Lincoln (2012) |
De todos os filmes
indicados ao Oscar este ano, o que eu menos tinha vontade de assistir era
justamente o recordista de nomeações, Lincoln.
Pensava: "Caramba, duas horas e meia vendo um filme que fala de política,
debate leis de outro país, e ainda por cima trata de uma personalidade da qual
pouco ou nenhum interesse resta para nós, brasileiros? Haja saco!" Mas
precisava assistir, era meu dever de cinéfilo e quase uma missão a que me
imponho anualmente - desde 2000 sempre vejo todos os indicados na categoria
principal, para avaliar se a escolha foi justa (só não vi a trilogia O senhor dos anéis porque quero ler os
livros primeiro - eu sou um chato).
Fui com uma prima,
também cinéfila, de passagem pelo Rio, em uma sessão de sábado à tarde (não
gosto de ir ao cinema nos fins de semana, o ingresso é bem mais caro, as salas
estão mais cheias, e, portanto, a chance de encontrarmos algum idiota
mal-educado é maior), que estava lotada. Primeira surpresa: o público se
comportou muito bem, sem conversinhas paralelas ou celulares retinindo na nossa
paciência. Segunda surpresa: o filme é muito bom. Mais que isso, é ótimo,
merecendo as quatro estrelas da minha avaliação. Parece que não há mais dúvida
sobre quem leva o Oscar para casa este ano. Se antes eu já achava uma dessas
escolhas indigestas com que a Academia nos brinda de vez em quando (lembram-se
de Crash - no limite, em 2006?),
agora afirmo sem pestanejar: se o Oscar ficar nas mãos de Lincoln, estará em muito boa companhia.
Lincoln: à frente de seu tempo. |
Verdade seja dita que achei os cerca de primeiros 50 minutos de uma chatice assustadora. Um bando de
homens, quase todos assemelhados entre si por causa das perucas e do figurino
de época, discutindo injunções políticas e constitucionais norte-americanas, em
ritmo lento, com uma trilha sonora neutra, que não deixa maiores impressões. Isso é importante para marcar o contexto da história, mas não nego que funciona também como convite a um cochilo, especialmente para o público desacostumado a filmes desse porte. No entanto, os 100 minutos restantes são realmente
notáveis, a ponto de se acompanhar com todo o interesse até a resolução final.
É provável que a maioria dos espectadores médios do filme desconheçam toda a
história, e não saibam, portanto, o que de fato aconteceu (mas basta uma
conferida rápida na sinopse para descobrir o mistério do roteiro); a esses, acrescente-se
um elemento de suspense, que pode servir para atrair a atenção de quem não está
muito preocupado ou interessado nos meandros políticos da história. A platéia também
gostou do que viu e aplaudiu no final da projeção.
Ao contrário do que
muita gente pode pensar, o filme não é uma biografia de Abraham Lincoln, o 16º
presidente dos Estados Unidos e até hoje considerado um parâmetro de retidão
política e ética buscado por seus sucessores desde então. O roteiro, de Tony Kushner,
baseado no livro Team of rivals: the genious
of Abraham Lincoln, de Doris Kearn Goodwin (recém-lançado no Brasil pela
Record em versão reduzida e apenas com o nome Lincoln na capa), foca suas atenções no ano capital de 1865, no
final da Guerra de Secessão, e acompanha os esforços empreendidos pelo presidente
para que fosse aprovada a 13ª Emenda à Constituição Norte-Americana. Não era
uma lei ordinária qualquer, mas uma determinação que abolia a escravidão no
país e, com isso, lançava os Estados Unidos a uma nova era mundial no
reconhecimento da igualdade entre os homens. Acompanhamos as estratégias
utilizadas por Lincoln na tentativa de conseguir o seu intento, ainda que
usasse de artifícios moralmente condenáveis, como a compra de votos. Mas a questão
que se impõe é: Lincoln não buscava favorecimento pessoal, e sim deixar um
legado maior que si próprio, pondo seu país à frente de sua vaidade. Uma aula
para a classe política de quase todos os países - nem preciso dizer que
sobretudo no Brasil. O roteiro também ganha pontos por evitar o triunfalismo
que seria natural de se esperar em uma produção do gênero. Não há a preocupação
de se endeusar o personagem, que é mostrado em todas as suas facetas, das mais
ousadas às mais frágeis. Lincoln era um homem comum, que agia segundo sua
consciência. E vislumbrava o melhor para sua nação.
Mary-Todd (Sally Field): mãe e primeira-dama. |
Tudo funciona muito bem
em Lincoln: a direção de arte
cuidadosa reconstitui com perfeição os cenários e ambientes da época; a
fotografia de tons sombrios realça os aspectos claustrofóbicos dos gabinetes e
dos interiores nos quais se passa a maior parte da ação; o tom austero da
narrativa convida o espectador a pensar e formular suas próprias opiniões, algo
muito raro no cinema atual. Mas nada disso seria possível se Spielberg não
tivesse se cercado de um elenco excepcional. No papel-título, o inglês Daniel
Day-Lewis dá mais um show de interpretação, compondo um Lincoln em detalhes
mínimos, como a inflexão de voz e a ligeira curvatura corporal. Sally Field tem
poucas chances, mas arrebata o espectador quando aparece na pele da sofrida
Mary-Todd, a primeira-dama angustiada pelo destino de seu filho mais velho, uma
participação pequena mas expressiva de Joseph Gordon-Levitt. Ainda Tommy Lee
Jones (como Thaddeus Stevens) e David Strathairn (como William Seward)
abrilhantam mais o resultado encarnando os maiores aliados de Lincoln.
Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones): aliado. |
O Oscar seria uma boa
forma de coroar e garantir lugar eterno na história para este grande filme, mas
as recentes vitórias de Argo no Globo
de Ouro e no SAG ameaçam seu favoritismo. Será injustiça se perder? O tempo,
como sempre, dirá. Da mesma forma como reverbera até hoje o legado de político exemplar que
Lincoln deixou em sua passagem pela Casa Branca. Um legado maior que sua própria vida.