Estou
convencido de que o ano passado foi um ponto fora da rota na organização do
Festival do Rio. Tudo o que serviria de parâmetro a partir de então foi esquecido,
em parte, certamente, pela indefinição sobre o futuro do Grupo Estação: vai
fechar?, não vai fechar? Como programar filmes para salas que não se sabia se
estariam funcionando na época? E nós, que nada temos com isso, é que somos os
grandes prejudicados. Nunca vi um evento cultural gerar mais estresse do que
euforia no público. Isso não pode ser assim. O Festival é uma atração turística
da cidade, precisa ser bem-tratado e organizado de forma profissional, senão
quem vem de fora simplesmente não volta depois. É difícil entender isso?
Também
os atrasos voltaram a acontecer, mesmo que pequenos, de cinco ou dez minutos, o
que pode ser fatal para quem monta uma programação com horários próximos e
cinemas nem tanto. No meio de tudo isso, há o cinema, claro. Eis o que vi na
primeira semana, compreendida entre os dias 25 de setembro e 1º de outubro (alguns títulos foram traduzidos por conta própria; o título de exibição está entre parênteses):
MARÍA
E O HOMEM ARANHA -
Por trás da aparente aventurinha infantojuvenil, se revela um drama sério e
trágico, mostrando uma realidade que raramente vemos no cinema argentino, a
vida nas periferias (seria o "favela-movie" deles). O Homem Aranha é
um menino que faz malabarismos no metrô de Buenos Aires. Tudo conduzido de
forma sóbria, sem música, sem ação do poder paralelo e sem festa na laje. * * *
PESSOAS
EM LUGARES -
Tem a mesma estrutura narrativa de Vocês,
os vivos e filmes similares, ou seja: várias esquetes, sem muita ligação
entre si, compondo um mosaico da existência humana em situações diversas.
Confesso que já estou me cansando desse tipo de filme. Este é ainda pior por
nem ser engraçado como se pretendia. A melhor piada é a dos ladrões que arrumam
a casa em vez de roubá-la! Um rosário de astros espanhóis em pequenas aparições
(Carlos Areces, Antônio de La Torre, Maribel Verdu envelhecida mas ainda linda
e muitos outros). *
O
FUTURO -
Logo no primeiro dia e já surge o candidato a pior filme do festival. Com tanto
filme bom que ficou fora da seleção, o jeito foi arrumar qualquer coisa para
oferecer ao público, que paga para ver uma joça como essa. A
"história" se passa inteiramente durante uma festa, na época da
Movida Madrilenha (começo dos anos 80), onde jovens dançam e se divertem,
esperançosos do porvir. Os diálogos não dizem nada: tudo é comentado pelas
letras das canções que tocam o tempo todo e reproduzem pensamentos de revolução
e liberdade. Tem um simbolismo visual interessante (o buraco negro que cobre os
personagens no final), mas é só. A idéia era ótima: opor a esperança da
juventude espanhola naquele momento com a crise atual. Só que o diretor optou
pela displicência e jogou fora o potencial do filme. Parece interminável, mesmo
mal chegando a 70 minutos.
