A asa ou a coxa (1976) |
Dizem
que comédia não se discute: é mais gosto adquirido que outra coisa. Se alguém
ri e gosta do que vê, por que criticar? Dizem também que se as cenas e as
situações forem realmente engraçadas, dá até para perdoar alguma incoerência no
roteiro. Claro que há comédias sofisticadas, com mensagens morais poderosas,
mas a função inicial do gênero é fazer rir. Por isso gostei desse A asa ou a coxa, dirigida pelo francês
Claude Zidi em 1976. Não é nenhuma obra-prima, não leva o espectador a grandes
questionamentos, mas cumpre o que promete: diverte.
Os
franceses não são reconhecidos exatamente pelo seu senso de humor, embora
tenham legado um dos grandes mestres nessa arte, Jacques Tati e seu
inesquecível Mr. Hulot, o ingênuo sonhador sempre às voltas com um mundo enlouquecido
pelas transformações urbanísticas e tecnológicas. Mas, em termos culinários, há
muito de que eles possam se orgulhar. A gastronomia francesa é das mais admiradas
e apreciadas no mundo todo. E é na certeza de zelar por ela de alguma forma que
Charles Duchemin (Louis de Funès) publica anualmente um guia com a
classificação de todos os restaurantes de Paris. Suas opiniões são tão
relevantes que ele acabou de ser eleito membro da prestigiosa Academia Francesa
de Gastronomia, o equivalente culinário à nossa ABL. Para Duchemin, não tem
discussão: comida é cor, sabor e prazer.
Charles Duchemin, um guardião da boa mesa. |
Mas
nem tudo é um saboroso ratatouille
para Duchemin. Para sua indigestão, ele descobre que seu filho Gérard prefere
trabalhar como palhaço de circo do que comandar panelas e caçarolas. Ao mesmo
tempo, a rede de lanchonetes Tricatel chega a Paris disposta a se tornar a
maior referência gastronômica do país. Duchemin agora terá de se desdobrar em duas receitas. Superar o
desgosto da descoberta paterna e impedir que a Tricatel se torne a preferida
dos comensais francófonos.
Embora
divertido, o roteiro de A asa ou a coxa
pega no arranco, já que se apóia (já falei, nada de Acordinho por aqui) em uma
premissa forçada para funcionar. A chegada de uma lanchonete a Paris não
representa exatamente uma ameaça à culinária local. Trata-se apenas de
diversificação alimentar, e quem gosta ou freqüenta os caros e sofisticados
restaurantes franceses não irá deixar de fazê-lo para se empanturrar de hambúrguer
e fritas. Assim, a revolta de Duchemin, no fundo, não tem razão de ser, mesmo
que ele se proclame a voz mais lúcida na nobre arte da gastronomia. Mas, como
escrevi no começo, tudo é perdoado se as piadas funcionam, e nesse ponto a
mistura dá liga. O filme aposta em um humor ingênuo, meio circense, quase
pastelão, mas sem ser bobo (e o mais importante, sem as baixarias que hoje são
comuns em produções do gênero), para arrancar risadas do espectador, recorrendo
a truques conhecidos do vaudeville,
como uma cena no restaurante logo no começo. Outro momento que reforça esse
aspecto é a seqüência da troca de malas nos quartos do hotel, talvez batida,
mas muito eficaz. Há ainda um longo entrecho passado no hospital. São cenas e
situações simples, mas que crescem com o auxílio da montagem dinâmica e ganham
contorno com o ótimo uso da música picaresca.
Gérard e Duchemin: todos contra a Tricatel. |
A
presença mais curiosa do elenco é a de Michel Colucci (assinando-se apenas Coluche),
um popular comediante parisiense que militou em diversas outras áreas do
entretenimento, não se fixando apenas no cinema. Em 1968, ele conheceu o também
ator e roteirista Romain Bouteille e juntos fundaram o Café de La Gare, um
teatro que serviu de palco para o início de vários futuros astros franceses,
entre eles Gérard Depardieu e Thierry Lermitte. Chegou a ser candidato à
presidência em 1981. Morreu em 1986, em um acidente de moto, poucos meses após
inscrever seu nome no Guiness, o livro dos recordes, justamente por realizar uma
façanha que envolvia uma moto! Aqui ele faz o papel de Gérard, o filho rebelde
do crítico gastronômico, o que naturalmente se explica por sua ligação com o
universo circense. Fez outros papéis menores em diversos filmes, estrelou
algumas produções de sucesso local, arriscou-se uma vez na direção em 1977 (a
comédia de época Vous n'aurez pas l'Alsace et la Lorraine, inédita no Brasil, da qual também escreveu o roteiro e compôs
uma das músicas da trilha sonora), mas nunca foi muito conhecido fora de lá,
restringindo-se ao universo francês.
Não
é possível afirmar, mas dá para supor que o roteiro contém uma crítica ácida e
direta ao McDonald's, que havia transposto as fronteiras européias cinco anos
antes, em 1971, estabelecendo-se inicialmente na Holanda e ganhando o
continente a partir de lá. A gastronomia francesa, decantada e respeitada em
todo o mundo, motivo de orgulho nacional, se via ameaçada pela comida
"plastificada" servida nas lanchonetes, parecida com o que a rede
Tricatel tenta empurrar aos consumidores locais. Ao que parece, Zidi também
tomou a invasão ianque como uma ofensa a seu país.
O
título se refere aos dois tipos de adereços que ornamentam a espada que
complementa o traje usado na cerimônia de posse da Academia Francesa de
Gastronomia, por um dos quais o membro deve optar. Se tanto a asa quanto a coxa
do frango não suscitam grandes expectativas gustativas em termos gerais, o
filme em si vale por uma refeição bem feita, temperada no ponto e que satisfaz
plenamente a qualquer paladar. A ser degustado, de preferência acompanhado de
um bom copo de vinho.
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