Quando assistimos a um
filme, ou a uma peça de teatro, ou simplesmente quando abrimos um livro para
ler, não fazemos idéia do trabalho imenso que há por trás dessas manifestações
culturais. A nós, público cativo de tais artes, interessa apenas a fruição do
momento, o prazer de vivenciar uma experiência audiovisual única, que pode ser
boa ou frustrante, porém, de qualquer forma, irá se perenizar no nosso tempo
particular. A verdade é que, para que possamos estar ali, nos divertindo e
instruindo, muito trabalho houve até que o produto final nos fosse entregue sem
problemas.
Fiquemos apenas no campo da
literatura, nosso elemento. Responda sinceramente: quantas vezes você, lendo um
romance de seu autor preferido, teve a atenção desviada para um erro de grafia,
ou uma vírgula fora de lugar, duas palavras empasteladas, enfim, qualquer
pequeno erro que tenha interrompido o prazer da leitura? É provável que, neste
momento, você tenha pensado: “O revisor deixou passar isso aqui”. E que tenha
ido até mais além: “Como ele deixou passar isso? É um erro tão grosseiro!
Impossível não ter visto isso.” E é somente então que você, leitor, terá a
noção exata de como é espinhosa a nossa função. Somos seres das sombras, sem
caninos, sem garras, sem parede nua para nos encostar. O autor é sempre
reconhecido; o tradutor constrói uma reputação sólida à medida que consegue
driblar as naturais dificuldades idiomáticas da adaptação linguística; o
capista pode até ser agraciado com o Jabuti; já o revisor só aparece quando há
um erro evidente. O revisor seria uma espécie de goleiro do processo editorial:
tão ingrato é seu ofício que em sua área nem grama nasce; no caso, nasceria bem
rasteirinha, quase imperceptível, a menos que dela se soltasse um morrinho
artilheiro e atrapalhasse o centroavante...
Ao contrário do goleiro,
que participa ativamente da partida, o revisor permanece invisível, a não ser
que, efetivamente, deixe passar um frango. Ingrata é sua (nossa) tarefa:
garantir a qualidade do texto sabendo que não receberemos aplausos. Nunca
seremos indicados ao Oscar. Nunca teremos uma avenida com o nome de algum de
nossos representantes. Mas, se uma vírgula vadia nos escapa, se um ponto final
nos ludibria e foge a nosso controle, então, eis a fama que nos sorri! Mas,
amarga e indesejada!
O
mercado editorial brasileiro está em expansão em diversos aspectos. Isto é
ótimo em todos os sentidos. Com a gradual adoção de novas mídias eletrônicas,
passa a haver um acúmulo de novos revisores, jovens recém-formados nas melhores
faculdades (e outras nem tanto), ávidos por não só mostrarem serviço na
profissão, mas também dispostos a conseguirem o primeiro emprego. Como lhes
faltam qualificações e experiência, a opção é começar pelo que seria o degrau
mais baixo na escala industrial. No entanto, poucas pessoas querem, ou pretendem,
ser revisores a vida toda: esta é a porta de entrada para voos mais altos,
talvez um cargo público, ou coisa mais importante a fazer até que se comece a
viver. Sinceramente, não consigo entender o ofício da revisão como simples
passatempo, ambição menor, “ficada”, enfim, uma atividade a que se cumpre com
gélida indiferença, visando apenas a alguns trocados, sem comprometimento, sem
paixão, sem alma. Nada há que se possa fazer na vida sem alma, sem sentimento.
Menos ainda a revisão.
Quem milita no meio
literário deve inflar-se de paixão pelo que faz. É preciso amar a literatura,
da mesma forma que é preciso amar a revisão. Não se concebe uma revisão feita
de qualquer jeito, sem que, entre o profissional que executa sua tarefa e o
texto avaliado, haja uma espécie de ligação, ainda que temporária. Se o autor é
legalmente o pai de um texto, o revisor seria uma espécie de tutor, aquele
encarregado de “instruir” o texto, corrigi-lo, “mostrar o caminho”, sem
evidentemente querer para si a paternidade do infólio. Tal qual a mãe que
amamenta seu rebento, o revisor também sorve de vida o material que tem em
mãos, fazendo-o crescer, aprimorando-o, com a diferença crucial de que, uma vez
adulto, já não o pertencerá mais, será da vida, do mundo, de quem o ler – cabe
o frio consolo de que mesmo o autor do texto perderá sobre ele todos os poderes
que um dia julgou ter!
Não se
trata apenas de realizar um trabalho, cumprir uma obrigação a qual será
remunerada posteriormente – e quem o fizer tendo apenas esta finalidade por
objetivo certamente estará se iludindo em termos financeiros. Digamos logo:
revisão não dá dinheiro. Notoriedade, como dito antes, menos ainda, a não ser
quando os erros passam e saltam aos olhos – mas não creio que haja alguém
envolvido com o universo da revisão que espere alcançar fama por este sentido.
Evidentemente,
qualquer pessoa pode revisar um texto, desde que tenha o conhecimento mínimo
necessário que o gabarite para tanto. Mas será que basta saber Português? Já inflacionado
pelos formandos dos cursos de Letras, o mercado profissional ainda sofre com a
concorrência de representantes de outros setores e a própria desvalorização do
revisor autêntico. Vivenciei, certa vez, uma situação à beira do surreal. No
local onde trabalhava, estranhava que de determinado setor nunca me viessem
textos para correção. Foi quando ouvi um funcionário do tal setor comentar, sem
saber que eu escutava: “... não é
preciso mandar para o revisor, nós mesmos podemos fazer isto, todo mundo aqui
pode, falamos e sabemos português tão bem quanto ele!”. Ou seja, fui relegado a
um constrangedor terceiro plano (segundo seria pouco) e ainda constatei a pouca
importância que nos é concedida. Afinal, para que pagar alguém para desempenhar
uma tarefa que “qualquer um” pode cumprir? Não se trata de uma operação, nem de
um tratamento de canal, mesmo de um encanamento: é só revisão de texto, essa
bobagem sem importância.
As
pessoas justificam tal pensamento com um argumento tão pueril quanto revoltante
e insustentávei: pode-se escrever de qualquer maneira que todos entendem do
mesmo jeito! Assim, não faria diferença grafar “vendi-si ekipamentos” ou
“vendem-se equipamentos”; a mensagem é plenamente compreendida por qualquer um
que saiba ler. E assim, perpetua-se a ignorância e cultiva-se a burrice. À luz
da lingüística, a explicação é aceitável – afinal, não importa como
se diz, mas o que se diz, desde que a mensagem seja compreendida. Porém,
se existe uma regra oficial para conter os excessos e arroubos da língua, ela
deve ser respeitada. Fico imaginando se os franceses, os italianos, os russos,
os japoneses, enfim, qualquer povo ciente da importância de sua língua, também
aceitam como normais tais atentados gráficos contra seus respectivos idiomas.
Não se trata de ser chato.
Mas todo grande time começa por um grande goleiro.
(Texto publicado originalmente na revista Caderno Zero, de setembro de 2011.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário