quinta-feira, 16 de abril de 2015

Beleza italiana

As maravilhas (2014)
Aguardado com grande expectativa no último Festival do Rio, As maravilhas acabou tendo sua exibição cancelada e restrita à Mostra de SP, para garantir o ineditismo de seu lançamento em terras brasileiras, uma disputa ridícula criada pelo falecido organizador do evento paulista, Leon Cakoff, e perpetuado pela viúva Renata Almeida, na qual quem sai perdendo são os cinéfilos. O tamanho da frustração foi proporcional à ansiedade do público, que, no entanto, já pode conferir a obra nos cinemas, onde entrou em cartaz nesta quinta-feira. Não é um filme fácil. Contudo, o espectador que se dispuser a embarcar no jogo de simbolismos proposto pela diretora Alice Rohrwacher (também roteirista e irmã mais nova da atriz Alba Rohrwacher) será plenamente recompensado.

A história se passa na zona rural da Itália, que mais se assemelha a um vilarejo fantasma, tal o isolamento em que vive aquela que parece ser a única família que ainda habita o local, formada pelo apicultor Wolfgang, sua esposa reprimida Angelica  e as quatro filhas, das quais a mais velha, Gelsomina, guarda para si a responsabilidade de cuidar das irmãs menores e dos afazeres domésticos mais pesados. O pai comanda o núcleo familiar com mão de ferro, sempre rígido em suas determinações, pouco afeito a qualquer tipo de carinho (não há um único momento de ternura entre ele e qualquer uma das mulheres que orbitam em seu universo). É um provedor no sentido mais tradicional e anacrônico da palavra. Evidentemente, o mundo conhecido e habitado pela família não é simpático e caminha rumo à demência, condenado ao desaparecimento inapelável, pela absoluta ausência de forças externas que injetem um mínimo de vida, mas é salvo da extinção graças ao acaso.

Gelsomina terá uma longa estrada da vida pela frente.
Um dia, em um dos raros momentos de lazer, à beira de um rio, uma das filhas descobre que está sendo gravado um programa de televisão ali perto, chamado "O país das maravilhas", espécie de reality show calcado nas antigas civilizações italianas que distribuirá prêmios em dinheiro para o vencedor. É a chance de escaparem da modorra e furarem a bolha em que estão encerradas. Paralelamente, a chegada de um menino alemão, que integra um programa social de reabilitação, promoverá ainda mais mudanças na estrutura engessada daquela família.

Visto com olhos desatentos, As maravilhas pode ser entendido apenas como uma coleção de cenas justapostas, interligando uma sucessão de acontecimentos aparentemente desinteressantes e carentes de um sentido maior que lhe confira unidade. No entanto, por baixo dessa superfície, há uma poderosa camada crítica, que discute temas complicados e condena de forma contundente certo imobilismo na construção de uma sociedade enclausurada pelo arcaísmo de suas tradições caducas.

O ritual da extração do mel, por exemplo, se transforma na glorificação de um patriarcalismo ancestral e ultrapassado: o produto das abelhas não é só o sustento da casa, mas, literalmente, é a seiva da vida, o próprio sêmen masculino, sem o qual toda a estrutura familiar desabaria. Conscientes ou não, as meninas têm noção de sua importância, e o desespero que se estampa na expressão de cada uma diante de uma cena de grande desperdício, amplificado pela palpável ameaça física – "Papai vai nos matar!" – denota o papel ocupado pelas mulheres naquele cenário. Neste sentido, o filme apresenta um discurso feminista muito poderoso, valendo-se da inteligência e da sutileza para dar o seu recado, coisa que as patetas integrantes do grupo Femen até hoje não entenderam.

O mundo real vem aí! Salvem o mundo real!
É um mundo de isolamento, estratificado pela permanência de uma situação estabelecida – a subserviência de uma "raça" sobre a outra – mas que anseia por mudanças, mesmo que seus gritos sejam pálidos, insistentemente repetidos, ameaças que não se concretizam ("Vou me divorciar! Vou me separar de você!"), não porque falte vontade, mas pela fragilidade que sustenta as personagens individualmente. Um mundo à parte do mundo real, que segue suas próprias regras mas entra em conflito quando se entrechoca com outras formas de vida. Assim, o menino alemão que é atirado no meio daquela família psicologicamente disfuncional assume, mesmo a contragosto, mesmo sem consciência, a função de uma válvula de escape: é o desabrochar sexual, que virá primeiro de maneira leve, delicada, por fim irrompendo em uma cena de forte impacto visual e simbólica na trama. Nele estão os novos dias. Nele está o novo tempo.

Também essa ambiência do estranhamento se sublinha no "espetáculo" apresentado pela pequena Caterina, que expele abelhas da boca com a naturalidade de um aceno, ignorando os olhares de espanto lançados pela platéia. Um momento de choque para a "vida real" que segue seu curso, mas perfeitamente normal para a família, que não percebe seu deslocamento e sua inadequação do estar-no-mundo.

As maravilhas é um filme tão intenso e tão repleto de metáforas e interpretações que fica difícil resumi-lo simplesmente de uma assentada. Precisa e merece ser visto mais de uma vez. Porém, justifica plenamente seu título, tanto do ponto de vista estético quanto pelo conteúdo, por vezes perturbador. Foi ovacionado durante 10 minutos no Festival de Cannes em 2014, do qual saiu com o Grande Prêmio do Júri. Arrebatador e, desde já, um dos melhores filmes do ano.

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