quinta-feira, 25 de abril de 2013

O preconceito fica no escuro


Deixe a luz acesa (2011)
Cinema é arte e arte não tem sexo. Assim, a denominação "filme gay" só pode ser justificada como uma espécie de subgênero, que pode ter, entre seus apreciadores, pessoas também de fora do universo a que predominantemente se destina, ou cinéfilos mais desencanados, que não se limitam por preconceitos. Quem já viu algum filme gay na mostra dedicada a eles no Festival do Rio sabe que a maioria dos títulos traz questões e situações que tratam da comunidade homossexual, o que pode gerar pouco ou nenhum interesse para os espectadores "externos". Até aí, nada demais, já que ninguém é obrigado a ver o que não quer. O maior problema desse carimbo distintivo é que o grande público acaba sendo privado de conhecer boas histórias, que independem de preferência sexual para agradar. É o caso de Deixe a luz acesa, que chegou respaldado pelo Teddy Bear, o prêmio concedido ao melhor filme de temática homossexual no Festival de Berlim.

O filme acompanha a história de amor entre Eric, um jovem documentarista (e há  uma brincadeira metalingüística logo no começo, com ele recebendo o Teddy da categoria), e Paul, advogado, que se estende ao longo de uma década. Os dois se conhecem graças a um serviço de telessexo. A atração é instantânea e profunda, mas Paul reluta em assumir a relação porque tem namorada e uma carreira promissora. Mas o tempo não apaga o desejo de ambos, que se reencontram algum tempo depois e finalmente resolvem viver juntos, ainda que para isso precisem lutar contra todas as convenções estabelecidas.

O roteiro, na verdade, é a dramatização da história real do diretor Ira Sachs, que já havia sido publicada no livro Retrato de um viciado quando jovem, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Foi ele mesmo quem adaptou o texto para o cinema, em parceria com o brasileiro Maurício Zacharias. É evidente que por se tratar de assunto tão pessoal ele se revestiu de um carinho especial não só pelos protagonistas, mas também pela própria forma como a história é narrada. As seqüências que mostram uso de drogas são cruas e podem chocar, até mais do que as muitas cenas de nu frontal masculino e sexo entre os atores - atenção espectadores sensíveis, tanto em um caso quanto em outro há imagens em profusão.

Há muitas qualidades no filme: os personagens são pessoas reais, gente como a gente, que enfrentam problemas de relacionamento como qualquer casal; o par central está muito bem, entregando-se de forma corajosa e sem limites aos seus papéis - o dinamarquês Thure Lindhart tem larga experiência em cinema, sobretudo em seu país de origem, mas esteve em Na natureza selvagem. Zachary Booth é mais conhecido do grande público, apareceu em Uma noite de amor e música, Aconteceu em Woodstock, recentemente em Dark horse, entre outros. A fotografia é muito bonita, especialmente nas cenas noturnas e nas seqüências passadas em interiores, e a trilha sonora é ótima. O maior mérito, porém, é mesmo do roteiro, que pinta um retrato sensível e muito verdadeiro da situação, fugindo dos clichês tão comuns ao cinema norte-americano, optando por um final realista.

A mim, o filme surpreendeu sobretudo porque tenho um histórico de experiências traumáticas com o cinema gay. Algumas das piores coisas que já vi até hoje vieram desse subgênero, e digo isso sem qualquer traço de preconceito, é só uma constatação. Fiquei pensando que os diretores de filmes gays estão mais preocupados em mostrar homens nus do que em contar uma boa história. Em Deixe a luz acesa, tive a certeza de estar assistindo a uma história de amor verossímil, contada com seriedade e sem exageros. Vale a pena conhecer. Deixe a luz acesa e a mente aberta. Cinema não tem sexo. 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

A maior tragédia é o excesso

Por que tem que ser assim? (1968)

Descrito por alguns como uma obra-prima da sensibilidade, Por que tem que ser assim? derrapa nos excessos. Alimentando a narrativa sobre a incomunicabilidade entre as pessoas está uma sucessão de tragédias como poucas vezes vi no cinema. Robert Ellis Miller dirigiu em 1968 este filme, que foi indicado aos Oscars de Ator (Alan Arkin) e Atriz Coadjuvante (Sondra Locke, em sua estréia no cinema aos 22 anos, na única nomeação de sua carreira). Arkin interpreta com perfeição o surdo-mudo John Singer, vítima não do destino que o privou da voz, mas da indiferença de um microcosmo social que camufla suas tensões locais sob o manto da normalidade.

