quinta-feira, 15 de maio de 2014

Machadão do povão

Sou a favor de qualquer iniciativa que promova a leitura. Mas é preciso usar de sabedoria para divulgar esse hábito. Uma das idéias mais absurdas que já vi circulou pela imprensa na semana passada e previa a simplificação das obras de Machado de Assis para torná-las mais acessíveis a uma parcela significativa de leitores, especialmente os mais jovens. A justificativa para tamanha sandice é que o estilo do autor é muito complexo para as novas gerações que, por isso, acabam por se afastar de seus livros. Pior que essa idéia partiu de uma escritora, Patrícia Secco (nenhum parentesco com a atriz), com larga experiência na literatura infantojuvenil. Pior ainda: parece contar com o aval do Ministério da Educação e Cultura (MEC)!

Tive de ler a reportagem várias vezes para me convencer que era verdadeira. A autora prepara o lançamento de uma versão "simplificada" da novela O alienista, sem os termos considerados complicados e reduzindo o tamanho das frases e períodos originalmente adotados por Machado. "Entendo porque os jovens não gostam [de Machado de Assis]", explicou Patrícia nas entrevistas de divulgação. "Os livros dele têm cinco a seis palavras por frase que não são compreensíveis." Como exemplo, a palavra "sagacidade" saiu do texto e deu lugar a "esperteza". Patrícia ainda se defendeu das acusações de que teria alterado a obra, lançada em 1882: "Não modifico nada, apenas simplifico". 

Morreu mas depois voltou
A iniciativa passou algo despercebida pela população em geral, o que era esperado, afinal, quem vai espernear por causa de um assunto desimportante como este? Mas gerou revolta nos meios intelectuais e motivou reações indignadas de pessoas que militam no universo artístico como um todo. Meu amigo Jorge Ney Valentim, ilustrador e professor de História da Arte, fez uma previsão sombria em uma rede social: "Espero que de hoje em diante (...) grandes exposições como tivemos aqui de Modigliani, os Impressionistas e outros maravilhosos artistas (...) acompanhem-se de um catálogo com simplificações de suas obras para que os nossos 'idiotas' sem orientação educacional possam entender!" Infelizmente, a coisa caminha para esse nível. (Tomei a liberdade de auxiliar por conta própria no processo de simplificação, sugerindo novos títulos para obras de Machado, como se lê nas legendas das ilustrações ao longo da coluna.)

Machado de Assis sempre foi considerado um dos autores mais populares do país, mas sempre imaginei que tal honraria se deve muito mais ao fato de ser bastante cobrado nas provas de vestibular, o que naturalmente faz com que seu nome e seus livros circulem, mesmo que à fórceps, entre os estudantes. Não significa que todo mundo o leia contra a vontade. Em uma idade na qual os adolescentes estão firmando o hábito da leitura, é possível descobrir o universo machadiano e se encantar por ele, levando-os posteriormente a conhecer outros autores. Se ele utiliza palavras complicadas ou pouco conhecidas, não é nada que uma simples consulta a um bom e velho dicionário não seja capaz de resolver. Estarão as novas gerações tão entretidas com seus smartphones e tablets que não têm tempo para folhear um dicionário? Será preguiça?

A ledora de mãos
Há outras questões que tangenciam essa discussão. A mais relevante, a meu ver, é a comprovação da falência do sistema educacional como um todo, hoje incapaz de despertar um mínimo de interesse na prática da leitura. Esse é um problema antigo. Professores de forma geral obrigam seus alunos a ler para cobrar pontos em prova, ou seja, o que deveria ser incentivado como um prazer vira uma tortuosa obrigação, e não há como desfrutar de uma atividade estreitamente relacionada a uma "recompensa acadêmica", no caso, uma nota boa ou ruim. No meu tempo de moleque já era assim, eu é que gostava de ler mesmo, lia por conta própria, sem esperar que os professores determinassem.

O mais grave, contudo, é perceber que estamos (a sociedade como um todo) regredindo assustadoramente em diversos níveis, sobretudo intelectual. Ao invés de propor a melhoria da qualidade do ensino e se preocupar em fomentar práticas educacionais que elevem o interesse pela leitura, o MEC, disfarçadamente, assume que a coisa não tem mais solução, chegou ao fundo do poço, e a única saída para evitar uma catástrofe cultural de proporções ainda maiores é simplificar um texto que há mais de 100 anos é reverenciado como um dos grandes exemplares das letras nacionais. Ou seja, a cultura deve se dobrar ao nível mais rasteiro da compreensão para ser consumida, difundida, para que haja interesse. Será que alguém nas altas esferas do supracitado ministério tem noção do que significa esse nivelamento? Será que ninguém percebe onde iremos parar se continuarmos seguindo essa linha de pensamento?

Antes de virar borboleta era isso
O Brasil atravessa um período falimentar em termos de cultura, educação, inteligência. Jovens ouvem insignificâncias sonoras que, em tempos idos e mais sérios, sequer seriam mencionadas pela imprensa, mas hoje são cultuadas, apresentam-se regularmente nos programas de televisão divulgando sua "arte". O país pára por causa do capítulo final da novela, comentam-se as baixarias do reality show, mobilizam-se multidões enlouquecidas em torno de um espetáculo de selvageria sanguinolenta travestido de esporte, exaltam-se figuras que são um zero absoluto em termos de construção da identidade nacional – é quase inacreditável que a maior rede de TV brasileira ocupe um programa dominical inteiro lamentando a morte de um cidadão que era nada, celebrizando a nulidade, muita gente que chorou por ele nem sabia de quem se tratava até a semana anterior, se cruzasse com ele na rua nem iria reconhecê-lo. Recentemente perdemos artistas e cantores representativos do cenário cultural brasileiro e não vi a mesma preocupação em homenageá-los de forma condizente com sua grandeza, nenhum programa dedicado a este ou àquele artista. 

Dom Teimosão
Mais grave é que não se vê nada, nenhuma iniciativa séria, nenhuma preocupação efetiva que aponte soluções ou busque caminhos para melhorar ou ao menos evitar a hecatombe sociocultural que se prenuncia de forma galopante e incontornável. É neste cenário que uma escritora – justamente uma escritora! – se propõe a "ajudar" as novas gerações a lerem Machado de Assis. Não por meio do debate sadio, da investigação do estilo, da curiosidade pela descoberta. Apenas por meio da simplificação de palavras, porque – a verdade é uma só, tristemente arremessada na nossa frente – os jovens de hoje não têm inteligência para compreender uma frase de estilo mais complexo. Não sabem o que é "sagacidade", mas cantam os "pancadões" cujas letras parecem ter sido buriladas por algum oligofrênico (que palavra é esta? Existe?), repetindo a poesia concreta das poderosas e pensadoras que fazem sucesso. Quanta cultura! Altíssimo nível! É duro, meu camarada!

O assunto é tão rico em discussão que caberia em mais duas ou três postagens, mas os textos ficariam grandes demais, vai que algum "leitor da nova geração" reclama do tamanho e me acusa de antiquado, de complicado (se isso acontecer, agradeço desde já!) ou de termos menos cavalheirescos e de uso mais corrente. Além disso, a insistência opinativa torna-o repetitivo e algo cansativo. Mas que é de partir o coração, não há dúvida. Pelo visto, teremos de nos conformar em aguardar o trepidante lançamento de Dom Teimosão para os próximos meses. Socorro!!! 

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