quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Maior que a vida

Lincoln (2012)

De todos os filmes indicados ao Oscar este ano, o que eu menos tinha vontade de assistir era justamente o recordista de nomeações, Lincoln. Pensava: "Caramba, duas horas e meia vendo um filme que fala de política, debate leis de outro país, e ainda por cima trata de uma personalidade da qual pouco ou nenhum interesse resta para nós, brasileiros? Haja saco!" Mas precisava assistir, era meu dever de cinéfilo e quase uma missão a que me imponho anualmente - desde 2000 sempre vejo todos os indicados na categoria principal, para avaliar se a escolha foi justa (só não vi a trilogia O senhor dos anéis porque quero ler os livros primeiro - eu sou um chato).

Fui com uma prima, também cinéfila, de passagem pelo Rio, em uma sessão de sábado à tarde (não gosto de ir ao cinema nos fins de semana, o ingresso é bem mais caro, as salas estão mais cheias, e, portanto, a chance de encontrarmos algum idiota mal-educado é maior), que estava lotada. Primeira surpresa: o público se comportou muito bem, sem conversinhas paralelas ou celulares retinindo na nossa paciência. Segunda surpresa: o filme é muito bom. Mais que isso, é ótimo, merecendo as quatro estrelas da minha avaliação. Parece que não há mais dúvida sobre quem leva o Oscar para casa este ano. Se antes eu já achava uma dessas escolhas indigestas com que a Academia nos brinda de vez em quando (lembram-se de Crash - no limite, em 2006?), agora afirmo sem pestanejar: se o Oscar ficar nas mãos de Lincoln, estará em muito boa companhia.

Lincoln: à frente de seu tempo.
Verdade seja dita que achei os cerca de primeiros 50 minutos de uma chatice assustadora. Um bando de homens, quase todos assemelhados entre si por causa das perucas e do figurino de época, discutindo injunções políticas e constitucionais norte-americanas, em ritmo lento, com uma trilha sonora neutra, que não deixa maiores impressões. Isso é importante para marcar o contexto da história, mas não nego que funciona também como convite a um cochilo, especialmente para o público desacostumado a filmes desse porte. No entanto, os 100 minutos restantes são realmente notáveis, a ponto de se acompanhar com todo o interesse até a resolução final. É provável que a maioria dos espectadores médios do filme desconheçam toda a história, e não saibam, portanto, o que de fato aconteceu (mas basta uma conferida rápida na sinopse para descobrir o mistério do roteiro); a esses, acrescente-se um elemento de suspense, que pode servir para atrair a atenção de quem não está muito preocupado ou interessado nos meandros políticos da história. A platéia também gostou do que viu e aplaudiu no final da projeção.

Ao contrário do que muita gente pode pensar, o filme não é uma biografia de Abraham Lincoln, o 16º presidente dos Estados Unidos e até hoje considerado um parâmetro de retidão política e ética buscado por seus sucessores desde então. O roteiro, de Tony Kushner, baseado no livro Team of rivals: the genious of Abraham Lincoln, de Doris Kearn Goodwin (recém-lançado no Brasil pela Record em versão reduzida e apenas com o nome Lincoln na capa), foca suas atenções no ano capital de 1865, no final da Guerra de Secessão, e acompanha os esforços empreendidos pelo presidente para que fosse aprovada a 13ª Emenda à Constituição Norte-Americana. Não era uma lei ordinária qualquer, mas uma determinação que abolia a escravidão no país e, com isso, lançava os Estados Unidos a uma nova era mundial no reconhecimento da igualdade entre os homens. Acompanhamos as estratégias utilizadas por Lincoln na tentativa de conseguir o seu intento, ainda que usasse de artifícios moralmente condenáveis, como a compra de votos. Mas a questão que se impõe é: Lincoln não buscava favorecimento pessoal, e sim deixar um legado maior que si próprio, pondo seu país à frente de sua vaidade. Uma aula para a classe política de quase todos os países - nem preciso dizer que sobretudo no Brasil. O roteiro também ganha pontos por evitar o triunfalismo que seria natural de se esperar em uma produção do gênero. Não há a preocupação de se endeusar o personagem, que é mostrado em todas as suas facetas, das mais ousadas às mais frágeis. Lincoln era um homem comum, que agia segundo sua consciência. E vislumbrava o melhor para sua nação.