Arkin já vinha de outros sucessos como Um clarão nas trevas (1967) e Inspetor Clouseau (1968), a gênese da série da Pantera Cor-de-Rosa. Ele detém uma curiosa marca na história do Oscar: é o intérprete que mais tempo levou entre uma indicação e outra, quase 30 anos, até ser afinal agraciado, como coadjuvante por Pequena Miss Sunshine, em 2007. John Singer consegue ler lábios, mas prefere se comunicar por meio de bilhetes. Ao chegar à pequena cidade de Jefferson, bate na porta da casa de uma família que está alugando um quarto por necessidades financeiras. O pai, veterano de guerra, está preso a uma cadeira de rodas, o que faz com que a matriarca pense em conseguir emprego para ajudar nas despesas domésticas; os dois filhos pequenos têm hiperatividade; e a filha adolescente, reprimida, sonha em perder a virgindade. Um dia, andando pela cidade, Singer testemunha uma agressão contra um rapaz e pede ajuda a um médico que, por princípios, não atende pessoas brancas. Eles se tornam próximos e Singer passa a conviver também com a filha do médico, cujo marido não goza da simpatia do pai da moça, ou seja, todos brigam e discutem o tempo todo. Esses dois universos não se cruzam entre si, mas se alternam na vida do rapaz. O filme segue passando de um drama para outro, sem deixar o espectador respirar e sem apresentar um único momento sequer de esperança.

Não sei se a culpa é do romance original que lhe serviu de base, O coração é um caçador solitário, escrito por Carson McCullers (o mesmo de Os pecados de todos nós), que foi lançado no Brasil. O fato é que há um excesso de assuntos explosivos para a época: racismo, interação social de deficientes, emancipação feminina, virgindade, intolerância às diferenças, educação familiar etc. Todos tratados de forma superficial, como se estivessem ali apenas para servir de condução aos rumos da trama, sem aprofundamento nem resoluções convincentes. O que me irritou mesmo foi o exagero. O filme apresenta um pequeno inventário das dores humanas, parece que Jefferson é a cidade que abriga todo o sofrimento do mundo. Um dos personagens, por exemplo, é um homem por volta dos 50 anos, também surdo-mudo e ainda deficiente mental, expulso de casa porque a família não o suporta mais. Outras atrações: um dos personagens descobre que tem câncer terminal, outro tem a perna amputada, outro se suicida, outro morre de infecção, outro descobre sofrer de uma doença incurável que o limita fisicamente... Tudo isso em pouco mais de duas horas de projeção. É de fazer chorar, literalmente, parece uma versão condensada de uma boa e velha novela mexicana, só faltou a mocinha perder a visão!

Alan Arkin e Sondra Locke: indicados ao Oscar.
As duas atrizes centrais também davam seus primeiros passos na carreira. Sondra Locke, que foi casada com Clint Eastwood nos anos 70, faz a adolescente Mick, que luta para ser aceita pelos colegas de escola e nutre uma paixão não assumida por Singer, um assunto mal colocado e ainda pior resolvido. Cicely Tyson já tinha mais créditos, mas nada muito importante até então; ela é Portia, a filha rebelde do médico racista -  aliás, um dos poucos méritos do filme é mostrar o racismo inverso, ou seja, o que negros possam praticar contra brancos, um tema raramente explorado pelo cinema (por que será? Para fazer de conta que o problema só tem um lado?). Ambas estão muito bem e formam, com Arkin, a tríade de boas atuações que salvam o filme de ser verdadeiramente insuportável. O diretor Miller, egresso de séries de TV, incluindo um episódio de O fugitivo, também estava engatinhando na Sétima Arte, tendo estreado em longas dois anos antes, com Somente na quarta-feira. Fez pouca coisa depois, a rigor, só com mais dois destaques, a estranha comédia Falcões (com Timothy Dalton, em 1988) e a aventura descerebrada Brenda Starr (com Brooke Shields, no ano seguinte).

