quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Uma obra-prima de carne, osso e celulóide

A bela intrigante (1991)
O conceito de superprodução surgiu no cinema norte-americano em 1915 quando D.W.Griffith lançou O nascimento de uma nação, de 159 minutos, que foi também o primeiro filme a contar uma história com começo, meio e fim, em vez de apenas justapor imagens. No ano seguinte, o diretor repetiu a dose com Intolerância, que, em 160 minutos, foi ainda mais ousado em termos de linguagem, narrando cinco situações de intolerância religiosa ocorridas em épocas diferentes da história da humanidade. Com o passar dos anos, e com os naturais avanços técnicos da indústria do cinema, Hollywood principalmente se tornou o berço de grande parte das chamadas superproduções, a maioria produzida nos ditos anos áureos do cinema, como E o vento levou... (1939, 222 minutos), Ben Hur (1959, 211 minutos) e Lawrence da Arábia (1962, 208 minutos), entre muitos outros. São filmes grandiosos em tudo, que no entanto contêm elementos de ação, drama e romance suficientes para justificar sua mastodôntica duração.

Esta idéia de se fazer de um filme um superespetáculo emigrou para outros países, gerando verdadeiras obras-primas da sétima arte, como Os sete samurais (1954, 207 minutos), no Japão, e A doce vida (1960, 178 minutos), na Itália. Na Índia, a maior indústria cinematográfica do mundo, este conceito é quase uma regra local, visto que as produções daquele país não raro ultrapassam as três horas de duração, como Lagaan (2001, 224 minutos) e Estarei sempre aqui para você (2004, 198 minutos). No entanto, são poucos os exemplos deste tipo de filme que levam em conta um aspecto fundamental na construção da narrativa, que é a passagem do tempo. Com o recurso da montagem, faz-se a elipse de diversas situações sem que tal artifício comprometa o perfeito entendimento da história. Um dos diretores que melhor trabalham esta questão, embora por vezes cometa obras de difícil apreciação, justamente por conta dessa fidelidade ao conceito temporal, é o francês Jacques Rivette.

Rivette é egresso da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou a forma de se fazer cinema e que surgiu na França nos anos 50. Ao lado de Truffaut, Resnais, Godard, Rohmer e Chabrol, entre outros, ele buscava uma renovação na linguagem cinematográfica, utilizando o cinema como campo aberto para a exposição de idéias sobre a vida, a arte, Deus, a morte e diversos assuntos relacionados ao homem em suas ligações com o homem e com o universo. Com exceção talvez do primeiro Godard (Acossado, 1959), e de um ou outro título menos conhecido, os filmes dirigidos por estes senhores são extremamente falados, por vezes verborrágicos, o que lhes rende pouca empatia com o grande público ou com o público médio que freqüenta as salas de cinema; porém, são terreno fértil para discussões e debates após as sessões. Rivette, em especial, é autor de filmes que muitas vezes exploram a passagem de tempo como se fosse um personagem, construindo obras que exigem paciência e entrega do espectador (O tempo redescoberto, 1999, 169 minutos), condições não muito atraentes aos espectadores em geral, cuja idéia de cinema se encerra na fruição pura e simples, sem maiores questionamentos inerentes à obra, e sobretudo nos dias de hoje, em que cada minuto pode fazer a diferença no somatório das ações de um dia. Fiel a seus preceitos, o diretor realizou uma das mais monumentais, em mais de um sentido, obras do cinema: A bela intrigante.

"Você não me acha parecida com a moça do retrato?"
Não é um filme fácil, a começar por sua metragem: são quatro horas de duração, um aparente exagero, mas quase um média-metragem para os padrões de Rivette, que já concebeu filmes de até 25 horas de duração (Out 1, 1971). O espectador comum pode perguntar: é necessário? Sim, no caso de A bela intrigante, é necessário, para que possamos nos tornar íntimos dos personagens, conhecer seus medos, saber o que lhes vai na alma, entender suas motivações, requisitos sem os quais o filme perderia muito do seu sentido. Há uma versão reduzida da obra, com apenas 125 minutos, com começo e final diferentes, e na qual muita coisa se perde ou não se explica.

