quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Houve uma vez uma primavera

Spring breakers - Garotas perigosas (2012)
Ao final da hora e meia de duração de Spring breakers - Garotas perigosas, eu estava chapado. Tinha acabado de assistir ao melhor filme do ano. Fui vê-lo com os dois pés atrás, já que o trabalho anterior do diretor Harmony Korine havia me decepcionado bastante - o pouco visto Mr. Lonely (2007). Ele também tem um histórico de roteiros furados, que parecem mais interessados em chocar a platéia do que em discutir um tema ou uma idéia. Não sei se ele cresceu, ou se sempre foi o grande diretor que mostrou aqui. O fato é que Korine legou um filme para a posteridade.

Devo ter ficado muito chato ou exigente demais ao longo dos anos, mas, em matéria de cinema, quase nada me surpreende hoje em dia. É raro ver um filme que me chame a atenção, me encha os olhos e me faça agradecer por estar vivo e poder assisti-lo. Onde outros amigos cinéfilos vêem qualidades, só consigo enxergar banalidades e derivações, e bem que eu tento ver com outros olhos. Este Spring beakers - Garotas perigosas é uma dessas honoráveis exceções. Um bálsamo para minhas retinas fatigadas que se renderam ao espetáculo visual que se me descortinou durante a projeção.

A trama acompanha quatro amigas que vão passar as férias de primavera do título em um balneário na Flórida. Elas assaltam um restaurante para conseguir o dinheiro da viagem e, lá chegando, acabam se envolvendo com o submundo das drogas. Só descrito assim parece uma bobagem, um daqueles filmes descartáveis movidos a sexo e rock que já foram feitos aos milhares. Ocorre que este filme é o que se pode chamar de experiência, cujas qualidades estéticas superam com folgas as eventuais falhas do roteiro.

Harmony Korine se tornou mundialmente conhecido em 1995, com o roteiro de Kids, cujos cartazes de divulgação nos cinemas daqui traziam a frase: "Um alerta para o mundo!" O filme falava sobre um grupo de adolescentes que praticava sexo sem proteção, freqüentava festinhas de embalo movidas a drogas e bebia até cair. Apresentava-se como um retrato cru e verdadeiro daquela geração. De fato, trazia cenas chocantes, mas, no todo, era oco: não acrescentava nada ao debate sobre o tema, nem apresentava soluções ou caminhos para sua resolução. Ficou a impressão de que Korine queria causar escândalo e sair de fininho, sem apresentar idéias que sustentassem uma discussão mais séria.

Essa impressão se reforçou em seu trabalho seguinte lançado aqui, o horrível e hoje esquecido Ken Park (2002), que repisava o assunto sem qualquer novidade, mas causava risos por mostrar a cena de sexo mais ridícula da história. Vistos hoje, porém, penso que a culpa foi de Larry Clark, que assinou a direção de ambos os trabalhos. Pode ser que ele tenha estragado as histórias com sua conhecida preferência em mostrar rapazes imberbes nus ou de cueca em cena (ele é homossexual assumido), exercitando seu fetichismo doentio. Ou seja, subverteu o potencial dramático de ambas narrativas para promover onanismo audiovisual.

Selena Gómez (esq.) e suas amigas: férias inesquecíveis.
Impliquei com Korine por causa do roteiro de Mr. Lonely, que é um apanhado de ótimas idéias desperdiçadas por uma conclusão frouxa (veja a crítica que escrevi sobre o filme aqui no blog; depois, procure conhecê-lo, existe em DVD). No entanto, o visual daquele filme me impressionou. Havia um excelente uso da fotografia, tirando o máximo proveito dos cenários. Em Spring breakers - Garotas perigosas, Korine conseguiu unir essa qualidade a um roteiro contundente, embora haja falhas eventuais, sobretudo na composição das personagens femininas. Aqui, as imagens explodem na tela, formando um caleidoscópio de cores quentes e contrastantes, reforçado pela direção de arte agressiva, de grande impacto visual. Ele também traduz essa beleza de forma física, explorando os corpos jovens de suas atrizes, que passam o filme inteiro só de biquíni, o que não deixa de ser um atrativo e tanto para o espectador macho e pervertidão, mas não há nudez.

Os maneirismos técnicos criados pelo diretor estão a serviço da história, não são usados de forma gratuita - o que livra o filme de ser um daqueles pastéis de vento sobre os quais já escrevi. A trilha sonora de sucessos recentes presta suporte preciso às cenas e, combinada com a montagem dinâmica, suaviza a extrema violência de várias de suas passagens. Uma cena antológica é aquela em que o traficante toca piano e as meninas dançam ao som de Britney Spears enquanto imagens em perspectiva de suas atividades criminosas vão desfilando na tela. Bonito de fazer chorar.

Korine também foi muito feliz na condução do elenco. James Franco está irreconhecível como o traficante barato, que se disfarça de animador cultural enquanto arregimenta novos usuários para sua rede de viciados. O sucesso lhe sobe à cabeça e ele acaba se tornando algoz do chefão local, de quem até então era protegido (papel do rapper Gucci Mane). As garotas interpretam com muita naturalidade, sem excessos ou afetações. Selena Gómez é a carola certinha, de forte formação religiosa, que entra inocente no esquema da viagem mas tira o corpo fora quando percebe os rumos que a aventura vai tomando, e deixa as amigas Candy (Vanessa Hudgens), Brit (Ashley Benson) e Cotty (Rachel Korine, esposa do diretor) por conta e risco próprios. As férias de primavera vão ser muito divertidas. Só que deixarão marcas profundas em todos.

Entre um tiro e uma cheirada, James Franco agita a massa.
Reclamei que os personagens femininos são mal desenvolvidos. Terminamos o filme sem saber praticamente nada das meninas, suas motivações para agirem daquela forma, se é apenas um desejo de transgressão ou uma predisposição natural para o crime, fundamentada em um núcleo familiar disfuncional. Com exceção de Faith (Selena), cuja rotina é mostrada rapidamente e justifica sua decisão de retornar, as restantes flutuam em um mar de possibilidades. Talvez tenham laços familiares sólidos (telefonam para casa, dão satisfação para suas mães), talvez venham a se conhecer de verdade naquela situação, "sozinhas", guiadas por seus instintos e seus demônios pessoais. Não é assim com muita gente? Talvez ajam daquela forma só por farra, como uma inconseqüência normal da adolescência. Talvez seja o começo de algo maior, que as espera no futuro.

Spring breakers - Garotas perigosas é um dos títulos mais esperados no Festival do Rio, que começa na próxima sexta-feira. Não se sabe se ele entrará em circuito depois ou se irá direto para o mercado de vídeo - esta parece ser a hipótese mais viável, a julgar por uma das fotos de divulgação, que é justamente a capa do DVD nacional! Mas, na tela grande ou no conforto do lar, merece ser visto e apreciado. 

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