No fundo, a mensagem essencial do roteiro acaba expressa pela fala final do médico: "Ele sempre esteve ao nosso lado nos ajudando... Mas nunca perguntamos quais eram os problemas dele." Ou seja, tanto nos grandes centros quanto nas pequenas cidades, o ser humano é o mesmo animal egoísta e ingrato, sempre olhando só para o próprio umbigo. Por que tem que ser assim?

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Os 10 Mandamentos do Cinéfilo


Vez por outra vemos aquelas inúteis e sempre curiosas listagens, quase sempre em 10 tópicos, de naturezas as mais variadas. São supostos resumos de certa filosofia ou de determinado sistema social. E assim temos os mandamentos do conquistador, do machão, do bom carioca e tudo o mais que a imaginação criar. Há muitos anos, certamente por falta de coisa melhor para fazer, resolvi botar no papel o que seriam os 10 mandamentos do cinéfilo. Sempre em tom de brincadeira e sem qualquer pretensão de ser definitivo. Na minha imaginação, seriam estes:

1- Assistirás a pelo menos a um filme por dia.
Esta é a mais básica das regras. Cinéfilo de verdade, quando não consegue cumpri-la, sente que deixou alguma tarefa incompleta ao fim do dia.

2- Procurarás assistir ao maior número de filmes no menor espaço de tempo.
Se você dispõe de cinco horas livres, dá para encaixar dois filmes no espaço. Se o tempo é escasso, de poucos minutos, vale um curta-metragem. O importante é ter o cinema como companhia.

3- Tendo de escolher entre um filme inédito e uma reprise, darás preferência sempre ao filme que você ainda não viu.
Cinéfilo não é exatamente o sujeito que vê muitos filmes, mas aquele que vê filmes que ainda não conhece. Esta é uma das definições possíveis para a categoria e que encontra sua melhor tradução neste mandamento.

4- Revisarás seus filmes preferidos sempre com carinho e a mesma magia da primeira vez.
A primeira vez é sempre especial, e vale para o cinema também. Se o filme conquistou de tal forma, vale levar esse encanto para o resto da vida e revê-lo sempre com os olhos do ineditismo.

5- Jamais deixarás de assistir a um filme até o final, por pior que ele seja ou por mais chato que esteja.
Muitos filmes começam devagar e crescem durante a narrativa. Paciência é uma virtude que todo cinéfilo precisa cultivar, na certeza de que pode haver uma grande história por trás de um início claudicante.

6- Repararás sempre na montagem, na fotografia, na trilha sonora e na direção de arte, elementos que muitas vezes salvam um filme fraco e o tornam inesquecível.
Os atributos técnicos de um filme, muitas vezes, respondem pelo grande prazer de se assisti-lo. A narrativa está aborrecida? Deleite-se com a cenografia majestosa e a fotografia deslumbrante. A história está chata? Feche os olhos e curta a trilha sonora. Às vezes, cinema é mais do que roteiro: é uma experiência de fruição visual.

7- Respeitarás sempre os clássicos e os filmes mudos e antigos, pois são eles a gênese da história do cinema.
Cinéfilo de verdade vai conferir a nova aventura do Homem Aranha, mas também não dispensa uma sessão especial de Casablanca em alguma cinemateca.

8- Organizarás uma lista com seus títulos preferidos, os quais serão objeto de culto e adoração e os quais não poderão ser exibidos sem que os assista.
Mania de lista todo mundo tem. O cinéfilo cria a sua, ou as suas, baseado em suas preferências pessoais.

9- Manterás a mente aberta e não se importarás em descobrir novos filmes entre os títulos menos conhecidos e / ou pouco comentados.
Se houver uma retrospectiva daquele diretor butanês do qual nunca se ouviu falar ou uma mostra de filmes sudaneses, o cinéfilo está dentro. E o que é aquele filme desconhecido apodrecendo num canto da locadora? Vou levar para conferir.

10- Assistirás a filmes de todos os países, de todas as origens, de todos os gêneros e de todos os formatos (longa, média e curta, blockbusters, de arte e alternativos; americanos, brasileiros, europeus ou de outras nacionalidades), pois somente assim é possível a formação de uma cultura cinematográfica.
Esta é a síntese da cinefilia. Não adianta assistir apenas aos grandes lançamentos de Hollywood: cinema é muito mais que isso. Além do que, cultura só se adquire com vivência, e isso vale para todas as áreas da vida.