O roteiro, inspirado no romance A obra-prima ignorada, de Balzac (publicado no Brasil pela Comunique Editorial), conta a história de Edouard Frenhofer (Michel Picolli), veterano pintor que vive das glórias do passado e que há anos não consegue produzir um único quadro. Ele mantém um casamento de fachada com sua esposa, a sofrida Liz (Jane Birkin), sem qualquer sinal de que possa retomar a paixão de outrora (dormem em quartos separados, pouco se vêem). Resignada com a situação, e sem nada poder fazer para revertê-la, Liz anda descalça o tempo todo, como se fosse apenas mais um objeto de decoração da suntuosa mansão que coabitam, já fundida ao terreno da propriedade. Enquanto o marido se diverte caçando coelhos nas redondezas, Liz se distrai empalhando pássaros e animais. Um dia, por meio de um amigo, Frenhofer conhece o jovem casal Nicolas (David Bursztein) e Marianne (Emannuelle Béart, lindíssima), revelando a eles um projeto jamais concluído e interrompido há dez anos, o quadro chamado “A bela intrigante”, cujo modelo inicial fora Liz. Nicolas sugere que Marianne seja sua nova modelo. Irritada por não ter sido consultada sobre a decisão, Marianne se recusa, mas termina por aceitar e no dia seguinte chega ao ateliê de Frenhofer disposta a servir de inspiração para a retomada e conclusão do quadro. O ateliê funciona numa antiga igreja de pedra, nos fundos da mansão, e só o conjunto arquitetônico da propriedade já vale o filme inteiro, a casa com seus largos corredores com pastilhas em preto e branco no chão, varandas que se debruçam sobre o mar de vegetação que envolve o lugar e as claustrofóbicas paredes de pedra do estúdio onde Frenhofer busca recriar sua obra. Os dois se trancam no ateliê. O espectador, conduzido por Rivette, vai junto. É quando o filme de fato começa.

Emannuelle Béart dispensa qualquer efeito especial.
A partir deste momento, tem-se início uma tensa relação entre o artista e sua modelo. Frenhofer submete Marianne a posições bastante incômodas, exigindo o máximo de empenho de sua parte, obrigando-a a ficar horas curvada ou apoiada nas pontas dos pés enquanto tenta dar forma ao melhor quadro que já produziu. Nua a maior parte do tempo, Emannuelle Béart ilumina a tela cada vez que a câmera enquadra seu rosto, realçando seus grandes olhos verdes, captando em detalhes todas as suas expressões faciais que traduzem o desconforto experimentado por sua personagem. Vale destacar que a nudez da atriz nada tem de erótico nem despropositada: suas formas exalam poesia e sensualidade contrapondo-se de maneira admirável à obsessão do pintor por buscar a verdade das formas, a exatidão dos sentimentos que procura retratar na tela. Essa obsessão se traduz de forma clara quando, após mais uma sessão extenuante de poses, Frenhofer diz à sua assustada modelo: “O sangue, o fogo e o gelo que você tem dentro de você, eu os quero para mim”. A partir deste instante, sem que nada mais seja dito, está fechado o acordo tácito entre as duas partes, que não medirão esforços para alcançarem o objetivo a que se propuseram. A ausência de trilha sonora reforça o isolamento dos personagens e aproxima o espectador ainda mais da intimidade partilhada pelo artista e sua modelo, evitando triunfalismos tão comuns no cinema norte-americano e impedindo que haja um afastamento que comprometeria o sentido e a essência do filme.

Musa e mestre. Sub e Dom. Filha e pai...
Há diversas analogias possíveis de serem feitas entre os dois protagonistas, desde as mais óbvias – a menina que encontra no pintor a figura paterna que a guia para a vida, a aluna e o professor, a ninfeta sedutora que reacende no velho artista a chama da vida – até um subtexto que pode passar despercebido ao espectador menos atento, o que sugere um perverso jogo entre o dominador e a submissa, à medida que ela se entrega e ele, mesmo nos momentos em que fraqueja, nunca perde o controle da situação, embora, desde os primeiros instantes da empreitada, fique claro que há ali uma relação sadomasoquista.

Ao final de dois dias de trabalho, sem que nenhum dos esboços iniciais feitos por Frenhofer tenham agradado, ela quer desistir, mas ele a impede. Mais tarde, quando ele ameaça abandonar o projeto, é a bela quem o incentiva a continuar, disposta, ela também, a conferir o resultado de tamanho empenho, sem desconfiar que, intimamente, poderá sair destroçada emocional e psicologicamente ao fim de tudo. Mas ela não estará sozinha nesta descoberta: o próprio Frenhofer admite sua morte quando dá o quadro como pronto. Chama Marianne para conferir a obra. Sua reação é de um surdo espanto. Frustrada e insatisfeita com a imagem de si que vê retratada (que não é mostrada), a jovem vai embora do ateliê. Uma poderosa mudança íntima ocorre então dentro da personagem, que não mais voltará a ser como era antes. Quando o pintor exibe aos amigos o resultado de uma semana de trabalho intenso, não é o mesmo quadro, mas outro, falso, mas isso somente ele e Marianne sabem. O verdadeiro quadro foi cimentado em uma parede do ateliê, para que nunca venha à tona, para que nunca seja achado.

Causa espanto que esta obra-prima nunca tenha sido lançada por aqui nem em VHS, nem em DVD, nem em Blu-ray. Já passou da hora.

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