ASTERÓIDE - Uma mulher
volta para a casa do irmão e tenta aparar arestas passadas. Um tema já visto à
exaustão no cinema não ganha nada de original nesse drama mexicano frio e sem
maiores destaques. Nem os aplausos protocolares foram ouvidos ao final da sessão, que foi apresentada pelo diretor. Este asteróide só fica orbitando e
nunca chega a lugar algum. * *
MAPAS
PARA AS ESTRELAS
- Depois de Marcas da violência,
David Cronemberg passou a ser finalmente visto como um cineasta sério e
respeitado pela indústria. Um reconhecimento tardio e merecido. No entanto, de
lá para cá, seus filmes vêm se tornando cada vez mais difíceis de ver. Se por
um lado eles ganharam um capricho maior na produção e um refinamento na direção
de arte, o que lhes garante qualidade superior, por outro, ficaram de uma
lentidão narrativa tão excessiva que se tornaram entediantes. Seu último
trabalho, Cosmópolis, chegava a ser
penoso de assistir, mas pelo menos tinha a desculpa de se basear em livro
igualmente chato, de Don de Lillo. Aqui, Cronemberg chega ao limite do enervante. É verdade que poucas vezes se
viu na tela uma crítica tão ácida e devastadora à fábrica de sonhos que é
Hollywood, embora o tema já tenha sido explorado outras vezes (O jogador, de Robert Altman; e, mais
recentemente, Cidade dos sonhos, de
David Lynch). Há também toneladas de referências e citações a outros filmes e
brincadeiras cifradas que o cinéfilo mais atento e experimentado saberá
identificar. O grande problema é que a história simplesmente não cativa o
espectador, que se aborrece com o ritmo claudicante da narrativa e não consegue
simpatizar com qualquer um dos personagens. A única centelha de energia do
filme é Julianne Moore. Ensandecida, histérica, amarga, patética, despudorada,
sempre na medida. É uma das grandes atuações femininas do ano (ganhou em
Cannes) e pode finalmente lhe render o tão merecido Oscar. Aliás, o elenco principal
tem bons nomes: John Cusack, Mia Wasikowska e dois queridinhos recentes do diretor, Sarah Gadon e Robert
Pattinson, mais uma vez tentando se livrar do vampirinho que marcou sua
carreira. O filme realmente não me agradou e me fez sentir saudade do
Cronemberg dos velhos tempos. Se o preço do respeito é fazer trabalhos
entediantes assim, melhor ser marginal. É bem mais divertido. * *
NOIVAS
-
Mulher se sente dividida entre manter o relacionamento com o companheiro, preso
há seis anos, ou se entregar a um vizinho. Um retrato do sistema prisional
georgiano, narrado de forma correta e enxuta, mas que termina de forma abrupta
e inconclusa. * *
CORRENTE
DO MAL -
Terror à antiga, que investe no clima e na ambientação em detrimento dos
recursos fáceis e descartáveis de hoje, como tripas à mostra ou torturas
gratuitas. O roteiro, porém, erra ao não deixar claro que maldição é aquela que
ronda os jovens do subúrbio. Espécie de homenagem involuntária ao gênero dos
anos 80, mas com a moral inversa: aqui, o sexo não é a metáfora causadora das
mortes, mas uma solução para evitá-las. Não há, contudo, cenas eróticas. * * *
SÓ
DEUS SABE -
Rotina de uma viciada sem-teto de Nova York. Baseado em livro escrito por
Ariella Holmes, que interpreta o papel principal, cercada de um elenco
inteiramente desconhecido, e que até se sai bem. E ela acaba sendo o maior entrave à
credibilidade da história: é linda e "limpinha" demais para convencer
como mendiga. A história também não desperta maior interesse. Salva-se a
estética documental e propositalmente suja. * *
METAMORFOSES
-
Uma interessante recriação de lendas conhecidas da mitologia grega, transpostas
para o dia de hoje e encenadas em ambientes bucólicos (matas, montanhas). É o
filme menos gay de Honoré. Tem um visual bonito, explorando a beleza das
locações, mas é um tanto arrastado. * *
PERDIDO
EM KARASTAN - Menos
engraçada do que promete a sinopse. Karastan é uma república fictícia que
promove seu primeiro festival de cinema e homenageia um diretor medíocre e
desconhecido. Razoável no contraste cultural, com situações que parecem
incompletas e piadas fracas. Também se compromete com um crescendo de violência
incompatível com a proposta. Teve um absurdo atraso de meia hora por causa de
problemas técnicos! * *
A
VIA-CRÚCIS (Stations of the cross) - O filme é
dividido em 15 cenas curtas, cada uma com o nome de uma estação da Via-Crúcis.