PARÁGRAFO ÚNICO: Jamais revelarás o final de um filme a quem ainda não o viu, mesmo sob insistentes pedidos.
Nada pior do que alguém assistir a Psicose já sabendo o segredo do filme. Não tire o prazer de ninguém. Deixe que a pessoa se surpreenda (ou se frustre) por conta própria. Isso faz parte da experiência do cinema.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Uma vida em segredo


Em segredo (2005)
Embora seja um episódio recente, a guerra da Bósnia já forneceu farto material para diversas produções. No ano passado, Angelina Jolie estreou na direção centrando-se na crueldade dos estupros cometidos durante o conflito no bom Na terra do amor e ódio. Hollywood também contribuiu com algumas histórias (Bem-vindo a Sarajevo, Savior – a última guerra), mas é o cinema europeu quem melhor se ocupa do assunto. Algumas dessas produções foram sucesso de público, como Terra de ninguém, que ganhou o Oscar de Filme Estrangeiro em 2003. Outras sequer foram lançadas no Brasil (Nema problema, só exibida no Festival do Rio de 2005). Nem sempre, porém, os filmes que tratam do conflito o colocam como foco central da narrativa. Os dramas humanos gerados como conseqüências da situação também merecem destaque, e é neste cenário que se desenrola Em segredo. Premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2006, o filme teve rápida passagem pelos cinemas brasileiros e merece ser descoberto em DVD.

A história se passa em Sarajevo, cerca de 12 anos após a guerra. No bairro popular de Grbavica, título original do longa, vive Esma, uma mulher por volta dos 40 anos, que freqüenta um grupo de apoio a mulheres que sofreram alguma perda com o conflito (viúvas, mutiladas, violentadas). O cenário é de reconstrução e as dificuldades enfrentadas pela população ainda são grandes. A muito custo, Esma consegue um emprego de garçonete no turno da noite em um bar de strip-tease. Com o que recebe, sustenta a si e a filha adolescente, Sara. A garota tem um temperamento difícil, explosivo, o que lhe rende advertências escolares por causa de brigas com os colegas. Ela desconhece exatamente sua origem. Sabe apenas que seu pai foi um herói de guerra, morto em combate, versão que é contada e sustentada por Esma. Um dia, surge a oportunidade de uma viagem cultural organizada pela escola. Sara goza da gratuidade concedida aos órfãos dos soldados mortos, mas, para obtê-la, precisa entregar um atestado militar comprovando sua filiação. É quando alguns segredos começam a ser revelados e ela descobre que as coisas não são como pensava ser.

Sara representa o futuro da Bósnia.
Na maior parte do tempo, acompanhamos as dificuldades enfrentadas por mãe e filha para, cada um a seu modo, sobreviverem em tempos difíceis, de pós-guerra, lutando para superar as limitações impostas pela situação. Se por um lado Esma se desdobra em subempregos para garantir sua subsistência e, ao mesmo tempo, evitar que a verdadeira origem de Sara venha à tona, por outro, a rebeldia da garota só aumenta, no que é um erro de construção do personagem, já que nunca se apresenta uma razão concreta para sua crescente revolta contra tudo e todos. Se o roteiro falha nesse aspecto, contudo, compensa pintando um forte retrato da corrosão familiar que as atinge, em cenas que, por vezes, beiram o completo desespero. O relacionamento entre mãe e filha é dos mais tensos e agressivos que se possa imaginar. Sara não economiza na crueldade, tratando a mãe por “piranha velha” e “vaca estúpida”. Já Esma, no limite de sua humanidade, apenas suporta a presença da filha, usando o instinto maternal comum a todas as mulheres. Essa tensão, que perpassa toda a narrativa, só desacelera após a revelação do segredo que garante a ligação entre as duas. A reação de Sara ao descobrir a verdade simboliza uma nova etapa em sua vida, uma limpeza de espírito, uma purgação dos pecados cometidos.


Se a solução do conflito não oferece uma conclusão pacificadora (fica a cargo do espectador inferir como será o futuro relacionamento entre mãe e filha), a cena final transmite toda a paz e a esperança desejadas pelo povo bósnio, simbolicamente representadas pelo sorriso de Sara, que se abre gradualmente, e reforçadas pela belíssima canção “Sarajevo ljubavi moja”, de Kemal Monteno, um hino de amor à terra natal devastada pela guerra. Um grande momento que coroa um belo filme.