quinta-feira, 7 de março de 2013

50 tons de leitura

Cinqüenta tons de cinza (Intrínseca)

No texto "Os tons do erotismo", publicado aqui no ano passado, escrevi sobre o fenômeno editorial da Trilogia Cinqüenta Tons baseado em informações publicadas na imprensa, já que eu ainda não havia lido nenhum dos livros em questão. Na ocasião, admiti que um dia, quando não tivesse nada muito urgente para ler, poderia me dedicar à leitura da obra, para fundear uma opinião avalizada. E agora, depois de ter devorado as quase 500 páginas de Cinqüenta tons de cinza (ganhei um exemplar de presente nesse começo de ano), sinto-me à vontade para escrever com conhecimento de causa sobre a obra que ainda vem causando frisson no mercado editorial brasileiro, rendeu capas de revistas importantes, virou debate em programas de televisão de baixo nível... Enfim, tornou-se impossível ficar indiferente a ela.

É fácil saber porque o livro causou tanto alvoroço nos círculos e mídias sociais. A imprensa teve um papel significativo nesse processo, uma vez que preferiu destacar com estardalhaço o aspecto sadomasoquista da história e simplesmente esqueceu de descrever o livro no que e como ele é em essência: um romance como qualquer outro, apenas pontuado por cenas e descrições sexuais pouco ortodoxas. Que, na verdade, são em número muito menor do que se alardeou, ocupando no total pouco mais de 30 páginas. O resto é falação, papo furado para encher lingüiça (com trema mesmo, já falei, esse Acordinho ridículo que vá pro saco, no meu blog não!). Se não empolga em momento algum, também não chega a aborrecer, mas é preciso ter em mente que se trata de literatura popular, e, portanto, sem preocupação com estilo ou alta qualidade de escrita. É livro que atiça a curiosidade, e nisso já cumpre um papel admirável, o de fazer com que as pessoas leiam!

Até quem não leu o livro sabe de que trata a história. A jovem virgem Anastasia Steele, de 20 anos, acabou de se formar em Letras quando é designada pela amiga Kate Kavanagh para entrevistar um empresário multimilionário, Christian Grey (o jogo de palavras do título é justamente usar o sobrenome do ricaço, Grey, que se pronuncia "grey", como "cinza", no original). Por um desses inexplicáveis mistérios da alma humana, os dois se encantam mutuamente, sem que haja qualquer motivo real para isso, mas somente algum tempo depois irão se dar conta. Então, Grey, que tem a seu favor as facilidades que só muito dinheiro pode garantir, passa a perseguir Anastasia de todas as formas, inclusive aparecendo na loja de materiais de construção em que ela trabalha para comprar acessórios que usará como brinquedos eróticos (sic). Grey é o sonho de toda mulher: jovem (tem menos de 30 anos), dono de um vasto império empresarial, lindo, perfeito. Mas tem um defeito que se revelará com o tempo: tem uma estranha preferência sexual. Gosta de jogos de dominação, o que já transparece em sua obsessão por controle. De repente, Anastasia se vê arremessada em uma encruzilhada emocional: ao mesmo tempo em que assume seus confusos sentimentos por Grey, tenta fugir do universo de perversão e sugerida violência que ele aprecia.

Leitoras da série: é preciso ler para criticar.
Como E. L. James é fã confessa da "saga" Crepúsculo, é fácil perceber características semelhantes entre os personagens daquela e desta série. Anastasia Steele é uma versão adulta de Isabella Swann: muito branca, desengonçada, insegura, e extremamente tímida; nesse particular, aliás, chega a irritar a quantidade de vezes em que ela "enrubesce" ao longo da narrativa. Se Grey lhe dá um sorriso, ela enrubesce; se ela pensa em um contato físico mais íntimo, enrubesce; se a amiga com quem divide alojamento lhe faz uma pergunta mais incisiva, enrubesce; se abre a janela e vê o sol nascendo, enrubesce... Enquanto isso, Christian Grey faz às vezes de Edward Cullen: está sempre perto de Anastasia, aparece quando ela menos imagina, e a única diferença para seu similar vampírico é que ele não só deseja ardentemente sua presa, mas também concretiza seus instintos reprodutivos. Nesse quadro, caberia ao pobre fotógrafo José, amigo de Anastasia, o ingrato papel relegado ao lobinho Jacob, aquele que deseja a heroína em segredo mas não tem chances.

