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As maravilhas (2014) |
Aguardado
com grande expectativa no último Festival do Rio, As maravilhas acabou tendo sua exibição cancelada e restrita à
Mostra de SP, para garantir o ineditismo de seu lançamento em terras
brasileiras, uma disputa ridícula criada pelo falecido organizador do evento
paulista, Leon Cakoff, e perpetuado pela viúva Renata Almeida, na qual quem sai
perdendo são os cinéfilos. O tamanho da frustração foi proporcional à ansiedade
do público, que, no entanto, já pode conferir a obra nos cinemas, onde entrou em cartaz nesta quinta-feira. Não é um filme fácil. Contudo, o espectador que se dispuser a
embarcar no jogo de simbolismos proposto pela diretora Alice Rohrwacher (também
roteirista e irmã mais nova da atriz Alba Rohrwacher) será plenamente
recompensado.
A
história se passa na zona rural da Itália, que mais se assemelha a um vilarejo
fantasma, tal o isolamento em que vive aquela que parece ser a única família
que ainda habita o local, formada pelo apicultor Wolfgang, sua esposa reprimida
Angelica e as quatro filhas, das quais a
mais velha, Gelsomina, guarda para si a responsabilidade de cuidar das irmãs
menores e dos afazeres domésticos mais pesados. O pai comanda o núcleo familiar
com mão de ferro, sempre rígido em suas determinações, pouco afeito a qualquer
tipo de carinho (não há um único momento de ternura entre ele e qualquer uma
das mulheres que orbitam em seu universo). É um provedor no sentido mais
tradicional e anacrônico da palavra. Evidentemente, o mundo conhecido e
habitado pela família não é simpático e caminha rumo à demência, condenado ao
desaparecimento inapelável, pela absoluta ausência de forças externas que
injetem um mínimo de vida, mas é salvo da extinção graças ao acaso.
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Gelsomina terá uma longa estrada da vida pela frente. |
Um
dia, em um dos raros momentos de lazer, à beira de um rio, uma das filhas
descobre que está sendo gravado um programa de televisão ali perto, chamado
"O país das maravilhas", espécie de reality show calcado nas antigas
civilizações italianas que distribuirá prêmios em dinheiro para o vencedor. É a
chance de escaparem da modorra e furarem a bolha em que estão encerradas.
Paralelamente, a chegada de um menino alemão, que integra um programa social de
reabilitação, promoverá ainda mais mudanças na estrutura engessada daquela
família.
Visto
com olhos desatentos, As maravilhas pode
ser entendido apenas como uma coleção de cenas justapostas, interligando uma
sucessão de acontecimentos aparentemente desinteressantes e carentes de um
sentido maior que lhe confira unidade. No entanto, por baixo dessa superfície,
há uma poderosa camada crítica, que discute temas complicados e condena de
forma contundente certo imobilismo na construção de uma sociedade enclausurada
pelo arcaísmo de suas tradições caducas.
O
ritual da extração do mel, por exemplo, se transforma na glorificação de um
patriarcalismo ancestral e ultrapassado: o produto das abelhas não é só o
sustento da casa, mas, literalmente, é a seiva da vida, o próprio sêmen
masculino, sem o qual toda a estrutura familiar desabaria. Conscientes ou não,
as meninas têm noção de sua importância, e o desespero que se estampa na
expressão de cada uma diante de uma cena de grande desperdício, amplificado
pela palpável ameaça física – "Papai vai nos matar!" – denota o papel
ocupado pelas mulheres naquele cenário. Neste sentido, o filme apresenta um
discurso feminista muito poderoso, valendo-se da inteligência e da sutileza
para dar o seu recado, coisa que as patetas integrantes do grupo Femen até hoje
não entenderam.
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O mundo real vem aí! Salvem o mundo real! |
É
um mundo de isolamento, estratificado pela permanência de uma situação
estabelecida – a subserviência de uma "raça" sobre a outra – mas que
anseia por mudanças, mesmo que seus gritos sejam pálidos, insistentemente
repetidos, ameaças que não se concretizam ("Vou me divorciar! Vou me
separar de você!"), não porque falte vontade, mas pela fragilidade que
sustenta as personagens individualmente. Um mundo à parte do mundo real, que
segue suas próprias regras mas entra em conflito quando se entrechoca com
outras formas de vida. Assim, o menino alemão que é atirado no meio daquela
família psicologicamente disfuncional assume, mesmo a contragosto, mesmo sem
consciência, a função de uma válvula de escape: é o desabrochar sexual, que
virá primeiro de maneira leve, delicada, por fim irrompendo em uma cena de
forte impacto visual e simbólica na trama. Nele estão os novos dias. Nele está
o novo tempo.
Também
essa ambiência do estranhamento se sublinha no "espetáculo"
apresentado pela pequena Caterina, que expele abelhas da boca com a
naturalidade de um aceno, ignorando os olhares de espanto lançados pela
platéia. Um momento de choque para a "vida real" que segue seu curso,
mas perfeitamente normal para a família, que não percebe seu deslocamento e sua
inadequação do estar-no-mundo.
As maravilhas é um filme tão
intenso e tão repleto de metáforas e interpretações que fica difícil resumi-lo
simplesmente de uma assentada. Precisa e merece ser visto mais de uma vez.
Porém, justifica plenamente seu título, tanto do ponto de vista estético quanto
pelo conteúdo, por vezes perturbador. Foi ovacionado durante 10 minutos no
Festival de Cannes em 2014, do qual saiu com o Grande Prêmio do Júri. Arrebatador
e, desde já, um dos melhores filmes do ano.
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