Cinema
é arte e arte não tem sexo. Assim, a denominação "filme gay" só pode
ser justificada como uma espécie de subgênero, que pode ter, entre seus apreciadores,
pessoas também de fora do universo a que predominantemente se destina, ou cinéfilos
mais desencanados, que não se limitam por preconceitos. Quem já viu algum filme
gay na mostra dedicada a eles no Festival do Rio sabe que a maioria dos títulos
traz questões e situações que tratam da comunidade homossexual, o que pode
gerar pouco ou nenhum interesse para os espectadores "externos". Até
aí, nada demais, já que ninguém é obrigado a ver o que não quer. O maior problema desse carimbo distintivo é que o grande público acaba sendo privado de
conhecer boas histórias, que independem de preferência sexual para agradar. É o
caso de Deixe a luz acesa, que chegou
respaldado pelo Teddy Bear, o prêmio concedido ao melhor filme de temática homossexual
no Festival de Berlim.
O
filme acompanha a história de amor entre Eric, um jovem documentarista (e
há uma brincadeira metalingüística logo
no começo, com ele recebendo o Teddy da categoria), e Paul, advogado, que se
estende ao longo de uma década. Os dois se conhecem graças a um serviço de telessexo.
A atração é instantânea e profunda, mas Paul reluta em assumir a relação porque
tem namorada e uma carreira promissora. Mas o tempo não apaga o desejo de
ambos, que se reencontram algum tempo depois e finalmente resolvem viver
juntos, ainda que para isso precisem lutar contra todas as convenções
estabelecidas.
O
roteiro, na verdade, é a dramatização da história real do diretor Ira Sachs,
que já havia sido publicada no livro Retrato
de um viciado quando jovem, lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
Foi ele mesmo quem adaptou o texto para o cinema, em parceria com o brasileiro
Maurício Zacharias. É evidente que por se tratar de assunto tão pessoal ele se
revestiu de um carinho especial não só pelos protagonistas, mas também pela
própria forma como a história é narrada. As seqüências que mostram uso de
drogas são cruas e podem chocar, até mais do que as muitas cenas de nu frontal
masculino e sexo entre os atores - atenção espectadores sensíveis, tanto em um
caso quanto em outro há imagens em profusão.
Há
muitas qualidades no filme: os personagens são pessoas reais, gente como a
gente, que enfrentam problemas de relacionamento como qualquer casal; o par
central está muito bem, entregando-se de forma corajosa e sem limites aos seus
papéis - o dinamarquês Thure Lindhart tem larga experiência em cinema, sobretudo
em seu país de origem, mas esteve em Na
natureza selvagem. Zachary Booth é mais conhecido do grande público,
apareceu em Uma noite de amor e música,
Aconteceu em Woodstock, recentemente
em Dark horse, entre outros. A
fotografia é muito bonita, especialmente nas cenas noturnas e nas seqüências
passadas em interiores, e a trilha sonora é ótima. O maior mérito, porém, é
mesmo do roteiro, que pinta um retrato sensível e muito verdadeiro da situação,
fugindo dos clichês tão comuns ao cinema norte-americano, optando por um final
realista.
A
mim, o filme surpreendeu sobretudo porque tenho um histórico de experiências
traumáticas com o cinema gay. Algumas das piores coisas que já vi até hoje
vieram desse subgênero, e digo isso sem qualquer traço de preconceito, é só uma constatação. Fiquei pensando que os diretores de filmes gays estão
mais preocupados em mostrar homens nus do que em contar uma boa história. Em Deixe a luz acesa, tive a certeza de
estar assistindo a uma história de amor verossímil, contada com seriedade e sem
exageros. Vale a pena conhecer. Deixe a luz acesa e a mente aberta. Cinema não
tem sexo.