A primeira impressão é a que
fica, diz a sabedoria popular. Isso vale também para o cinema. Quando descobri
este Sweet movie, o efeito que teve
sobre mim foi tão impactante que até hoje, cerca de 10 anos após tê-lo visto
pela primeira e única vez, me lembro de quase todas as suas cenas, alguns
diálogos e até algumas musiquinhas entoadas ao longo do filme. Uma impressão
inicial que justificou as cinco estrelas que conferi a ele e que traduz muito
bem a expressão "experiência cinematográfica” que uso de vez em quando. Posso
dizer que ninguém sai ileso depois de assisti-lo, ainda que por duas vias clássicas:
ou se ama, ou se odeia.
Dirigido em 1974 por Dusan Makavejev, que mais tarde faria Montenegro - pérolas e porcos, o filme é uma lenda. Anos antes de descobri-lo, lembro de ter lido uma
nota rápida em um jornal a respeito do festival de escatologia e absurdos que
permeiam a trama. Acontece que o filme nunca havia sido lançado no Brasil até
então, o que só aguçou minha curiosidade. Em 2004, saiu em DVD, em uma edição
bem limitada por uma distribuidora pequena e já falida, MovieStar, o que me
tornou possível tomar conhecimento dessa obra tão controvertida. As polêmicas
de fato fazem sentido. Ainda que se aproxime seu quadragésimo aniversário e o
mundo tenha mudado bastante, o filme ainda choca, de verdade, embora há quem o ache datado.
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O barco: delírio flutuante. |
Simplificando ao máximo, a
história se passa em 1984 e acompanha duas mulheres: uma jovem, eleita Miss Mundo, e a comandante de um navio de açúcar que atrai os
homens com suas idéias revolucionárias e suas canções de guerra. As duas
histórias se completam, mas não se cruzam; o conjunto de idéias expostas nos
dois segmentos é que faz a unidade do filme. Bom, mas este é só um resumo
altamente bem-comportado e que não indica nada. Fácil dizer que na época de seu
lançamento, o filme era provavelmente a mais violenta mensagem libertária e
anti-inconformista que o cinema já ousara propagar, e tenho para mim que ele
manteve seu vigor mesmo após tantos anos. Makavejev, um dos grandes nomes do cinema eslavo, quebra
todas as regras existentes, em todos os sentidos. A narrativa é fragmentada, mas
bastante compreensível, alegórica, toda envolta em uma infinidade de metáforas
e manifestações surreais, nas quais reside muito de sua força. Há basicamente
três molas-mestras no filme: sexo, comida e poder. Estes três elementos estão
intrinsecamente ligados, e é preciso compreender a profunda ligação existente
entre eles, bem como seus significados em um contexto simbólico, para
compreender as engrenagens da história. Há toda uma leitura psicanalítica por
trás dos excessos. Nada é gratuito, ainda que por vezes as situações possam
soar forçadas, sem sentido. Tudo tem uma explicação, camuflada em um complexo
jogo de simbolismos e ironias.
O filme é tecnicamente
irretocável, desde a inusitada trilha sonora (uma característica dos filmes
eslavos, a música é sempre muito alegre, vibrante, dando apoio preciso às
cenas) até os detalhes da decoração do navio comandado pela solitária
guerrilheira. A criatividade de algumas soluções combina-se adequadamente com a
poesia fatalista e melancólica de outras, como em dois momentos antológicos: a
mulher embutida dentro da mala e a sedução das crianças pela guerrilheira ao
som de música clássica. Cinema em estado puro. Apesar da genialidade de tais
seqüências, elas terminam por se constituir em momentos isolados dentro do
turbilhão de excessos sexuais e escatológicos que surgem na maior parte do
tempo.
Esse delírio visual de Makavejev poderia
ser classificado como um “pornô político-escatológico”. Há nudez total e
frontal de atores e atrizes, freqüente e abundante. Mas vale o lembrete: o sexo
apresentado é destituído de qualquer erotismo. Ao contrário. Não acho que seja
fácil ficar excitado com o que se vê na tela, principalmente se levarmos em
conta o que foi dito mais atrás, ou seja, a alegoria e o simbolismo das
representações suplantam em profundidade as conotações eróticas que a história
possa conter. O sexo é usado como arma poderosa no combate à uma sociedade
capitalista e acomodada com situações estabelecidas e aceitas em nome de uma
pretensa “normalidade” (repare na letra da segunda canção, que cita as alegrias
da vida).
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Sexo e chocolate: prazer de um e de outro. |
Este combate alcança seu momento
crucial na longa seqüência do jantar, cerca de 20 minutos ininterruptos, quase
no fim do filme. Não dá para descrever para não diminuir o choque, mas, a menos
que minha memória me traia, não lembro de ter visto nada parecido no cinema,
descontando, obviamente, as bobagens sanguinolentas etiquetadas como
"terror" de hoje em dia. Na verdade, encontro um paralelo semelhante
no banquete de A comilança, do Marco
Ferreri. Mas este aqui supera o delírio gastronômico daquele filme. É uma
passagem especialmente perturbadora, insana, doentia, que pode levar os
espectadores mais sensíveis a desligarem o aparelho. Não há concessão: ela incomoda,
provoca, testa todos os nossos limites. Quem suportar, porém, compreenderá
todas as questões propostas pelo filme e entenderá o motivo de tanta polêmica.
Saberá também porque o filme virou objeto de culto para um certo tipo de
platéia.
Apesar da ironia do título, o
filme nada tem de doce ou agradável. E pode mesmo ser amargo ou difícil para
muitos espectadores. No entanto, assisti-lo é, de fato, viver uma dessas
experiências únicas que o cinema nos proporciona. Abra sua guarda e prove Sweet movie. Pode ser uma delícia.
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