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A bela intrigante (1991) |
O conceito de superprodução
surgiu no cinema norte-americano em 1915 quando D.W.Griffith lançou O nascimento de uma nação, de 159
minutos, que foi também o primeiro filme a contar uma história com começo, meio
e fim, em vez de apenas justapor imagens. No ano seguinte, o diretor repetiu a
dose com Intolerância, que, em 160
minutos, foi ainda mais ousado em termos de linguagem, narrando cinco situações
de intolerância religiosa ocorridas em épocas diferentes da história da
humanidade. Com o passar dos anos, e com os naturais avanços técnicos da
indústria do cinema, Hollywood principalmente se tornou o berço de grande parte
das chamadas superproduções, a maioria produzida nos ditos anos áureos do
cinema, como E o vento levou... (1939,
222 minutos), Ben Hur (1959, 211
minutos) e Lawrence da Arábia (1962,
208 minutos), entre muitos outros. São filmes grandiosos em tudo, que no
entanto contêm elementos de ação, drama e romance suficientes para justificar
sua mastodôntica duração.
Esta idéia de se fazer de um
filme um superespetáculo emigrou para outros países, gerando verdadeiras obras-primas
da sétima arte, como Os sete samurais
(1954, 207 minutos), no Japão, e A doce
vida (1960, 178 minutos), na Itália. Na Índia, a maior indústria
cinematográfica do mundo, este conceito é quase uma regra local, visto que as
produções daquele país não raro ultrapassam as três horas de duração, como Lagaan (2001, 224 minutos) e Estarei sempre aqui para você (2004, 198 minutos). No entanto, são poucos os exemplos
deste tipo de filme que levam em conta um aspecto fundamental na construção da
narrativa, que é a passagem do tempo. Com o recurso da montagem, faz-se a
elipse de diversas situações sem que tal artifício comprometa o perfeito
entendimento da história. Um dos diretores que melhor trabalham esta questão,
embora por vezes cometa obras de difícil apreciação, justamente por conta dessa
fidelidade ao conceito temporal, é o francês Jacques Rivette.
Rivette é egresso da Nouvelle
Vague, movimento que revolucionou a forma de se fazer cinema e que surgiu na
França nos anos 50. Ao lado de Truffaut, Resnais, Godard, Rohmer e Chabrol,
entre outros, ele buscava uma renovação na linguagem cinematográfica,
utilizando o cinema como campo aberto para a exposição de idéias sobre a vida,
a arte, Deus, a morte e diversos assuntos relacionados ao homem em suas
ligações com o homem e com o universo. Com exceção talvez do primeiro Godard (Acossado, 1959), e de um ou outro título
menos conhecido, os filmes dirigidos por estes senhores são extremamente
falados, por vezes verborrágicos, o que lhes rende pouca empatia com o grande
público ou com o público médio que freqüenta as salas de cinema; porém, são
terreno fértil para discussões e debates após as sessões. Rivette, em especial,
é autor de filmes que muitas vezes exploram a passagem de tempo como se fosse
um personagem, construindo obras que exigem paciência e entrega do espectador (O tempo redescoberto, 1999, 169 minutos), condições não
muito atraentes aos espectadores em geral, cuja idéia de cinema se encerra na
fruição pura e simples, sem maiores questionamentos inerentes à obra, e
sobretudo nos dias de hoje, em que cada minuto pode fazer a diferença no
somatório das ações de um dia. Fiel a seus preceitos, o diretor realizou uma
das mais monumentais, em mais de um sentido, obras do cinema: A bela intrigante.
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"Você não me acha parecida com a moça do retrato?" |
Não é um filme fácil, a começar
por sua metragem: são quatro horas de duração, um aparente exagero, mas quase
um média-metragem para os padrões de Rivette, que já concebeu filmes de até 25
horas de duração (Out 1, 1971). O espectador
comum pode perguntar: é necessário? Sim, no caso de A bela intrigante, é necessário, para que possamos nos tornar
íntimos dos personagens, conhecer seus medos, saber o que lhes vai na alma,
entender suas motivações, requisitos sem os quais o filme perderia muito do seu
sentido. Há uma versão reduzida da obra, com apenas 125 minutos, com começo e
final diferentes, e na qual muita coisa se perde ou não se explica.
O roteiro, inspirado no romance A obra-prima ignorada, de Balzac
(publicado no Brasil pela Comunique Editorial), conta a história de Edouard
Frenhofer (Michel Picolli), veterano pintor que vive das glórias do passado e
que há anos não consegue produzir um único quadro. Ele mantém um casamento de
fachada com sua esposa, a sofrida Liz (Jane Birkin), sem qualquer sinal de que
possa retomar a paixão de outrora (dormem em quartos separados, pouco se vêem).
