quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A vida tem que ser mais do que isso

Boyhood - Da infância à juventude (2014)
Aclamado unanimemente no último Festival do Rio, quando teve todas as suas sessões lotadas, apontado como forte candidato ao Oscar, incensado pela crítica profissional em diversos veículos, Boyhood (que por aqui ganhou o subtítulo Da infância à juventude) é o filme da temporada, aquele que todo mundo já viu ou vai ver. Algo como foi Gravidade no ano passado. Fiquei pensando que talvez fosse este o cinco-estrelas que me faltou na edição do evento. Somente agora consegui vê-lo no circuito. E continuei pensando... talvez fosse.

Tirei duas conclusões. Primeira: estou velho, chato, ranzinza, insensível, praticamente às raias da indiferença. Daí chego à segunda: deve ser por isso que cada vez entendo menos esse frenesi que público e crítica fazem em torno de certos filmes, recebidos como a reinvenção do cinema, obras-primas incontestáveis, fenômenos de criatividade e realização. O filme não me disse nada. Não houve um único e desgraçado segundo ao longo de suas quase três horas de duração que tenha dialogado comigo, me emocionado ou me surpreendido de alguma forma. O problema nada tem a ver com a longuíssima metragem: simplesmente é difícil suportar uma história que se arrasta sem apresentar qualquer conflito.

Até quem ainda não viu Boyhood deve saber do que se trata. Este é o filme que o diretor Richard Linklater levou 12 anos para concluir, período de tempo ao longo do qual acompanhou o amadurecimento e envelhecimento do ator principal, Ellar Coltrane (que tem pouquíssimos e esparsos créditos na carreira, estreou em Dinheiro e má companhia, 2002, e fez Nação fast-food, 2006). Em torno dessas mudanças, de personalidade, mentalidade e aparência física, criou um roteiro que se desenvolve ao longo do mesmo espaço de tempo. Assim, quando o filme começa, Mason (Coltrane) tem 6 anos; quando termina, está com 18, no começo da vida adulta, prestes a ingressar na universidade.

Reunião de família. Para falar de quê, mesmo?
Por pouco mais de uma década de sua vida, Mason vivencia problemas familiares, as constantes mudanças de endereço da mãe (Patrícia Arquette), os encontros esporádicos com o pai (Ethan Hawke), a difícil convivência com os dois novos padrastos: um atraente professor universitário que se transforma quando bebe, a ponto de agredir a mãe do menino; e um militar, a primeira namorada, o primeiro fora, o primeiro bullying etc. Ou seja, cenas de uma vida comum. Paralelamente, o diretor monta um interessante painel da sociedade e dos hábitos norte-americanos, por extensão refletidos em várias partes do planeta, entrelaçando a vida de Mason com fatos marcantes ocorridos na última década, como a eleição de Barack Obama e a febre provocada pelo lançamento de mais um livro da saga  de Harry Potter (no caso, o penúltimo, Harry Potter e o enigma do príncipe).

Boyhood ganhou fama muito antes de ficar pronto ou ser lançado por conta da proposta de "cinema-verdade" encampada pelo diretor. Ele acompanhou o ator principal, Ellar Coltrane, durante o mesmo período em que se passa a história. Reuniu a mesma equipe uma vez por ano, rodou vários curtas-metragens que juntou depois para dar forma ao longa, e até tomou certas precauções, como confiar a direção a Hawke caso ele morresse nesse meio-tempo! O problema é que nem essa idéia é original. Nikita Mikhalkov fez coisa muito semelhante em Anna dos 6 aos 18 (1994), em que acompanhou o crescimento de sua filha no mesmo período que Linklater, com a vantagem de que lá era possível observarmos as mudanças sociopolíticas vivenciadas pela comunidade russa, durante o processo de esfacelamento do comunismo e o surgimento das novas repúblicas ou seja, mostrando como o indivíduo comum pode ser afetado por força das circunstâncias, mudando de vida e de pensamento. Há também um filme tcheco recente, Algo como a felicidade (2007), em que também assistimos ao crescimento dos dois filhos da protagonista, igualmente sob um viés político. E nenhum deles é uma superprodução interminável. Nesse sentido, portanto, o projeto de Linklater afunda na mesmice e o detalhe temporal só ganhou tanto destaque por se tratar de um filme de Hollywood.

Este será o maior aperto da vida de Mason.
Mas o que me aborreceu mesmo em Boyhood foi a total falta de conflito da trama. A vida de Mason, por mais que tenha problemas, é de uma regularidade impressionante. Toda certinha, sempre em linha reta, nada fora do lugar, nenhuma transgressão, nada para manchar o currículo. O menino não quebra a vidraça do vizinho, não puxa o rabo do gato, nem rouba torta da janela dos outros. O rapaz não pega o carro escondido, não perturba as meninas, não experimenta drogas no máximo, extravasa sua rebeldia usando brinco e desafiando a autoridade do padrasto. Ou seja, Mason não comete nenhuma besteira que as pessoas normalmente cometem, sua existência é "limpa", careta. Deve ser uma vida bem chata. Esse aspecto também tira muito da força do roteiro, afinal, quem é que cresce e passa por uma fase fundamental na construção da personalidade sem fazer alguma bobagem, sem errar, sem criar desafetos?

Podem argumentar que não era essa a intenção de Linklater, não era criar um épico existencial, e sim, como é praxe em suas obras, pintar um retrato das relações humanas a partir de um tema fincado no mundo real. Tudo bem, que seja e nada de errado nisso. De todo o modo, não muda a impressão ruim que tive do filme. Muito palavrório, pouca substância. Também não há problemas de relacionamento. Por exemplo, quando o padrasto beberrão começa a se tornar violento, o que poderia gerar alguma tensão, o assunto é logo "resolvido" e abandonado. Muita gente fala que o filme, em algum grau, reflete a vida de todos nós e por isso é fácil se identificar com ele. Pode ser, mas não me vi ali em momento algum. Não me reconheci em nenhuma situação, não descobri a solução para nenhum conflito interno ali.

O futuro de Mason pode ser brilhante; já o filme...
Ao final de Boyhood, fiquei com a impressão de ter passado três horas vendo um documentário sobre como ser um bom rapaz, como a vida humana pode ser medíocre, tão carente de grandes emoções, tão... comum! Prefiro ver uma história em que o personagem faça um monte de bobagem, mas aprenda com os erros: aí reside o impulso moral que justifica a existência do herói romântico e, de quebra, oferece uma visão de mundo bem mais ampla, muito mais aberta a discussões e ensinamentos, do que essa vidinha asséptica e absolutamente sem graça de Mason. Uma decepção. Sinceramente, um saco, saquíssimo. Vida medíocre por vida medíocre, prefiro a minha. É tão amorfa quanto a de Mason, mas, pelo menos, tem uma boa dose de perversão para dar tempero.

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