O livro: resgate com respeito. |
Há
algum tempo, comentei aqui sobre este livro, Coisas eróticas - A história jamais contada da primeira vez do cinema
nacional (Panda Books), que foi lançado meio na moita, sem muita divulgação, talvez por
tratar de um tema complicado e ingrato. Também por abordar uma época da qual
hoje muita gente se envergonha, a "era de ouro" da chamada Boca do
Lixo paulistana, marcada pela fértil produção de filmes pornôs. No caso, o
título já entrega aquele que foi considerado o grande sucesso do gênero, Coisas eróticas, dirigido pelo
ítalo-brasileiro Raffaele Rossi. Só agora tive a oportunidade de lê-lo. E o recomendo com entusiasmo. Não é um livro sobre pornô: é sobre cinema brasileiro.
Eu
não gosto de filme pornô. Já não gostava quando era garotão adolescente, talvez
porque nunca via meus fetiches e fantasias refletidos ali, era sempre mais do
mesmo, e menos ainda agora beirando os 40 e já sem mais aquela necessidade
juvenil de desafogar meus hormônios em ebulição. Apesar disso, sempre conferi
ao gênero a mesma importância que é dada a qualquer outro, por entender que
pornô é cinema, tem uma característica própria, uma delimitação genérica particular como os filmes de faroeste ou de ficção científica. Tanto
que sempre incluí Garganta profunda na
minha lista de grandes filmes de todos os tempos, no mesmo nível de Ben Hur e Casablanca, claro que guardadas as devidas (e enormes) distâncias
entre uns e outro. Por ironia, o clássico de Damiano é justamente o único filme pornô que povoou
meus sonhos de adolescência, muito mais por ouvir falar e ler sobre ele do que
propriamente por interesse pessoal em assisti-lo, o que só veio a acontecer
depois de adulto, e, portanto, quando eu estava mais "bem-preparado"
para aproveitá-lo. Mas não é de cinema pornô que vou me ocupar aqui.
Cena do filme, com o "Selo Rossi de Qualidade". |
Não
sei se o livro em questão pode ser apontado como a melhor fonte ou o melhor
trabalho já realizado no terreno documental sobre o universo pornô brasileiro, mas é, com
certeza, um dos melhores. Um minucioso trabalho de pesquisa empreendido pelos
autores, o casal de jornalistas Denise Godinho e Hugo Moura, acompanha a
produção de Coisas eróticas, o
primeiro filme nacional de sexo explícito lançado nos cinemas, no começo dos
anos 80, ousando desafiar os ventos da ditadura, que ainda sopravam com força,
poucos anos antes da chamada "abertura democrática". Com um texto
saboroso, que se lê de uma tragada, o livro é sobretudo um registro
interessante das dificuldades de se fazer cinema no Brasil. Enfoca uma época
particularmente complicada para os cineastas, sobretudo os de São Paulo,
apertados entre seguirem no ofício ou dependerem de simpatias políticas para
poderem tocar seus projetos. Rossi era um desses.
Rossi, o "homem do futuro", em rara foto. |
Seria
ele um visionário? O fato é que ele farejou potencial em um nicho então inimaginável por aqui. Sua idéia ganhou corpo no final da década de 70, quando o
clássico erótico japonês O império dos
sentidos foi liberado para exibição na Mostra de Cinema de São Paulo.
Então, Rossi resolveu também rodar um filme brasileiro que mostrasse sexo
explícito, nos moldes daquele. Daí surgiu Coisas
eróticas, realizado em 1982, e que foi lançado cerca de um ano depois, na íntegra,
graças a uma artimanha usada pelo diretor para ludibriar a censura. Claro que
estourou nos cinemas, que abriam sessões das 9h até as 21h para dar conta de
tantos espectadores interessados em ver na tela como o brasileiro fazia sexo. Afinal, era uma grande novidade. Hoje, produtores estouram champanhe quando um bloquibuste nacional chega à
marca de 1 milhão de espectadores. Pois Coisas
eróticas fez, segundo registros da época, cerca de 4 milhões de pagantes -
o número pode ter sido ainda maior, já que nas cidades do interior não era
possível controlar a venda de ingressos, que eram reaproveitados para sessões
seguintes. Neste século XXI, quando a pornografia está ao alcance de um clique, parece irreal que tanta gente tenha pago para ver sexo na tela grande. De certa forma, isso confere um grau de romantismo ao vislumbre erótico de Rossi.
O
livro esmiúça a vida de quase todos os envolvidos naquele, hum, projeto. Seria
de se esperar que todos tenham ficado milionários, mas não foi bem o que
aconteceu. Raffaele Rossi foi quem mais capitalizou o dinheiro ganho. Fez
viagens em família, comprou uma chácara, até montou um time de futebol de
salão, esporte pelo qual era apaixonado, e que chegou a disputar o Campeonato
Paulista durante alguns anos. Mas perdeu tudo e teve uma morte lenta e dolorosa
em 2007. Oásis Minniti, astro da fita, continuou fazendo filmes pornográficos
na Boca por mais cinco anos, até se cansar e investir em um curso de técnicas
de interpretação para o cinema... pornô!
Cenas como esta fizeram muita gente delirar no cinema. |
É
curioso também observar como a sociedade se comportou de maneira distinta na
hora de receber o elenco do filme depois que ele foi lançado. O pensamento
machista se impôs forte na hora de celebrar os "garanhões" e condenar
as "vagabundas", já que os atores chegaram a ser recebidos como
heróis em alguns lugares, caso de Walder Laurentis quando retornou para sua
cidade natal, ao passo que as atrizes pagaram um preço muito alto pela ousadia.
A estrela Vânia Bonier chegou a ser agredida pelo irmão, que não gostou de
ouvir comentários masculinos exaltando suas formas e rompeu com ela pelo resto
da vida. Mas todos os envolvidos concordam em um ponto: o filme foi
praticamente uma maldição na carreira e na vida de quem tomou parte nele. A
maioria o renegou (apenas Laurentis fala com orgulho de sua participação),
muitos nem quiseram ser entrevistados para o livro. Ficou a mancha no
currículo. Mas nada apaga a marca que ficou na história.
Os
próprios autores adaptaram a obra para o cinema, em documentário homônimo. Obras como Coisas eróticas - A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional são importantíssimas para manter viva a memória do cinema brasileiro, e
fundamentais para quem estuda o assunto ou pretende entendê-lo em todas as suas
vertentes. O passado até pode condenar, mas não tem como ser apagado. Afinal, nem só de Limite e
Terra em transe se fez a história da
Sétima Arte nacional.