Resignada com a situação, e sem nada poder fazer para revertê-la, Liz anda
descalça o tempo todo, como se fosse apenas mais um objeto de decoração da
suntuosa mansão que coabitam, já fundida ao terreno da propriedade. Enquanto o
marido se diverte caçando coelhos nas redondezas, Liz se distrai empalhando
pássaros e animais. Um dia, por meio de um amigo, Frenhofer conhece o jovem
casal Nicolas (David Bursztein) e Marianne (Emannuelle Béart, lindíssima),
revelando a eles um projeto jamais concluído e interrompido há dez anos, o
quadro chamado “A bela intrigante”, cujo modelo inicial fora Liz. Nicolas
sugere que Marianne seja sua nova modelo. Irritada por não ter sido consultada
sobre a decisão, Marianne se recusa, mas termina por aceitar e no dia seguinte
chega ao ateliê de Frenhofer disposta a servir de inspiração para a retomada e
conclusão do quadro. O ateliê funciona numa antiga igreja de pedra, nos fundos
da mansão, e só o conjunto arquitetônico da propriedade já vale o filme
inteiro, a casa com seus largos corredores com pastilhas em preto e branco no
chão, varandas que se debruçam sobre o mar de vegetação que envolve o lugar e
as claustrofóbicas paredes de pedra do estúdio onde Frenhofer busca recriar sua
obra. Os dois se trancam no ateliê. O espectador, conduzido por Rivette, vai
junto. É quando o filme de fato começa.
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Emannuelle Béart dispensa qualquer efeito especial. |
A partir deste momento, tem-se
início uma tensa relação entre o artista e sua modelo. Frenhofer submete
Marianne a posições bastante incômodas, exigindo o máximo de empenho de sua
parte, obrigando-a a ficar horas curvada ou apoiada nas pontas dos pés enquanto
tenta dar forma ao melhor quadro que já produziu. Nua a maior parte do tempo,
Emannuelle Béart ilumina a tela cada vez que a câmera enquadra seu rosto,
realçando seus grandes olhos verdes, captando em detalhes todas as suas
expressões faciais que traduzem o desconforto experimentado por sua personagem.
Vale destacar que a nudez da atriz nada tem de erótico nem despropositada: suas
formas exalam poesia e sensualidade contrapondo-se de maneira admirável à
obsessão do pintor por buscar a verdade das formas, a exatidão dos sentimentos
que procura retratar na tela. Essa obsessão se traduz de forma clara quando,
após mais uma sessão extenuante de poses, Frenhofer diz à sua assustada modelo:
“O sangue, o fogo e o gelo que você tem dentro de você, eu os quero para mim”.
A partir deste instante, sem que nada mais seja dito, está fechado o acordo
tácito entre as duas partes, que não medirão esforços para alcançarem o
objetivo a que se propuseram. A ausência de trilha sonora reforça o isolamento
dos personagens e aproxima o espectador ainda mais da intimidade partilhada
pelo artista e sua modelo, evitando triunfalismos tão comuns no cinema
norte-americano e impedindo que haja um afastamento que comprometeria o sentido
e a essência do filme.
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Musa e mestre. Sub e Dom. Filha e pai... |
Há diversas analogias possíveis
de serem feitas entre os dois protagonistas, desde as mais óbvias – a menina
que encontra no pintor a figura paterna que a guia para a vida, a aluna e o
professor, a ninfeta sedutora que reacende no velho artista a chama da vida –
até um subtexto que pode passar despercebido ao espectador menos atento, o que
sugere um perverso jogo entre o dominador e a submissa, à medida que ela se
entrega e ele, mesmo nos momentos em que fraqueja, nunca perde o controle da
situação, embora, desde os primeiros instantes da empreitada, fique claro que
há ali uma relação sadomasoquista.
Ao final de dois dias de
trabalho, sem que nenhum dos esboços iniciais feitos por Frenhofer tenham
agradado, ela quer desistir, mas ele a impede. Mais tarde, quando ele ameaça
abandonar o projeto, é a bela quem o incentiva a continuar, disposta, ela também,
a conferir o resultado de tamanho empenho, sem desconfiar que, intimamente,
poderá sair destroçada emocional e psicologicamente ao fim de tudo. Mas ela não
estará sozinha nesta descoberta: o próprio Frenhofer admite sua morte quando dá
o quadro como pronto. Chama Marianne para conferir a obra. Sua reação é de um
surdo espanto. Frustrada e insatisfeita com a imagem de si que vê retratada
(que não é mostrada), a jovem vai embora do ateliê. Uma poderosa mudança íntima
ocorre então dentro da personagem, que não mais voltará a ser como era antes.
Quando o pintor exibe aos amigos o resultado de uma semana de trabalho intenso,
não é o mesmo quadro, mas outro, falso, mas isso somente ele e Marianne sabem.
O verdadeiro quadro foi cimentado em uma parede do ateliê, para que nunca venha
à tona, para que nunca seja achado.
Causa espanto que esta obra-prima
nunca tenha sido lançada por aqui nem em VHS, nem em DVD, nem em Blu-ray. Já passou da hora.
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