Mary-Todd (Sally Field): mãe e primeira-dama.
Tudo funciona muito bem em Lincoln: a direção de arte cuidadosa reconstitui com perfeição os cenários e ambientes da época; a fotografia de tons sombrios realça os aspectos claustrofóbicos dos gabinetes e dos interiores nos quais se passa a maior parte da ação; o tom austero da narrativa convida o espectador a pensar e formular suas próprias opiniões, algo muito raro no cinema atual. Mas nada disso seria possível se Spielberg não tivesse se cercado de um elenco excepcional. No papel-título, o inglês Daniel Day-Lewis dá mais um show de interpretação, compondo um Lincoln em detalhes mínimos, como a inflexão de voz e a ligeira curvatura corporal. Sally Field tem poucas chances, mas arrebata o espectador quando aparece na pele da sofrida Mary-Todd, a primeira-dama angustiada pelo destino de seu filho mais velho, uma participação pequena mas expressiva de Joseph Gordon-Levitt. Ainda Tommy Lee Jones (como Thaddeus Stevens) e David Strathairn (como William Seward) abrilhantam mais o resultado encarnando os maiores aliados de Lincoln.

Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones): aliado.
O Oscar seria uma boa forma de coroar e garantir lugar eterno na história para este grande filme, mas as recentes vitórias de Argo no Globo de Ouro e no SAG ameaçam seu favoritismo. Será injustiça se perder? O tempo, como sempre, dirá. Da mesma forma como reverbera até hoje o legado de político exemplar que Lincoln deixou em sua passagem pela Casa Branca. Um legado maior que sua própria vida.

3 comentários:

  1. Oi Giu,

    Eu também tinha certo receio de ir ver o filme e não gostar por ser político demais, lento demais, chato demais. Mas a sua - excelente! - resenha, junto ao comentário de um amigo ontem, que viu o filme, confirmaram que preciso vê-lo.

    Infelizmente eu sou uma cinéfila muito da chulé que não se sente na obrigação de ver todos os filmes concorrentes ao Oscar - e muitos acabo nem vendo mesmo, tipo o citado "Crash", entre outros.

    Ah, eu prefiro ler os livros DEPOIS, assim não me decepciono muito com os filmes. rsrs

    E adoro David Strathairn!

    Beijão.

    ResponderExcluir
  2. Oi, Sheila.
    Realmente o filme me assustava antes mesmo de entrar em cartaz, eu estava até reticente de assisti-lo, mas me surpreendi. Ele é meio chatinho no começo, mas depois se torna até vibrante. Gostei bastante.
    Eu prefiro ler os livros antes para saber se a adaptação foi bem feita ou se inventaram demais (coisa de professor de literatura). Às vezes só consigo ler o livro depois - caso de "Argo". E acho que se o tivesse lido antes, não teria gostado tanto do filme, porque é um capricho de ufanismo!
    Beijos!

    ResponderExcluir
  3. Oi Giuliano
    Muito boa, esclarecedora e convidativa sua resenha, parabéns!
    "Verdade seja dita que achei os cerca de primeiros 50 minutos de uma chatice assustadora."
    Apesar de broxante essa "só a cabecinha" de 50 minutos vou dar uma chance a ele dividindo aquele tempo em 2 capítulos (quem sabe?)
    O que mais me convenceu a assistir foi o fato do não "endeusamento" da personagem, característica tão marcante do cinema de consumo americano.
    Obrigado pela dica.
    Ah! Não sabia que se tratava da 13a emenda, assisti recentemente o doc sobre ela (titulo: "A 13a emenda") que recomendo com veemência.

    ResponderExcluir