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A dama enjaulada (1964) |
Eu
tenho claustrofobia. Em sentido restrito, isso quer dizer que não uso
elevadores. Abro exceção para o do prédio onde moro, creio que mais por hábito
e, ironicamente, por ser daqueles antigos, de grade (o nome correto do sistema
é porta pantográfica). Os elevadores modernos podem ser teoricamente mais
seguros, mas não há quem me faça entrar naquelas caixas de aço, verdadeiras
arapucas hermeticamente fechadas. Então, qualquer filme que use um elevador
enguiçado como cenário já me causa arrepios antes mesmo de assisti-lo. Ainda
que seja um doméstico, usado para locomoção interna. Pois é essa a idéia
inicial de A dama enjaulada, um dos
mais absorventes exercícios de suspense que já vi, e não exatamente pelo ponto
de partida. Toda sua realização é notável.
A
velha senhora Hillyard tem dificuldades para se locomover por conta de uma
recente operação na bacia. Assim, é por meio de um pequeno elevador que sobe e
desce as escadas de sua mansão. Em uma bela e quente manhã, o maquinário para
de funcionar por conta de um curto-circuito. Ela aciona a campainha de alarme
externo, mas só consegue chamar a atenção de um vagabundo que passa pela rua na
hora. Ele descobre um mundo de riquezas, leva alguns objetos e retorna com a
amiga prostituta. A ação da dupla é acompanhada por três delinqüentes, fugidos
de um reformatório, que invadem o local
e promovem uma desconcertante espiral de torturas e violência. Primeiro
enjaulada por entre as grades do elevador, e depois imobilizada pela altura, Mrs.
Hillyard assiste a tudo angustiada pela inércia, sabendo que suas horas podem
estar contadas.
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Mrs. Hillyard (Olivia de Havilland): madame passarinho. |
Há
inúmeras qualidades no filme, a começar pelos ótimos créditos de abertura, que
parecem ter sido inspirados por Saul Bass, dos clássicos de Hitchcock,
justapondo-se a imagens de um exterior radiante de luz amparadas por uma trilha
sonora climática. A direção de arte do veterano Hal Pereira (em dupla com
Rudolph Sternard) faz da mansão quase um personagem à parte - na verdade, o
único ambiente mais explorado é a sala, em que ocorre a maioria das ações. O
roteiro é uma obra-prima de ousadia e foi escrito por Luther Davis (de O mercador de ilusões, 1947, com Clark
Gable e Deborah Kerr, alguns episódios da série Combate), também produtor, que conjuga doses iguais de suspense e
sátira social. A direção é de Walter Grauman, de larga experiência em
telesséries (Os intocáveis, Steve Canyon, Barnaby Jones, mas que fez pouco cinema e nada notável na carreira,
este foi seu ponto alto), que arranca desempenhos memoráveis de todo o elenco.
Mas o grande mérito da fita é mesmo seu roteiro, de uma crueldade extrema e muito rara de ver, e que
permite duas leituras distintas, porém convergentes em sua complementaridade. A
primeira é que se trata de uma metáfora sobre a falência do capitalismo, cujo
sistema estrutural é literalmente invadido e "destruído" pelas
classes menos favorecidas. Assim, a opulenta Mrs. Hillyard, enquanto assiste
impotente à devastação de sua propriedade por um bando de arruaceiros,
representa toda uma classe dominante, literalmente engaiolada e indefesa diante
da revolta dos bárbaros historicamente subjugados. Outra leitura possível
aproxima o roteiro da alegoria imaginada por George Orwell em A revolução dos bichos, sustentada pela
idéia central daquela obra: "Alguns animais são mais iguais do que
outros." É nesse sentido que, mesmo enjaulada, vendo do alto a dilapidação
de seu império sem ter como impedir, Mrs. Hillyard grita para um dos invasores:
"Seus monstros! Vocês são animais!" E, de fato, o comportamento
descontrolado dos três infratores serve para aproximá-los o tempo todo da
animalidade, desvirtuando quaisquer traços humanos que possam carregar. De sua gaiola improvisada, a rica senhora
tenta se manter, literalmente, vários níveis acima da escória, dos
"animais", sem perceber que, naquela situação, ela é tão animalizada
quanto qualquer um deles. A diferença é
que ela, civilizada, domesticada, está "na jaula", enquanto os "selvagens" ficam soltos,
depredando seu território. Alguns são mais iguais por pertenceram a uma casta economicamente mais bem-aventurada. E se os "animais" da casta inferior resolvem se rebelar? Haverá salvação?
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James Caan (dir.): jovens, loucos e marginais. |
Este aspecto da animalidade é sublinhado pela
indiferença com o que o mundo exterior percebe as ações ocorridas na casa: há
um drama se desenrolando, mas ninguém liga, todos só querem saber de pegar a
estrada e aproveitar o feriado dourado pelo sol. Mesmo quando a ação escapa
para o quintal da casa, à vista de todos, pouco há de humanidade em quem se
dispõe a assistir a cena. No fundo, somos todos animais, apenas socializáveis
por força das convenções, que nos iguala e nos amansa. Nesse ponto, há uma terceira camada de compreensão do roteiro. Onde está a violência maior: dentro da casa, por meio de invasões e ameaças, ou fora, no "mundo real", frio e indiferente ao drama de um semelhante, onde cada um só vê o nariz reluzindo no horizonte, chamando a uma boa preguiça? O mundo é um lugar violento. E essa violência vista e sentida todos os dias talvez seja muito maior do que a vivenciada por nós, individualmente.
A
veterana Olivia de Havilland, já detentora de dois Oscars, empresta uma natural
veracidade à dama enjaulada. Contrapõe-se a ela o estreante em cinema James
Caan, até então ator de séries de TV, que faz misérias como o líder do bando de
delinqüentes, em composição assustadora. Completam o elenco com ótimas atuações
Jennifer Billingsley, o dominicano Rafael Campos (como os outros marginais), Jeff Corey (o vagabundo que acaba sendo o alvo preferido do trio) e
outra veterana, Ann Sothern, como a prostituta gorda.
A
edição lançada em DVD pela Paramount Collection é lamentável e não traz sequer
o trailer original como extra.
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