas mulheres que hoje são respeitáveis mães de família já rebolaram sem nenhum constrangimento ao som das músicas do grupo, imitando o gestual de Carla Perez. Não adianta inventar desculpas, era ela a estrela maior, com seu furacão nos quadris, seu sorriso infantil e suas madeixas esvoaçantes. Carla ganhou vida própria e se tornou alvo de todo tipo de interesse comercial. Era quase onipresente em programas popularescos da televisão, requisitada para entrevistas, embora raramente tivesse alguma coisa de útil a dizer, estrelou diversas campanhas publicitárias, virou apresentadora no SBT e já no ano seguinte, 1996, posou para a Playboy, repetindo a dose outras duas vezes. Mas escapou de ter um romance escandaloso com algum jogador de futebol, coisa que hoje seria esperada ou até inventada pela imprensa sensacionalista. Retirou-se do cenário artístico em 2001, após se casar com o cantor Xanddy, e estão juntos até hoje, o que não deixa de ser uma surpresa, se considerarmos a alta rotatividade da vida conjugal dos artistas.

Não sei se o roteiro do também diretor e diretor de fotografia Conrado Sanchez, com breve experiência na Boca do Lixo, buscou inspiração na peça Pigmalião, de Bernard Shaw, que já foi adaptada várias vezes para a tela (a mais famosa foi em Minha bela dama, 1964, vencedor de 8 Oscars), mas o fato é que ela serve de essência à história da "jóia bruta" que acaba sendo lapidada e "ascendendo" socialmente. No caso, Carla Perez é mostrada desde a infância sofrida no interior da Bahia, quando perde a mãe e se muda para Salvador com o pai, que assume um cargo em um pequeno escritório de advocacia.

Sorridente e amarelinha que nem o Piu-Piu.
O filme dá um salto abrupto no tempo e Carla reaparece já adolescente, dividindo os estudos (que logo abandonou, mas isso não é dito) com sua paixão pela dança. Conhece dois vagabundos de bom coração, um deles vivido por Lázaro Ramos em seu segundo papel no cinema, que a ajudarão a se tornar uma dançarina de sucesso. Carla passa a freqüentar uma academia, onde ensaia os primeiros passos, sofre com a inveja de um das alunas ricas, ganha a simpatia do professor e é descoberta por um poderoso empresário do ramo musical, feito de forma exagerada e caricatural por Perry Salles. Depois é o que todos conhecem.

A história de vida de Carla Perez, tal como mostrada no filme, sensibiliza muita gente, em especial a nós, brasileiros, que gostamos de ver exemplos de pessoas que saíram do nada e, graças a seu esforço pessoal, aliado a um pouco de sorte, conseguem arranjar um lugar ao sol. Neste sentido, o filme se equipara a outros tantos dramas de superação nos quais o "herói" sempre vence no final. O problema é que ninguém levava Carla Perez a sério e, além disso, Cinderela baiana tem defeitos indefensáveis. O filme foi pessimamente lançado nos cinemas ("na verdade, foi arremessado", como declarou à época o produtor A. P. Galante, outro veterano da Boca do Lixo e que assinou aqui seu derradeiro trabalho) e destruído pela crítica especializada. Também é massacrado por todos que já o viram e apontado como o pior filme brasileiro de todos os tempos, um exagero, sem dúvida, creio que mais por se tratar de implicância com Carla Perez do que por outro motivo.

Pelo social, pelas crianças e pelo remelexo.
Tecnicamente, é um desastre. O som é catastrófico, algo imperdoável em uma fita musical; grande parte do elenco apenas declama suas falas, sem emprestar qualquer sentimento aos personagens; os números de dança são repetitivos e praticamente restritos à academia; a marcação de tempo é caótica, com ações se sucedendo de forma desigual para Carla e seu pai. Ao menos o diretor teve o bom senso de dar poucas falas à Carla, na certeza que ela não era atriz e, assim, nem precisou compor nuance nenhuma, bastou fazer ela mesma e pronto. A transformação da menina pobre em moça rica e de sucesso é bem marcada pelas roupas e pela postura corporal, no começo recolhida em si mesma, depois altiva e segura. O final também é esquemático, com um discurso forçado a favor da igualdade social, uma simbólica libertação de passarinhos e todo mundo dançando ao som de "Pau que nasce torto". Simplesmente ridículo. É tudo muito ruim, mas, acredite, há coisas bem piores nas telas tupiniquins.

Se na vida real Carla Perez escolheu se resguardar depois de casada, abandonando a carreira, embora ainda toque projetos artísticos locais, seu filme não teve a mesma opção e foi condenado à danação eterna. Sem uma devida digitalização, Cinderela baiana foi esquecido no formato VHS e hoje só pode ser encontrado nas locadoras mais completas (que são cada vez mais raras) ou caçado na rede, que assim cumpre mais uma vez o papel de preservar parte da memória do cinema nacional. Ou vai ver, o ostracismo talvez seja o que mereça essa pérola do trash. 

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