quinta-feira, 16 de maio de 2013

Um bom prato de risadas


A asa ou a coxa (1976)
Dizem que comédia não se discute: é mais gosto adquirido que outra coisa. Se alguém ri e gosta do que vê, por que criticar? Dizem também que se as cenas e as situações forem realmente engraçadas, dá até para perdoar alguma incoerência no roteiro. Claro que há comédias sofisticadas, com mensagens morais poderosas, mas a função inicial do gênero é fazer rir. Por isso gostei desse A asa ou a coxa, dirigida pelo francês Claude Zidi em 1976. Não é nenhuma obra-prima, não leva o espectador a grandes questionamentos, mas cumpre o que promete: diverte.

Os franceses não são reconhecidos exatamente pelo seu senso de humor, embora tenham legado um dos grandes mestres nessa arte, Jacques Tati e seu inesquecível Mr. Hulot, o ingênuo sonhador sempre às voltas com um mundo enlouquecido pelas transformações urbanísticas e tecnológicas. Mas, em termos culinários, há muito de que eles possam se orgulhar. A gastronomia francesa é das mais admiradas e apreciadas no mundo todo. E é na certeza de zelar por ela de alguma forma que Charles Duchemin (Louis de Funès) publica anualmente um guia com a classificação de todos os restaurantes de Paris. Suas opiniões são tão relevantes que ele acabou de ser eleito membro da prestigiosa Academia Francesa de Gastronomia, o equivalente culinário à nossa ABL. Para Duchemin, não tem discussão: comida é cor, sabor e prazer.

Charles Duchemin, um guardião da boa mesa.
Mas nem tudo é um saboroso ratatouille para Duchemin. Para sua indigestão, ele descobre que seu filho Gérard prefere trabalhar como palhaço de circo do que comandar panelas e caçarolas. Ao mesmo tempo, a rede de lanchonetes Tricatel chega a Paris disposta a se tornar a maior referência gastronômica do país. Duchemin agora terá de se  desdobrar em duas receitas. Superar o desgosto da descoberta paterna e impedir que a Tricatel se torne a preferida dos comensais francófonos.

Embora divertido, o roteiro de A asa ou a coxa pega no arranco, já que se apóia (já falei, nada de Acordinho por aqui) em uma premissa forçada para funcionar. A chegada de uma lanchonete a Paris não representa exatamente uma ameaça à culinária local. Trata-se apenas de diversificação alimentar, e quem gosta ou freqüenta os caros e sofisticados restaurantes franceses não irá deixar de fazê-lo para se empanturrar de hambúrguer e fritas. Assim, a revolta de Duchemin, no fundo, não tem razão de ser, mesmo que ele se proclame a voz mais lúcida na nobre arte da gastronomia. Mas, como escrevi no começo, tudo é perdoado se as piadas funcionam, e nesse ponto a mistura dá liga. O filme aposta em um humor ingênuo, meio circense, quase pastelão, mas sem ser bobo (e o mais importante, sem as baixarias que hoje são comuns em produções do gênero), para arrancar risadas do espectador, recorrendo a truques conhecidos do vaudeville, como uma cena no restaurante logo no começo. Outro momento que reforça esse aspecto é a seqüência da troca de malas nos quartos do hotel, talvez batida, mas muito eficaz. Há ainda um longo entrecho passado no hospital. São cenas e situações simples, mas que crescem com o auxílio da montagem dinâmica e ganham contorno com o ótimo uso da música picaresca.

Gérard e Duchemin: todos contra a Tricatel.
A presença mais curiosa do elenco é a de Michel Colucci (assinando-se apenas Coluche), um popular comediante parisiense que militou em diversas outras áreas do entretenimento, não se fixando apenas no cinema. Em 1968, ele conheceu o também ator e roteirista Romain Bouteille e juntos fundaram o Café de La Gare, um teatro que serviu de palco para o início de vários futuros astros franceses, entre eles Gérard Depardieu e Thierry Lermitte. Chegou a ser candidato à presidência em 1981. Morreu em 1986, em um acidente de moto, poucos meses após inscrever seu nome no Guiness, o livro dos recordes, justamente por realizar uma façanha que envolvia uma moto! Aqui ele faz o papel de Gérard, o filho rebelde do crítico gastronômico, o que naturalmente se explica por sua ligação com o universo circense. Fez outros papéis menores em diversos filmes, estrelou algumas produções de sucesso local, arriscou-se uma vez na direção em 1977 (a comédia de época Vous n'aurez pas l'Alsace et la Lorraine, inédita no Brasil, da qual também escreveu o roteiro e compôs uma das músicas da trilha sonora), mas nunca foi muito conhecido fora de lá, restringindo-se ao universo francês.

Não é possível afirmar, mas dá para supor que o roteiro contém uma crítica ácida e direta ao McDonald's, que havia transposto as fronteiras européias cinco anos antes, em 1971, estabelecendo-se inicialmente na Holanda e ganhando o continente a partir de lá. A gastronomia francesa, decantada e respeitada em todo o mundo, motivo de orgulho nacional, se via ameaçada pela comida "plastificada" servida nas lanchonetes, parecida com o que a rede Tricatel tenta empurrar aos consumidores locais. Ao que parece, Zidi também tomou a invasão ianque como uma ofensa a seu país.

O título se refere aos dois tipos de adereços que ornamentam a espada que complementa o traje usado na cerimônia de posse da Academia Francesa de Gastronomia, por um dos quais o membro deve optar. Se tanto a asa quanto a coxa do frango não suscitam grandes expectativas gustativas em termos gerais, o filme em si vale por uma refeição bem feita, temperada no ponto e que satisfaz plenamente a qualquer paladar. A ser degustado, de preferência acompanhado de um bom copo de vinho.

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