Sou a
favor de qualquer iniciativa que promova a leitura. Mas é preciso usar de
sabedoria para divulgar esse hábito. Uma das idéias mais absurdas que já
vi circulou pela imprensa na semana passada e previa a simplificação das obras
de Machado de Assis para torná-las mais acessíveis a uma parcela significativa de
leitores, especialmente os mais jovens. A justificativa para tamanha sandice é
que o estilo do autor é muito complexo para as novas gerações que, por isso,
acabam por se afastar de seus livros. Pior que essa idéia partiu de uma
escritora, Patrícia Secco (nenhum parentesco com a atriz), com larga
experiência na literatura infantojuvenil. Pior ainda: parece contar com o aval
do Ministério da Educação e Cultura (MEC)!
Tive de ler a reportagem várias vezes para me convencer que era
verdadeira. A autora prepara o lançamento de uma versão
"simplificada" da novela O alienista, sem os termos
considerados complicados e reduzindo o tamanho das frases e períodos
originalmente adotados por Machado. "Entendo porque os jovens não gostam
[de Machado de Assis]", explicou Patrícia nas entrevistas de divulgação.
"Os livros dele têm cinco a seis palavras por frase que não são
compreensíveis." Como exemplo, a palavra "sagacidade" saiu do
texto e deu lugar a "esperteza". Patrícia ainda se defendeu das
acusações de que teria alterado a obra, lançada em 1882: "Não modifico
nada, apenas simplifico".
Morreu mas depois voltou |
A iniciativa passou algo despercebida pela população em geral, o que era
esperado, afinal, quem vai espernear por causa de um assunto desimportante como
este? Mas gerou revolta nos meios intelectuais e motivou reações indignadas de
pessoas que militam no universo artístico como um todo. Meu amigo Jorge Ney
Valentim, ilustrador e professor de História da Arte, fez uma previsão sombria em uma rede social: "Espero que de hoje em
diante (...) grandes exposições como tivemos aqui de Modigliani, os
Impressionistas e outros maravilhosos artistas (...) acompanhem-se de um
catálogo com simplificações de suas obras para que os nossos 'idiotas' sem
orientação educacional possam entender!" Infelizmente, a coisa caminha
para esse nível. (Tomei a liberdade de auxiliar por conta própria no processo de
simplificação, sugerindo novos títulos para obras de Machado, como se lê nas
legendas das ilustrações ao longo da coluna.)
Machado de Assis sempre foi considerado um dos autores mais populares do
país, mas sempre imaginei que tal honraria se deve muito mais ao fato de ser bastante cobrado nas provas de vestibular, o que naturalmente faz com que seu nome
e seus livros circulem, mesmo que à fórceps, entre os estudantes. Não significa
que todo mundo o leia contra a vontade. Em uma idade na qual os adolescentes estão
firmando o hábito da leitura, é possível descobrir o universo machadiano e se
encantar por ele, levando-os posteriormente a conhecer outros autores. Se ele
utiliza palavras complicadas ou pouco conhecidas, não é nada que uma simples
consulta a um bom e velho dicionário não seja capaz de resolver. Estarão as
novas gerações tão entretidas com seus smartphones e tablets que não têm tempo
para folhear um dicionário? Será preguiça?
A ledora de mãos |
Há outras questões que tangenciam essa discussão. A mais relevante, a
meu ver, é a comprovação da falência do sistema educacional como um todo, hoje
incapaz de despertar um mínimo de interesse na prática da leitura. Esse é um
problema antigo. Professores de forma geral obrigam seus alunos a ler para
cobrar pontos em prova, ou seja, o que deveria ser incentivado como um prazer
vira uma tortuosa obrigação, e não há como desfrutar de uma atividade
estreitamente relacionada a uma "recompensa acadêmica", no caso, uma
nota boa ou ruim. No meu tempo de moleque já era assim, eu é que gostava de ler
mesmo, lia por conta própria, sem esperar que os professores determinassem.
O mais grave, contudo, é perceber que estamos (a sociedade como um todo)
regredindo assustadoramente em diversos níveis, sobretudo intelectual. Ao invés
de propor a melhoria da qualidade do ensino e se preocupar em fomentar práticas
educacionais que elevem o interesse pela leitura, o MEC, disfarçadamente,
assume que a coisa não tem mais solução, chegou ao fundo do poço, e a única
saída para evitar uma catástrofe cultural de proporções ainda maiores é
simplificar um texto que há mais de 100 anos é reverenciado como um dos grandes
exemplares das letras nacionais. Ou seja, a cultura deve se dobrar ao nível
mais rasteiro da compreensão para ser consumida, difundida, para que haja
interesse. Será que alguém nas altas esferas do supracitado ministério tem
noção do que significa esse nivelamento? Será que ninguém percebe onde iremos
parar se continuarmos seguindo essa linha de pensamento?
Antes de virar borboleta era isso |
O Brasil atravessa um período falimentar em termos de cultura, educação,
inteligência. Jovens ouvem insignificâncias sonoras que, em tempos idos e mais
sérios, sequer seriam mencionadas pela imprensa, mas hoje são cultuadas,
apresentam-se regularmente nos programas de televisão divulgando sua
"arte". O país pára por causa do capítulo final da novela,
comentam-se as baixarias do reality show, mobilizam-se multidões enlouquecidas
em torno de um espetáculo de selvageria sanguinolenta travestido de esporte,
exaltam-se figuras que são um zero absoluto em termos de construção da
identidade nacional – é quase inacreditável que a maior rede de TV
brasileira ocupe um programa dominical inteiro lamentando a morte de um cidadão
que era nada, celebrizando a nulidade, muita gente que chorou por ele nem sabia
de quem se tratava até a semana anterior, se cruzasse com ele na rua nem iria
reconhecê-lo. Recentemente perdemos artistas e cantores representativos do
cenário cultural brasileiro e não vi a mesma preocupação em homenageá-los de
forma condizente com sua grandeza, nenhum programa dedicado a este ou àquele
artista.
Dom Teimosão |
Mais grave é que não se vê nada, nenhuma iniciativa séria, nenhuma
preocupação efetiva que aponte soluções ou busque caminhos para melhorar ou ao
menos evitar a hecatombe sociocultural que se prenuncia de forma galopante e
incontornável. É neste cenário que uma escritora – justamente uma
escritora! – se propõe a "ajudar" as novas gerações a lerem
Machado de Assis. Não por meio do debate sadio, da investigação do estilo, da
curiosidade pela descoberta. Apenas por meio da simplificação de palavras,
porque – a verdade é uma só, tristemente arremessada na nossa frente – os
jovens de hoje não têm inteligência para compreender uma frase de estilo mais
complexo. Não sabem o que é "sagacidade", mas cantam os
"pancadões" cujas letras parecem ter sido buriladas por algum
oligofrênico (que palavra é esta? Existe?), repetindo a poesia concreta das poderosas e pensadoras que fazem sucesso. Quanta cultura! Altíssimo nível! É
duro, meu camarada!
O assunto é tão rico em discussão que caberia em mais duas ou três
postagens, mas os textos ficariam grandes demais, vai que algum "leitor da
nova geração" reclama do tamanho e me acusa de antiquado, de complicado
(se isso acontecer, agradeço desde já!) ou de termos menos cavalheirescos e de uso
mais corrente. Além disso, a insistência opinativa torna-o repetitivo e algo
cansativo. Mas que é de partir o coração, não há dúvida. Pelo visto, teremos de
nos conformar em aguardar o trepidante lançamento de Dom Teimosão para
os próximos meses. Socorro!!!
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