quinta-feira, 24 de julho de 2014

Corações na sobremesa

The lunchbox (2013)
Quem descobriu o cinema indiano a partir dos musicais festivos e coloridos típicos de Bollywood e se tornou fã deles vai estranhar um bocado este The lunchbox. Saem de cena as coreografias inusitadas, os figurinos esvoaçantes e as paixões bobinhas movidas a canções vibrantes e entra a Índia real, com seu trânsito caótico, seus transportes públicos lotados e povoada de pessoas de carne e osso, vivendo seus dramas comuns a todos nós. A vida como ela é.

O primeiro estranhamento já começa no título, que não foi traduzido pela distribuidora. A princípio, é um mau sinal, que denota falta de confiança no produto oferecido. Afinal, para que perder tempo traduzindo o título de um filme que ficará tão pouco tempo em cartaz? Se a expectativa de longevidade no circuito é desanimadora, é porque, no fundo, a história é ruim, não vai empolgar o público, ninguém vai querer ver... Mesmo em DVD ficará esquecido no canto escuro da prateleira... Por outro lado, pode ter sido também uma estratégia comercial, visando conferir à fita um interesse além do que faria supor uma tradução.

Literalmente, "lunchbox" é caixa de almoço, ou, cá entre nós, marmita, quentinha. E, convenhamos, quem ia se animar a ver uma coisa chamada "A marmita"? Assim, a opção por manter o título original acabou se revelando um acerto. E o melhor é que também não entrega nada do que se vê na tela, o que permite que o espectador vá descobrindo a história por sua conta.

No fundo das quentinhas, pode estar um coração.
O roteiro reflete ecos de Nunca te vi, sempre te amei (1987), quase um clássico moderno do romantismo dirigido por David Jones, mas tem vida própria. Saajan Fernandes (Irrfan Khan, de As aventuras de Pi e mais de cem créditos  no cinema) é um funcionário federal às vésperas da aposentadoria que sempre encomenda quentinhas de um restaurante próximo a seu local de trabalho. Um dia, passa a receber por engano as refeições preparadas pela dona de casa Ila, que pensa as estar enviando para o marido. Fernandes e Ila começam a se corresponder por meio de bilhetes enviados juntos das refeições e dão início a uma amizade que os ajuda a preencher certas ausências: ela vive um casamento desinteressado; ele é um viúvo, sem maiores expectativas sentimentais. O que começa como um equívoco do destino pode ser a chave para grandes mudanças.

É importante destacar que o serviço de entregas de comida mostrado no filme, conhecido como Dabbawhala, existe de fato, é bastante popular em Mumbai (cidade onde se passa a história) e, ao contrário do que acontece na ficção, é famoso por jamais cometer erros, ou seja, um engano como o que desencadeia a trama dificilmente aconteceria. É neste ponto que o roteiro se desenvolve, levando com que uma falha do "sistema" seja compensada pelo encontro que promove entre duas pessoas que, em condições normais, dificilmente teriam suas vidas interligadas. É por essa pequena desordem de um aspecto do mundo que se reordena o mundo particular dos personagens.

O amor é um prato que deve sempre ser servido quente.
À medida que os bilhetes vão sendo trocados, percebemos as sutis mudanças que acompanham a personalidade de Fernandes e Ila. Sempre muito zeloso de seu serviço, Fernandes, a princípio, rejeita o novo funcionário que lhe incumbem de treinar, e que herdará sua vaga tão logo se aposente. Não tem paciência com o rapaz, recusa-se a atendê-lo e a ensiná-lo o ofício. Aos poucos, contudo, vai se humanizando e simpatizando com seu jovem substituto, metaforizando as transformações que se operam em seu interior. Fechado pelo luto que carrega de sua falecida esposa, Fernandes revalida suas emoções enquanto vai descobrindo novas possibilidades afetivas.

Há uma fala, repetida duas ou três vezes no filme, que sintetiza o destino final do improvável casal: "Já li em algum lugar que o trem errado muitas vezes para na estação certa". O público se identifica com os protagonistas, cada qual escravizado por suas solidões, e torce por um desfecho satisfatório. Mas não estamos em Hollywood e as coisas não são tão óbvias. Assiste-se a tudo com um pequeno aperto no coração. E se o trem não parar? E se a estação não fizer parte daquela rota? 

The lunchbox é, também, um ótimo retrato de uma filmografia diversificada e vigorosa, que acerta tanto nas paixonites dançantes de belos elencos fotogênicos quanto no desenho sensível de emoções sinceras de pessoas comuns. Vale conhecer. Pode não ser Bollywood, mas é cinema da melhor qualidade.

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