O maior problema de Cinqüenta tons de cinza é a construção de uma atmosfera narrativa que seja minimamente verossímil para conquistar o leitor mais exigente. As limitações da autora estão escancaradas a cada página. Ela não sabe expandir a galeria de situações que poderia render tramas paralelas interessantes, como um suposto romance entre Kate e Elliot, o irmão de Grey, que é forçado e muito mal apresentado. O foco no casal central torna-se cansativo pela própria estrutura do romance: Anastasia se debate entre o desejo de ser possuída e o medo do novo mundo que lhe é apresentado por Grey; entre um e outro, ela se entrega até de forma passiva e fácil demais para uma mocinha que passa a imagem de ser a ingenuidade em pessoa (e sempre enrubescendo por tudo e por nada). Os capítulos se alternam entre a concretização dos desejos e a dúvida atroz que atormenta a cabecinha da heroína. E é claro que há um mistério no passado de Christian Grey, que será, deduz-se, melhor explorado nos volumes seguintes da série, mistério esse que pode explicar seu comportamento e suas preferências.

Curiosamente, os dois aspectos mais polêmicos do livro me pareceram muito barulho por nada. As feministas queriam o fígado da autora por reproduzir em Anastasia Steele um modelo de comportamento feminino ultrapassado e hoje considerado até ofensivo, o da mulher submissa que espera o seu príncipe encantado. Bom, devo ter lido outro livro, porque não foi isso o que eu vi. Ao contrário, de submissa Anastasia nada tem, é uma garota do seu tempo, antenada com o ritmo de vida das jovens de hoje. Recém-formada, busca emprego (e consegue, meio da noite para o dia, em uma das editoras mais importantes do país), tem um carro, quer ser independente, ou seja, mais atual impossível. E não se entrega logo aos caprichos de Christian Grey, resiste, apaixonada sim, mas não se curvando, deixando clara sua posição naquele teatrinho que ele quer armar. Onde está a mulher antiquada nisso? Talvez no fato de se apaixonar, já que hoje as mulheres miram tanto em uma carreira profissional que deixam os assuntos do coração de lado. E a abordagem do sadomasoquismo e do BDSM, apontados como escandalosa pela crítica, é absolutamente inicial, a autora nem chega a se aprofundar no assunto. Há, sim, o tal contrato de submissão que Grey entrega a Anastasia, com as regras que ela deve seguir para ser sua escrava oficial, ao qual ela se recusa, por considerar abusivo. Ela também se aborrece com o fato de Grey lhe pagar roupas, lhe presentear com itens caros  - primeiro um laptop de última geração, depois um carro novo último tipo. Ou seja, recusa ser o troféu de uma conquista, recusa ser a mocinha incapaz de se virar por conta própria. Onde está a submissão feminina?

Autora e obra: sucesso editorial.
Que E. L. James escreve má literatura é evidente, e essa discussão não cabe aqui. Porém, há inúmeros outros exemplos de autores ruins, que escrevem até pior do que ela, e que seguem vendendo barbaridades nas livrarias, sem que ninguém os ataque com a mesma violência. Por acaso Nicholas Sparks é um virtuoso do romance? Ou será que todos gostam de seus livros porque são sexualmente assépticos? Pode-se gostar ou não de determinado livro ou autor; porém, condenar uma obra e seu criador simplesmente por ir de encontro ao que se convencionou chamar de senso comum, "agredindo" a moral de um público médio escravizado e lobotomizado por BBBs, novelinhas e espetáculos de selvageria vendidos como esporte, é sintoma de um pensamento fascista. Achei fraco, mas a parabenizo pela ousadia de discutir fantasias que muitos leitores devem ter, mas não têm coragem de assumir em público. Condenar a autora é querer, de certa forma, manter intocados certos tabus sociais, é fugir do debate.

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