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Três irmãos de sangue (2005) |
Em
1992, a chamada Geração Cara-Pintada tomou as ruas do país em uma série de
manifestações populares, semelhantes às que se observam hoje. Conclamava-se
pelo fim da corrupção que campeava no Governo Federal e visava especialmente o
então presidente Fernando Collor de Mello. A profusão de protestos deu
resultado e, em setembro daquele ano, Collor foi destituído da presidência por
impeachment, caso inédito na história da República. Passados 21 anos, o clamor
popular está de volta, agora pleiteando a melhoria dos serviços públicos e
transparência nas esferas políticas.
Embora
a essência da gritaria seja a mesma, é inegável que há diferenças, algumas
brutais, em relação aos dois momentos. Naquela época não havia internet nem
celular, ou seja, organizar manifestações e reunir um grande contingente de
pessoas era bem mais complicado. Os estudantes se juntavam na base do boca a
boca, "no braço", sem as facilidades tecnológicas desse começo de
século XXI. Também não lembro se havia arruaceiros infiltrados ou bandeiras
políticas tentando tirar uma casquinha da simpatia da causa. O maior
diferencial, contudo, parece-me ser de liderança. Na época, ressaltou um jovem de
20 e poucos anos, Lindbergh Farias, presidente da União Nacional dos Estudantes
(UNE), como a voz que se levantava pela justiça e a igualdade. Identificava-se
com os protestantes, era carismático e representava o anseio por mudanças
(depois, como todos sabem, se meteu na política, virou deputado, até ser
acusado de praticar os mesmos golpes contra os quais lutava, ou seja, virou uma
"laranja mecânica", mas não é assim com todo mundo?). Também
muito se falou que os jovens foram fortemente influenciados pela minissérie Anos rebeldes, apresentada pela TV
Globo, que mostrava a luta dos universitários contra a ditadura militar nos
conturbados anos 60, entre uma paixonite e outra.
Hoje, na vida pública
nacional, não há nenhuma figura que transmita a imagem de retidão moral, de
perseverança e honestidade necessárias para inflamar o povo a se espelhar nela.
Ou, se há, ela se mantém na sombra, talvez temendo se comprometer com alguma
causa, ainda que elogiável. Falta um exemplo. Nesse vácuo, resta resgatar figuras de vulto no cenário cultural brasileiro, que, mesmo não
saindo empunhando faixas ou cartazes, deixaram um legado de combate que merece
ser seguido. Como o dos três irmãos de sangue enfocados pelo documentário
homônimo. O filme não é novo, foi lançado no Festival do Rio de 2006 e, embora
muito bem-recebido pelo público, teve bilheteria abaixo do que deveria no
circuito alternativo, fruto, certamente, do preconceito da platéia brasileira
em assistir documentários. Mas merece ser conhecido, divulgado e recomendado.
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Chico Mário, Henfil e Betinho: brasileiros exemplares. |
O
filme nem estava na minha programação inicial. Só entrou, de contrapeso, porque
seria precedido do curta-metragem Encontro
marcado com Fernando Sabino, que era meu grande interesse. Até pensei em
voltar para casa depois, mas acabei ficando, o que configura um daqueles casos
em que vemos algo sem muito interesse e terminamos agradavelmente
surpreendidos. Três irmãos de sangue pode
ser definido, sem erro, como um dos melhores documentários feitos no país nos
últimos tempos. O título se refere ao sociólogo Betinho, ao cartunista Henfil e
ao compositor Chico Mário, todos hemofílicos e que morreram de aids, vitimados
por transfusões de sangue contaminado. Mas este fato que poderia servir de mote
ao roteiro só é mencionado uma vez, em uma cena específica, e não é explorado,
dispensando o sensacionalismo desnecessário. Mesmo porque o foco do filme é a
vida e a obra dos três personagens, que foram, cada um em sua área de atuação,
exemplos de brasileiros que nunca se omitiram diante das injustiças e, também
dentro de suas especialidades, se empenharam por uma sociedade mais humana e
igualitária. Além de serem igualmente geniais em suas respectivas habilidades.
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Graúna: criação inesquecível. |
O
documentário é dividido em três partes: "Origem" (curiosidades da
infância dos três, contadas pelas irmãs em depoimentos engraçados e onde há um
momento de humor negro involuntário, quando visitam a casa funerária da
família, ainda hoje em funcionamento), "Brasil" (a carreira deles em
paralelo com a situação política nacional, inserindo suas realizações em um
contexto histórico) e "Aids" (sobre os últimos dias de vida de cada
um). Há inúmeros depoimentos e entrevistas de parentes, viúvas, filhos e netos,
outros artistas (Aldir Blanc, Ziraldo, João Bosco), pessoas que conviveram com
os irmãos, incluindo enfermeiros e fisioterapeutas, e muito material de arquivo
– programas de televisão, entrevistas antigas, fotografias de família,
registros em áudio de uma carta gravada por Betinho para a mãe quando estava no
exílio etc. Se não traz nenhuma revelação bombástica nem joga luzes sobre
qualquer fato desconhecido, o filme é direto ao ponto, não perde tempo com
fofocas de bastidor (não se diz que Henfil era podólatra, por exemplo, que não
serve aos propósitos do roteiro), bem conduzido, apesar da montagem meio
caótica (mas que não chega a comprometer), sem nunca resvalar na pieguice que
muitas vezes caracteriza esse tipo de trabalho.
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Capa histórica feita por Siron Franco. |
Claro
que quem viveu o momento que o filme apresenta irá se identificar mais e poderá
até chegar às lágrimas, sobretudo na cena mais emocionante, que mostra a volta
de Betinho ao país em 1979, perdoado pela anistia, ainda no período da
ditadura. Mas há muitas outras, que mereceram aplausos durante a projeção, como
a entrevista que ele concede às emissoras de tevê durante o enterro de Henfil,
criticando a falta de fiscalização nos bancos de sangue, num desabafo contra o
descaso do poder público para com a população em geral. A cena final,
embalada ao som de “Ressurreição”, música de Chico Mário, é belíssima e fecha
com chave de ouro este bonito painel sobre algumas páginas de nossa história.
Enfim, o filme me pegou desprevenido e acabou se tornando uma
ótima surpresa, confesso que não esperava muita coisa, cheguei mesmo a achar
sua metragem de 103 minutos um pouco longa, mas vendo o filme achei até que foi
curto, a vida dos três merecia um registro ainda mais abrangente. É desses
documentários que dão vontade de assistir muitas outras vezes. Em um momento
particularmente conturbado da vida brasileira, com tantas notícias diárias de
escândalos políticos, falcatruas, roubalheiras de todo tipo, com tanto descaso
e tantas mazelas institucionalizadas, e quando o povo parece começar a acordar
para cobrar seus direitos, o filme chega a ser um bálsamo, um alento, para que
ainda possamos acreditar em mudanças e para que nos lembremos de que enquanto
existirem brasileiros como os três irmãos, ainda é possível manter acesa a
chama de nossa indignação e da mudança. Obrigatório.
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