Nestes quadros, conta-se a história da jovem Maria, em luta para manter sua fé
e seu ideal de perfeição religiosa nos dias de hoje. Um apavorante retrato da
devoção cega, dos limites a que uma pessoa pode chegar em nome de sua fé. O
diretor usa câmera estática (menos em dois momentos) e rigorosa direção de arte
para criar um ambiente ao mesmo tempo opressivo e poético. Um belo filme, capaz
de dialogar com públicos variados: desde os católicos mais fervorosos (que
poderão chegar ao limite de suas emoções), até os ateus. O título original em
alemão, Kreuzweg, significa calvário.
* * * *
ELA
PERDEU O CONTROLE - A premissa lembra As sessões, mas, ao contrário daquele, a terapeuta daqui não está
interessada em questões sexuais, atendo-se aos aspectos emocionais de seus
pacientes. A história se mantém em fogo brando, caminhando pelo terreno mais
seguro da narrativa convencional. Em seu primeiro longa-metragem, a diretora e
roteirista Anja Marquardt optou por uma timidez que não combina com a ousadia
sugerida pela idéia. * *
DESLIGANDO
CHARLEEN -
É uma boa surpresa este filme alemão, que consegue a proeza de tratar de um
assunto sério e difícil (o suicídio adolescente) com leveza e bom humor, sem
pieguice nem sentimentalismo. Uma adorável galeria de personagens disfuncionais
animada por diálogos sarcásticos e certeiros. Muito boa também a trilha sonora
de rock local. * * * *
TIMBUKTU
-
Com um roteiro muito disperso, que pulveriza inúmeras situações sem resolver
nenhuma delas a contento, este novo trabalho do respeitado Abderrahmane
Sissako, um dos nomes mais importantes do cinema africano, parece uma colcha de
retalhos que termina sem a costura final. A cena do futebol invisível é linda e
repleta de simbolismo. * *
INCOMPREENDIDA
-
Asia Argento mostra descontrole em sua terceira experiência como diretora, além
de ser menos exuberante visualmente. A história, sobre uma menina que se sente
deslocada no seio familiar após o divórcio dos pais, soa gratuita e irritante.
Não dá para simpatizar com ela nem com qualquer outro personagem. * *
ENTERRANDO
A EX (Burying the ex) - Decepcionante retorno
de Joe Dante ao gênero que lhe rendeu fama, a comédia de horror. Tem algumas
boas piadinhas referenciais, mas os diálogos são duros e muito pouco
engraçados. O diretor e o elenco devem ter se divertido, mas faltou
compartilhar isso com o público. Destaque para a competente direção de arte. *
*
O
MUNDO DE KANAKO -
Quase insuportável de ver, com montagem esquizofrênica e ritmo videoclipado, esta
trama policial até tem uma história interessante, mas desenvolvida de forma
inadequada. O diretor quer se mostrar moderno, mas só consegue irritar o
espectador. Desperdício de uma boa idéia. * *
CORAÇÕES
FAMINTOS -
O prólogo no banheiro assusta, mas depois a história entra nos eixos. Adam
Driver (da série cômica Girls) tem
chance de mostrar seu talento dramático e forma um contraponto perfeito com
Alba Rohrwacher como os pais de primeira viagem que divergem quanto à criação
do filho. Ambos foram premiados em Veneza e estão muito bem, ela melhor, como a
mãe enlouquecida. A narrativa vai se alternando de gênero, passando do drama ao
suspense, sem desviar a atenção. * * *
WHIPLASH
- EM BUSCA DA PERFEIÇÃO - Alguns intérpretes passam a carreira toda escondidos em papéis de coadjuvantes ou em séries de TV, sem muita visibilidade e sem explorar todo o potencial que, em algum momento, ou quando lhe é dada a devida oportunidade, vem a público. É o caso de J. K. Simmons, um veterano com mais de 140 créditos e que certamente você já deve ter visto em algum lugar. Ele é a alma deste filme e tem uma atuação assustadora como o rígido professor de uma banda formada por
