domingo, 5 de agosto de 2012

Shane do asfalto


Dizem que alguns grandes filmes nunca são bem recebidos na época de seu lançamento e apenas anos depois, quando posteriormente reavaliados, é que têm seu valor artístico reconhecido. Isso aconteceu com O touro indomável, por exemplo. Talvez seja este o destino de Drive, que rachou opiniões desde seu lançamento em circuito no país. Longe da unanimidade, foi aclamado como obra-prima por uns e desprezado por outros. A essa altura, muita gente já o viu, seja no cinema, seja em DVD, seja baixado na rede. Somente agora consegui vê-lo e assim, de cabeça fria, sem o frenesi da estréia, pude observá-lo com atenção.

A primeira surpresa veio antes de eu assisti-lo. O filme ganhou prêmio de direção no Festival de Cannes, o que por si só já seria um bom chamariz. Afinal, quantos filmes de ação arrancam láureas em festivais importantes? Mas, depois de conferi-lo, entendi o motivo da premiação. Embora não seja equivocado classificá-lo neste gênero, Drive oferece, em sua essência, muito mais do que uma simples fitinha de aventura põe à disposição de seus apreciadores.

Como o filme de ação que se vende, Drive é quase nulo. Falta-lhe a dinâmica acelerada que caracteriza as produções do gênero. Há poucas cenas tradicionais desse tipo de fita, como perseguições (a rigor, só uma, mas muito bem realizada), socos, pontapés (não é desse estilo), tiroteios, explosões. Não seria equivocado classificá-lo como suspense, já que a preparação dos fatos tem mais importância e ocupa mais tempo do que as ações em si. Diante disso, sem medo de cair no ridículo, eu me arriscaria a chamá-lo de filme de ação psicológica, ou seja, o foco não é tanto o que acontece ou o que os personagens fazem, mas a maneira como acontece e o que eles pensam. Também não é exagero classificá-lo como um faroeste urbano contemporâneo, estabelecendo paralelos entre o caubói imortalizado por John Wayne, sobretudo em Os brutos também amam e também nos filmes de John Ford, e a figura do Piloto sem nome, que não tem origem, chega a determinado lugar, cumpre a missão que lhe é designada ou que ele mesmo se encarrega de assumir, e vai embora seguindo em rumo incerto, tão anônimo quanto na chegada. Na ausência das pradarias, há as estradas povoadas por “cavalos-vapor”.

Como cinema simplesmente, é muito bom, equilibrando de maneira certeira diversos aspectos técnicos, com destaque para a montagem competente (que substitui a esquizofrenia das fitas de aventura por um ritmo mais pausado e, ao mesmo tempo, ágil), a fotografia que valoriza as cenas noturnas e a edição de som, categoria pela qual concorreu ao Oscar. Como roteiro adaptado, é ainda melhor, tornando mais clara a narrativa elíptica do romance original homônimo de James Sallis que lhe serviu de base, lançado no Brasil pela Leya, cuja capa copia o cartaz do filme, a velha mania oportunista do mercado editorial, de tentar capitalizar em cima do sucesso da adaptação, sendo que Drive nem foi tão bem de público por aqui.

No caso, o Piloto trabalha como dublê de filmes de ação B de Hollywood e, nas horas vagas, serve como motorista de fuga para assaltos, desde que os bandidos aceitem suas exigências. Vive solitário em Los Angeles até o dia em que conhece a nova vizinha, Irene, uma jovem mãe solteira, por quem se sentirá atraído. Quando o marido dela sai da prisão e se recusa a aplicar um último golpe para pagar uma dívida, o Piloto assume o caso para si. É quando a história se encaminha para o final explosivo e em que se apresentam algumas das cenas mais bonitas visualmente do filme.

É mais uma interpretação convincente de Ryan Gosling, um dos astros da vez em Hollywood que vem emplacando um filme depois do outro (Jogo de poder, Amor a toda prova, Entre segredos e mentiras), rumo a uma breve indicação ao Oscar. Carey Mulligan, de Educação, faz a mãe solteira, também se firmando no estrelato. Completam o elenco o comediante Albert Brooks em raro papel sério (foi esquecido pelo Oscar, havia quem apostasse nele como um dos finalistas a coadjuvante), o bom Bryan Cranston (da série Breaking bad), Ron Perlman e Christina Hendricks (a ruiva de Mad men, lindíssima, com poucas cenas e menos ainda falas).

Já falei do roteiro, que foi escrito por um iraniano, Hossein Amini, cujo recente Branca de Neve e o caçador, também de sua autoria, pode depor contra, mas tem coisas boas no currículo, como o belíssimo Paixão proibida (1996), com Kate Winslet, Asas do amor (1997), Killshot – Tiro certo (2008), entre outros. Além de tornar a história mais palatável, ainda modificou pequenos detalhes que somam ao resultado final. Por exemplo, no livro, o marido de Irene (Irina, no original) é violento com ela e a agride regularmente, mas no filme este aspecto foi eliminado. Também a origem dos personagens, explicada em longos trechos em flashbacks, desapareceram na adaptação, o que poderia resultar aborrecido e artificial. Mas não poupa o espectador de cenas violentas, que a mim particularmente chegaram a incomodar.

O diretor, o dinamarquês Nicolas Winding Refn, tem mão certeira para filmes de ação, e contava com a experiência de ter assinado outros três títulos de destaque antes deste aqui, todos em certo nível mais descontrolados e nervosos: Pusher (1996), o mais conhecido, é o único deles disponível em DVD; Bronson (também roteirista, 2008), com Tom Hardy, sobre um detento que se acha com a personalidade de Charles Bronson; e O guerreiro silencioso, sobre um guerreiro de um tempo mítico (passa de vez em quando na TV a cabo).

No fim das contas, não é difícil imaginar porque Drive não fez sucesso junto ao público. Quem foi assisti-lo esperando encontrar altas doses de adrenalina, certamente saiu frustrado. É porque sua ação se dá em nível existencial, com algumas cenas mais vibrantes para temperar. Tem forte potencial cult. É um filme de ação para cinéfilos.

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