quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Festival do Rio 2014 - Primeira semana

Estou convencido de que o ano passado foi um ponto fora da rota na organização do Festival do Rio. Tudo o que serviria de parâmetro a partir de então foi esquecido, em parte, certamente, pela indefinição sobre o futuro do Grupo Estação: vai fechar?, não vai fechar? Como programar filmes para salas que não se sabia se estariam funcionando na época? E nós, que nada temos com isso, é que somos os grandes prejudicados. Nunca vi um evento cultural gerar mais estresse do que euforia no público. Isso não pode ser assim. O Festival é uma atração turística da cidade, precisa ser bem-tratado e organizado de forma profissional, senão quem vem de fora simplesmente não volta depois. É difícil entender isso?

Também os atrasos voltaram a acontecer, mesmo que pequenos, de cinco ou dez minutos, o que pode ser fatal para quem monta uma programação com horários próximos e cinemas nem tanto. No meio de tudo isso, há o cinema, claro. Eis o que vi na primeira semana, compreendida entre os dias 25 de setembro e 1º de outubro (alguns títulos foram traduzidos por conta própria; o título de exibição está entre parênteses):

MARÍA E O HOMEM ARANHA - Por trás da aparente aventurinha infantojuvenil, se revela um drama sério e trágico, mostrando uma realidade que raramente vemos no cinema argentino, a vida nas periferias (seria o "favela-movie" deles). O Homem Aranha é um menino que faz malabarismos no metrô de Buenos Aires. Tudo conduzido de forma sóbria, sem música, sem ação do poder paralelo e sem festa na laje. * * *

PESSOAS EM LUGARES ­- Tem a mesma estrutura narrativa de Vocês, os vivos e filmes similares, ou seja: várias esquetes, sem muita ligação entre si, compondo um mosaico da existência humana em situações diversas. Confesso que já estou me cansando desse tipo de filme. Este é ainda pior por nem ser engraçado como se pretendia. A melhor piada é a dos ladrões que arrumam a casa em vez de roubá-la! Um rosário de astros espanhóis em pequenas aparições (Carlos Areces, Antônio de La Torre, Maribel Verdu envelhecida mas ainda linda e muitos outros). *

O FUTURO - Logo no primeiro dia e já surge o candidato a pior filme do festival. Com tanto filme bom que ficou fora da seleção, o jeito foi arrumar qualquer coisa para oferecer ao público, que paga para ver uma joça como essa. A "história" se passa inteiramente durante uma festa, na época da Movida Madrilenha (começo dos anos 80), onde jovens dançam e se divertem, esperançosos do porvir. Os diálogos não dizem nada: tudo é comentado pelas letras das canções que tocam o tempo todo e reproduzem pensamentos de revolução e liberdade. Tem um simbolismo visual interessante (o buraco negro que cobre os personagens no final), mas é só. A idéia era ótima: opor a esperança da juventude espanhola naquele momento com a crise atual. Só que o diretor optou pela displicência e jogou fora o potencial do filme. Parece interminável, mesmo mal chegando a 70 minutos.

ASTERÓIDE - Uma mulher volta para a casa do irmão e tenta aparar arestas passadas. Um tema já visto à exaustão no cinema não ganha nada de original nesse drama mexicano frio e sem maiores destaques. Nem os aplausos protocolares foram ouvidos ao final da sessão, que foi apresentada pelo diretor. Este asteróide só fica orbitando e nunca chega a lugar algum. * *

MAPAS PARA AS ESTRELAS - Depois de Marcas da violência, David Cronemberg passou a ser finalmente visto como um cineasta sério e respeitado pela indústria. Um reconhecimento tardio e merecido. No entanto, de lá para cá, seus filmes vêm se tornando cada vez mais difíceis de ver. Se por um lado eles ganharam um capricho maior na produção e um refinamento na direção de arte, o que lhes garante qualidade superior, por outro, ficaram de uma lentidão narrativa tão excessiva que se tornaram entediantes. Seu último trabalho, Cosmópolis, chegava a ser penoso de assistir, mas pelo menos tinha a desculpa de se basear em livro igualmente chato, de Don de Lillo. Aqui, Cronemberg chega ao limite do enervante. É verdade que poucas vezes se viu na tela uma crítica tão ácida e devastadora à fábrica de sonhos que é Hollywood, embora o tema já tenha sido explorado outras vezes (O jogador, de Robert Altman; e, mais recentemente, Cidade dos sonhos, de David Lynch). Há também toneladas de referências e citações a outros filmes e brincadeiras cifradas que o cinéfilo mais atento e experimentado saberá identificar. O grande problema é que a história simplesmente não cativa o espectador, que se aborrece com o ritmo claudicante da narrativa e não consegue simpatizar com qualquer um dos personagens. A única centelha de energia do filme é Julianne Moore. Ensandecida, histérica, amarga, patética, despudorada, sempre na medida. É uma das grandes atuações femininas do ano (ganhou em Cannes) e pode finalmente lhe render o tão merecido Oscar. Aliás, o elenco principal tem bons nomes: John Cusack, Mia Wasikowska e dois queridinhos recentes do diretor, Sarah Gadon e Robert Pattinson, mais uma vez tentando se livrar do vampirinho que marcou sua carreira. O filme realmente não me agradou e me fez sentir saudade do Cronemberg dos velhos tempos. Se o preço do respeito é fazer trabalhos entediantes assim, melhor ser marginal. É bem mais divertido. * *

NOIVAS - Mulher se sente dividida entre manter o relacionamento com o companheiro, preso há seis anos, ou se entregar a um vizinho. Um retrato do sistema prisional georgiano, narrado de forma correta e enxuta, mas que termina de forma abrupta e inconclusa. * *

CORRENTE DO MAL ­- Terror à antiga, que investe no clima e na ambientação em detrimento dos recursos fáceis e descartáveis de hoje, como tripas à mostra ou torturas gratuitas. O roteiro, porém, erra ao não deixar claro que maldição é aquela que ronda os jovens do subúrbio. Espécie de homenagem involuntária ao gênero dos anos 80, mas com a moral inversa: aqui, o sexo não é a metáfora causadora das mortes, mas uma solução para evitá-las. Não há, contudo, cenas eróticas. * * *

SÓ DEUS SABE - Rotina de uma viciada sem-teto de Nova York. Baseado em livro escrito por Ariella Holmes, que interpreta o papel principal, cercada de um elenco inteiramente desconhecido, e que até se sai bem. E ela acaba sendo o maior entrave à credibilidade da história: é linda e "limpinha" demais para convencer como mendiga. A história também não desperta maior interesse. Salva-se a estética documental e propositalmente suja. * *

METAMORFOSES - Uma interessante recriação de lendas conhecidas da mitologia grega, transpostas para o dia de hoje e encenadas em ambientes bucólicos (matas, montanhas). É o filme menos gay de Honoré. Tem um visual bonito, explorando a beleza das locações, mas é um tanto arrastado. * *

PERDIDO EM KARASTAN - Menos engraçada do que promete a sinopse. Karastan é uma república fictícia que promove seu primeiro festival de cinema e homenageia um diretor medíocre e desconhecido. Razoável no contraste cultural, com situações que parecem incompletas e piadas fracas. Também se compromete com um crescendo de violência incompatível com a proposta. Teve um absurdo atraso de meia hora por causa de problemas técnicos! * *

A VIA-CRÚCIS (Stations of the cross) - O filme é dividido em 15 cenas curtas, cada uma com o nome de uma estação da Via-Crúcis. Nestes quadros, conta-se a história da jovem Maria, em luta para manter sua fé e seu ideal de perfeição religiosa nos dias de hoje. Um apavorante retrato da devoção cega, dos limites a que uma pessoa pode chegar em nome de sua fé. O diretor usa câmera estática (menos em dois momentos) e rigorosa direção de arte para criar um ambiente ao mesmo tempo opressivo e poético. Um belo filme, capaz de dialogar com públicos variados: desde os católicos mais fervorosos (que poderão chegar ao limite de suas emoções), até os ateus. O título original em alemão, Kreuzweg, significa calvário. * * * *

ELA PERDEU O CONTROLE ­- A premissa lembra As sessões, mas, ao contrário daquele, a terapeuta daqui não está interessada em questões sexuais, atendo-se aos aspectos emocionais de seus pacientes. A história se mantém em fogo brando, caminhando pelo terreno mais seguro da narrativa convencional. Em seu primeiro longa-metragem, a diretora e roteirista Anja Marquardt optou por uma timidez que não combina com a ousadia sugerida pela idéia. * *

DESLIGANDO CHARLEEN - É uma boa surpresa este filme alemão, que consegue a proeza de tratar de um assunto sério e difícil (o suicídio adolescente) com leveza e bom humor, sem pieguice nem sentimentalismo. Uma adorável galeria de personagens disfuncionais animada por diálogos sarcásticos e certeiros. Muito boa também a trilha sonora de rock local. * * * *

TIMBUKTU - Com um roteiro muito disperso, que pulveriza inúmeras situações sem resolver nenhuma delas a contento, este novo trabalho do respeitado Abderrahmane Sissako, um dos nomes mais importantes do cinema africano, parece uma colcha de retalhos que termina sem a costura final. A cena do futebol invisível é linda e repleta de simbolismo. * *

INCOMPREENDIDA - Asia Argento mostra descontrole em sua terceira experiência como diretora, além de ser menos exuberante visualmente. A história, sobre uma menina que se sente deslocada no seio familiar após o divórcio dos pais, soa gratuita e irritante. Não dá para simpatizar com ela nem com qualquer outro personagem. * *

ENTERRANDO A EX (Burying the ex) - Decepcionante retorno de Joe Dante ao gênero que lhe rendeu fama, a comédia de horror. Tem algumas boas piadinhas referenciais, mas os diálogos são duros e muito pouco engraçados. O diretor e o elenco devem ter se divertido, mas faltou compartilhar isso com o público. Destaque para a competente direção de arte. * *