adolescentes, que não perdoa o mínimo deslize e os trata com disciplina
militar, tudo para alcançar a perfeição exposta no título e ser sempre o
melhor. Seguramente uma das grandes interpretações do ano, e que
deve lhe render uma merecida indicação ao Oscar. Simmons duela em talento com Miles Teller, o aluno preferido e que sofre com os métodos de treinamento (este é menos conhecido, fez muita bobagem até agora, como Projeto X, Finalmente 18, mas deve mudar de nível). Aliás, o filme certamente
estará entre os finalistas, é um espetáculo, vibrante e arrebatador, bastante
aplaudido ao final da sessão. O diretor Demian Gazelle (que, vejam só, foi um
dos roteiristas de O último exorcismo 2)
amplia seu curta homônimo de 2013, também estrelado por Simmons, e mostra vigor na condução da história. * * *
*
TOP
GIRL
- No começo, parece um episódio de O
negócio temperado com pimenta forte (tem até reunião de funcionárias). Mas
tem um foco próprio, mostrando a rotina e os problemas de uma dominatrix
profissional. Gosto de histórias que sirvam para desmistificar o universo
S&M, mostrando seus adeptos e praticantes como o que são: pessoas comuns,
com família, que apenas optam por um estilo de vida diferenciado. O recorte é
benfeito, o roteiro é sério e sem sensacionalismo, mas a narrativa perde força
no fim. * * *
A
MÁQUINA DE MATAR PESSOAS MÁS - Uma rara comédia dirigida por Rossellini,
também por ser praticamente desconhecida do grande público. A cópia apresentada
foi a versão restaurada e tinha boa imagem. Feliz combinação de farsa,
fantasia, crítica social e religiosa. Boas risadas em trama rápida e
movimentada. * * *
GAROTA
EXEMPLAR -
Competente adaptação do romance homônimo de Gillian Flynn, que também escreveu
o roteiro, o que explica a fidelidade integral de diálogos e situações, bem
como a direção apenas correta de David Fincher, sem invenções ou maior destaque.
Quem leu o livro vai gostar, mas a vantagem aqui é para quem não conhece a
história e vai se surpreender com as reviravoltas da trama. Deve ser lembrado
em algumas categorias do Oscar. * * *
SONHOS IMPERIAIS - A velha história do ex-presidiário que tenta
se reinserir na sociedade e tem de lutar contra seu passado criminoso que bate
à porta. Rotineiro do começo ao fim. A única novidade é que aqui o cidadão quer
ser escritor. Alternativa digna, mas quem é que ganha alguma coisa sendo
escritor? * *
DEUS LOCAL - Com muito clima e pouca coerência, esse novo filme do mesmo diretor de
A casa é uma decepção. Tão escuro
quanto seu trabalho anterior, oferece pouquíssimos sustos, mas a ambientação
lúgubre até que é boa. * *
ÍDOLO - Apesar do formato
convencional, o documentário presta uma linda homenagem e faz justiça ao grande
Nílton Santos, o gênio da lateral-esquerda. O público ri com as histórias de
bastidores e se emociona em várias cenas, como a que mostra o último encontro
entre ele e sua esposa Célia, ambos já debilitados por sérios problemas de
saúde. Muitas entrevistas e uma profusão de imagens históricas. Mas a torcida
do Botafogo pode sentir raiva, já que hoje temos de aturar os "irmãos"
César enlameando aquela camisa gloriosa. * * * *
BEM PERTO DE BUENOS AIRES - Versão argentina de O som ao redor. Narrativa alegórica sobre o medo (o título original
é História do medo) e o choque de
classes na sociedade portenha em tempos de crise. Perde força na comparação. O
nosso é melhor, até por ser original. * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário