quinta-feira, 4 de julho de 2013

Irmãos coragem

Três irmãos de sangue (2005)
Em 1992, a chamada Geração Cara-Pintada tomou as ruas do país em uma série de manifestações populares, semelhantes às que se observam hoje. Conclamava-se pelo fim da corrupção que campeava no Governo Federal e visava especialmente o então presidente Fernando Collor de Mello. A profusão de protestos deu resultado e, em setembro daquele ano, Collor foi destituído da presidência por impeachment, caso inédito na história da República. Passados 21 anos, o clamor popular está de volta, agora pleiteando a melhoria dos serviços públicos e transparência nas esferas políticas.

Embora a essência da gritaria seja a mesma, é inegável que há diferenças, algumas brutais, em relação aos dois momentos. Naquela época não havia internet nem celular, ou seja, organizar manifestações e reunir um grande contingente de pessoas era bem mais complicado. Os estudantes se juntavam na base do boca a boca, "no braço", sem as facilidades tecnológicas desse começo de século XXI. Também não lembro se havia arruaceiros infiltrados ou bandeiras políticas tentando tirar uma casquinha da simpatia da causa. O maior diferencial, contudo, parece-me ser de liderança. Na época, ressaltou um jovem de 20 e poucos anos, Lindbergh Farias, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), como a voz que se levantava pela justiça e a igualdade. Identificava-se com os protestantes, era carismático e representava o anseio por mudanças (depois, como todos sabem, se meteu na política, virou deputado, até ser acusado de praticar os mesmos golpes contra os quais lutava, ou seja, virou uma "laranja mecânica", mas não é assim com todo mundo?). Também muito se falou que os jovens foram fortemente influenciados pela minissérie Anos rebeldes, apresentada pela TV Globo, que mostrava a luta dos universitários contra a ditadura militar nos conturbados anos 60, entre uma paixonite e outra. 

Hoje, na vida pública nacional, não há nenhuma figura que transmita a imagem de retidão moral, de perseverança e honestidade necessárias para inflamar o povo a se espelhar nela. Ou, se há, ela se mantém na sombra, talvez temendo se comprometer com alguma causa, ainda que elogiável. Falta um exemplo. Nesse vácuo, resta resgatar figuras de vulto no cenário cultural brasileiro, que, mesmo não saindo empunhando faixas ou cartazes, deixaram um legado de combate que merece ser seguido. Como o dos três irmãos de sangue enfocados pelo documentário homônimo. O filme não é novo, foi lançado no Festival do Rio de 2006 e, embora muito bem-recebido pelo público, teve bilheteria abaixo do que deveria no circuito alternativo, fruto, certamente, do preconceito da platéia brasileira em assistir documentários. Mas merece ser conhecido, divulgado e recomendado.

Chico Mário, Henfil e Betinho: brasileiros exemplares.

O filme nem estava na minha programação inicial. Só entrou, de contrapeso, porque seria precedido do curta-metragem Encontro marcado com Fernando Sabino, que era meu grande interesse. Até pensei em voltar para casa depois, mas acabei ficando, o que configura um daqueles casos em que vemos algo sem muito interesse e terminamos agradavelmente surpreendidos. Três irmãos de sangue pode ser definido, sem erro, como um dos melhores documentários feitos no país nos últimos tempos. O título se refere ao sociólogo Betinho, ao cartunista Henfil e ao compositor Chico Mário, todos hemofílicos e que morreram de aids, vitimados por transfusões de sangue contaminado. Mas este fato que poderia servir de mote ao roteiro só é mencionado uma vez, em uma cena específica, e não é explorado, dispensando o sensacionalismo desnecessário. Mesmo porque o foco do filme é a vida e a obra dos três personagens, que foram, cada um em sua área de atuação, exemplos de brasileiros que nunca se omitiram diante das injustiças e, também dentro de suas especialidades, se empenharam por uma sociedade mais humana e igualitária. Além de serem igualmente geniais em suas respectivas habilidades.

Graúna: criação inesquecível.
O documentário é dividido em três partes: "Origem" (curiosidades da infância dos três, contadas pelas irmãs em depoimentos engraçados e onde há um momento de humor negro involuntário, quando visitam a casa funerária da família, ainda hoje em funcionamento), "Brasil" (a carreira deles em paralelo com a situação política nacional, inserindo suas realizações em um contexto histórico) e "Aids" (sobre os últimos dias de vida de cada um). Há inúmeros depoimentos e entrevistas de parentes, viúvas, filhos e netos, outros artistas (Aldir Blanc, Ziraldo, João Bosco), pessoas que conviveram com os irmãos, incluindo enfermeiros e fisioterapeutas, e muito material de arquivo – programas de televisão, entrevistas antigas, fotografias de família, registros em áudio de uma carta gravada por Betinho para a mãe quando estava no exílio etc. Se não traz nenhuma revelação bombástica nem joga luzes sobre qualquer fato desconhecido, o filme é direto ao ponto, não perde tempo com fofocas de bastidor (não se diz que Henfil era podólatra, por exemplo, que não serve aos propósitos do roteiro), bem conduzido, apesar da montagem meio caótica (mas que não chega a comprometer), sem nunca resvalar na pieguice que muitas vezes caracteriza esse tipo de trabalho.

Capa histórica feita por Siron Franco.
Claro que quem viveu o momento que o filme apresenta irá se identificar mais e poderá até chegar às lágrimas, sobretudo na cena mais emocionante, que mostra a volta de Betinho ao país em 1979, perdoado pela anistia, ainda no período da ditadura. Mas há muitas outras, que mereceram aplausos durante a projeção, como a entrevista que ele concede às emissoras de tevê durante o enterro de Henfil, criticando a falta de fiscalização nos bancos de sangue, num desabafo contra o descaso do poder público para com a população em geral. A cena final, embalada ao som de “Ressurreição”, música de Chico Mário, é belíssima e fecha com chave de ouro este bonito painel sobre algumas páginas de nossa história.

Enfim, o filme me pegou desprevenido e acabou se tornando uma ótima surpresa, confesso que não esperava muita coisa, cheguei mesmo a achar sua metragem de 103 minutos um pouco longa, mas vendo o filme achei até que foi curto, a vida dos três merecia um registro ainda mais abrangente. É desses documentários que dão vontade de assistir muitas outras vezes. Em um momento particularmente conturbado da vida brasileira, com tantas notícias diárias de escândalos políticos, falcatruas, roubalheiras de todo tipo, com tanto descaso e tantas mazelas institucionalizadas, e quando o povo parece começar a acordar para cobrar seus direitos, o filme chega a ser um bálsamo, um alento, para que ainda possamos acreditar em mudanças e para que nos lembremos de que enquanto existirem brasileiros como os três irmãos, ainda é possível manter acesa a chama de nossa indignação e da mudança. Obrigatório. 

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