O MUNDO DE KANAKO - Quase insuportável de ver, com montagem esquizofrênica e ritmo videoclipado, esta trama policial até tem uma história interessante, mas desenvolvida de forma inadequada. O diretor quer se mostrar moderno, mas só consegue irritar o espectador. Desperdício de uma boa idéia. * *

CORAÇÕES FAMINTOS - O prólogo no banheiro assusta, mas depois a história entra nos eixos. Adam Driver (da série cômica Girls) tem chance de mostrar seu talento dramático e forma um contraponto perfeito com Alba Rohrwacher como os pais de primeira viagem que divergem quanto à criação do filho. Ambos foram premiados em Veneza e estão muito bem, ela melhor, como a mãe enlouquecida. A narrativa vai se alternando de gênero, passando do drama ao suspense, sem desviar a atenção. * * *

WHIPLASH - EM BUSCA DA PERFEIÇÃO - Alguns intérpretes passam a carreira toda escondidos em papéis de coadjuvantes ou em séries de TV, sem muita visibilidade e sem explorar todo o potencial que, em algum momento, ou quando lhe é dada a devida oportunidade, vem a público. É o caso de J. K. Simmons, um veterano com mais de 140 créditos e que certamente você já deve ter visto em algum lugar. Ele é a alma deste filme e tem uma atuação assustadora como o rígido professor de uma banda formada por adolescentes, que não perdoa o mínimo deslize e os trata com disciplina militar, tudo para alcançar a perfeição exposta no título e ser sempre o melhor. Seguramente uma das grandes interpretações do ano, e que deve lhe render uma merecida indicação ao Oscar. Simmons duela em talento com Miles Teller, o aluno preferido e que sofre com os métodos de treinamento (este é menos conhecido, fez muita bobagem até agora, como Projeto X, Finalmente 18, mas deve mudar de nível). Aliás, o filme certamente estará entre os finalistas, é um espetáculo, vibrante e arrebatador, bastante aplaudido ao final da sessão. O diretor Demian Gazelle (que, vejam só, foi um dos roteiristas de O último exorcismo 2) amplia seu curta homônimo de 2013, também estrelado por Simmons, e mostra vigor na condução da história. * * * *

TOP GIRL - No começo, parece um episódio de O negócio temperado com pimenta forte (tem até reunião de funcionárias). Mas tem um foco próprio, mostrando a rotina e os problemas de uma dominatrix profissional. Gosto de histórias que sirvam para desmistificar o universo S&M, mostrando seus adeptos e praticantes como o que são: pessoas comuns, com família, que apenas optam por um estilo de vida diferenciado. O recorte é benfeito, o roteiro é sério e sem sensacionalismo, mas a narrativa perde força no fim. * * *

A MÁQUINA DE MATAR PESSOAS MÁS - Uma rara comédia dirigida por Rossellini, também por ser praticamente desconhecida do grande público. A cópia apresentada foi a versão restaurada e tinha boa imagem. Feliz combinação de farsa, fantasia, crítica social e religiosa. Boas risadas em trama rápida e movimentada. * * *

GAROTA EXEMPLAR - Competente adaptação do romance homônimo de Gillian Flynn, que também escreveu o roteiro, o que explica a fidelidade integral de diálogos e situações, bem como a direção apenas correta de David Fincher, sem invenções ou maior destaque. Quem leu o livro vai gostar, mas a vantagem aqui é para quem não conhece a história e vai se surpreender com as reviravoltas da trama. Deve ser lembrado em algumas categorias do Oscar. * * * 

SONHOS IMPERIAIS - A velha história do ex-presidiário que tenta se reinserir na sociedade e tem de lutar contra seu passado criminoso que bate à porta. Rotineiro do começo ao fim. A única novidade é que aqui o cidadão quer ser escritor. Alternativa digna, mas quem é que ganha alguma coisa sendo escritor? * *

DEUS LOCAL - Com muito clima e pouca coerência, esse novo filme do mesmo diretor de A casa é uma decepção. Tão escuro quanto seu trabalho anterior, oferece pouquíssimos sustos, mas a ambientação lúgubre até que é boa. * *

ÍDOLO - Apesar do formato convencional, o documentário presta uma linda homenagem e faz justiça ao grande Nílton Santos, o gênio da lateral-esquerda. O público ri com as histórias de bastidores e se emociona em várias cenas, como a que mostra o último encontro entre ele e sua esposa Célia, ambos já debilitados por sérios problemas de saúde. Muitas entrevistas e uma profusão de imagens históricas. Mas a torcida do Botafogo pode sentir raiva, já que hoje temos de aturar os "irmãos" César enlameando aquela camisa gloriosa. * * * *

BEM PERTO DE BUENOS AIRES - Versão argentina de O som ao redor. Narrativa alegórica sobre o medo (o título original é História do medo) e o choque de classes na sociedade portenha em tempos de crise. Perde força na comparação. O nosso é melhor, até por ser original. * *

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