quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A censura matou o gato (e o rato)

Setenta anos de perseguição sem censura. Até agora.
Um lançamento em blu-ray, prometido pela Warner inicialmente para junho deste ano, mas adiado para 2014, está causando polêmica nos Estados Unidos e faz voltar à tona a discussão acerca dos limites da censura em nome do politicamente correto. A distribuidora anunciou a coletânea Tom e Jerry Golden Collection - volume two, que seria um presentão para os fãs da dupla, legítima representante da chamada Era de Ouro da animação em Hollywood. Porém, quando sites de comércio virtual divulgaram a relação de desenhos contidos na fita, o que chamou a atenção foram as ausências: dois episódios haviam sido sumariamente excluídos da coletânea por trazerem, segundo a distribuidora, cenas de intolerância racial e com excesso de violência na relação entre o gato e o rato.

Os desenhos já não são mais exibidos há anos nos canais de TV locais. É claro que no Brasil nunca houve qualquer restrição, porque lembro-me de assisti-los com freqüência quando criança. Não sei se pela época mais livre e permissiva daquele tempo, os bons e velhos anos 80, ou se pela minha natural ingenuidade infantil, jamais vi indícios de preconceito ou apologias contrárias à moral e aos bons costumes. Para mim, eram apenas desenhos animados, e é como continuo vendo-os ainda hoje, já adulto e, portanto, quando poderia identificar um discurso nazi-fascista dissimulado em meio às peripécias da dupla. 

Naturalmente, a proibição chamou a atenção para os desenhos, que, em condições normais, passariam despercebidos em meio a outros de alguma coletânea. Mesmo porque estão disponíveis na internet para quem quiser ver e tiver um pouco de paciência para procurá-los. Mas o leitor do CineComFritas que, como eu, ficou curioso para saber o que há de tão errado nos desenhos, não precisa perder tempo caçando ambos na rede: pode assisti-los diretamente aqui no blog.

O primeiro, Mouse cleaning, de 1948, foi vetado sob a alegação de promover conteúdo de sugestão racista, já que o gato aparece com o rosto pintado de preto, uma cena bem rápida, quase no final. Veja abaixo e tire suas conclusões.




Forçando demais a barra, e fazendo um esforço de associação de idéias e imagens, podemos perceber uma mensagem subjetiva: admite-se que os "negros" sejam enxotados de suas casas, ou de casas alheias, em nome de uma atmosfera de "limpeza" e ordem. Crianças entenderiam assim?

O outro desenho censurado foi Casanova cat, de 1951. Contra este, pesam mais argumentos, todos insustentáveis: excesso de violência (aqui há tanto quanto em qualquer outro desenho da dupla), racismo, incentivo ao tabagismo e não sei como também não o acusaram de apologia ao homossexualismo! Você pode ver - ou não - tudo isso no vídeo abaixo.



De novo é preciso forçar a barra e ver um resquício subliminar de racismo, com os "negros" servindo de instrumento de riso usado pelos "brancos". E de novo: alguma criança estabeleceria esse tipo de relação? Admito que só fiz essas interpretações porque fui direcionado a tanto. A maldade está, como sempre, nos olhos do adulto, que prefere o caminho fácil da censura ao diálogo aberto com os filhos, explicando que não existem diferenças entre as raças. 

Apesar da gritaria dos fãs, a Warner emitiu uma nota em que reafirma sua intenção de não voltar atrás na decisão do veto: "A empresa sentiu que certo conteúdo seria inapropriado para o público alvo (crianças) e por isso excluiu alguns trechos." Fãs escreverem em uma rede social revoltados com a censura, defendendo que não é possível corrigir erros do passado simplesmente ignorando-os, para fingir que nunca existiram. "É uma vergonha omitir peças históricas numa coleção", protestou um. A cultura de um tempo sempre se reflete nos elementos artísticos de sua época. Se ela traz resquícios de um pensamento que hoje seria moralmente condenável, é porque ele estava presente na sociedade de então. Querer passar a borracha em um passado que traz constrangimento aos nossos dias belicosos guiados pelo politicamente correto, em que até o humor é patrulhado para não ferir sensibilidades de algumas fatias da sociedade, é assumir a repressão orwelliana prevista em 1984, quando, sob as ordens do Grande Irmão, a história era constantemente apagada e reescrita, mantendo a fantasia de que tudo era perfeito e limpo.

A capa da coleção incompleta.
A questão da censura aos desenhos abrange aspectos muito maiores, que não cabem aqui, mas devem ser debatidos em todas as esferas sociais. Faz lembrar um episódio recente ocorrido ano passado, quando o Ministério da Educação e Cultura (MEC) vetou o livro Caçadas do Pedrinho, de Monteiro Lobato, por causa de uma passagem em que o autor, supostamente, comparava a personagem da Tia Nastácia a uma macaca. Ou seja, perdeu-se a oportunidade de dialogar sobre as implicações sociais de tal representação, e no que ela tem ou teria de preconceituosa, em prol de uma solução mais "fácil", porém igualmente condenável. 

A melhor resposta que o público pode dar a essa arbitrariedade, e, ao mesmo tempo, demonstrar seu descontentamento com a interferência de uma suposta "autoridade superior" que pode decidir o que deve ou não ser visto, é deixar de comprar a coletânea e fazê-la encalhar nas prateleiras. Será que a Warner recolherá o produto e o lançará completo, como se espera de uma peça de coleção?

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