quarta-feira, 2 de maio de 2012

Perdoai-o, Senhor...


Imagine uma história assim: Jesus Cristo desperta de um sono secular na Manhattan dos dias atuais e sai vestido de super-herói pelas ruas da cidade pregando os ensinamentos de bondade e tolerância entre os homens. Mas, lá do céu, o Todo-Poderoso, que administra uma pizzaria, não gosta nem um pouco das atitudes do filho e envia um arcanjo para tentar demovê-lo de seus intentos. Então, Jesus tenta ganhar a simpatia do arcanjo para sua causa ao mesmo tempo em que precisa impedir os planos que o diabo tem para conquistar o mundo, para o que conta com a ajuda dos quatro maiores pecadores da história: Hitler, Nixon, Vlad, o Empalador e Jim Morrison (!?).

Blasfemo? Obra de algum iconoclasta revoltado com o cristianismo? Produto de uma mente criativa e doentia? Talvez um pouco de tudo. Se você gostou da sinopse, provavelmente vai adorar assistir Ultracristo, mais uma dessas bizarrices que nunca foram lançadas por aqui, mas estão disponíveis na rede, ao alcance de um clique para serem baixadas. É bom que se diga, porém, que o resultado fica muito abaixo do que se poderia esperar de uma história com tal ponto de partida.


 Não sei até onde o diretor Kerry Douglas Dye poderia ou pretendia ir com esse material nas mãos. O fato é que, mesmo diante de inúmeras possibilidades, acabou fazendo um filme que se equilibra (mal) entre a reverência à figura de Cristo, o deboche absoluto, o trash e o absurdo total. Faltou competência para cozinhar com sabor os elementos que poderiam render uma comédia explosiva e mais polêmica do que qualquer Godard ou Scorsese já conseguiram com seus respectivos dramas católicos. Ou talvez nem tenha recebido muito crédito mesmo justamente por isso. Afinal, quem é Douglas Dye frente a esses figurões? Só um jovem querendo reinventar a roda e provar que é genial, justificando seu diploma na prestigiosa NYU Film School, pela qual se graduou em 1995. Ultracristo, de 2003, foi sua primeira experiência no cinema, em todos os sentidos – além de dirigir, também escreveu o roteiro, produziu, compôs a trilha sonora, editou e, claro, fez uma ponta. O filme, aliás, parece mesmo um projeto entre amigos, já que os nomes se repetem na ficha técnica.

Fazer graça com religião é um terreno minado, sempre complicadíssimo por ferir crenças e expor ao ridículo certos dogmas que muitas pessoas seguem, quase sempre, cegamente e sem muitas discussões. A impressão é que o diretor quis fazer uma ousadia anárquica, mas, talvez temendo as reações negativas e a rejeição ao filme, teve de pisar no freio e maneirar nas piadas. Não acho que alcançaria maior repercussão, sobretudo porque o filme erra no que deveria ser seu grande trunfo: o humor. As piadas são fracas, os diálogos não são engraçados, às vezes parece que estamos vendo um filme inglês, com aquele humor esquisito e cifrado, o apelo visual não funciona adequadamente. São poucos os destaques cômicos. O uniforme que Cristo passa a usar para combater o mal tem um design divertido.


Há outra piadinha rápida, mas bem bolada, que é o nome da pizzaria administrada por Deus, Famiglia. Outra sacada é quando Cristo sai pelas ruas e usa sua visão infravermelha para localizar crimes, só que, em vez de indicar qual tipo de delito está sendo cometido, aponta para o mandamento que se está violando! No mais, o filme se perde em tentativas de chocar, mas sem maior conseqüência. Mesmo situações que poderiam render escândalo acabam ficando em segundo plano – por exemplo, a jovem costureira que acolhe Cristo divide a casa com duas amigas que são lésbicas e amantes. Cristo ficaria chocado com isso? Não sabemos, porque o assunto é muito mal apresentado e quase não é explorado, só tem uma cena de beijo e mais nada. Será que faltou coragem para ir adiante?
           
Mais interessante que o próprio filme é conhecermos detalhes curiosos envolvendo os intérpretes. O nome mais conhecido (!) do elenco é o de Celia A. Montgomery, que antes havia feito uma ponta (!!!) não creditada (!!!!!!!!) em Kate e Leopold (2001), parou a carreira e só voltou a trabalhar este ano em um curta-metragem. Dara Shindler, que interpreta a intrometida repórter Jada Jensen, também só fez mais um curta depois, mas certamente você já deve tê-la ouvido: uma canção de sua autoria, “Faraway”, foi executada em quatro filmes, entre eles Demolidor e Premonição 4


O protagonista, Jonathan C. Green, ao contrário do que sugere o sobrenome, não tem qualquer parentesco com o comediante Tom Green, embora ambos guardem mesmo certa semelhança fisionômica. Ultracristo também foi seu primeiro trabalho e o único de relativo destaque; depois, esteve em um episódio de Lei & ordem e fez outros dois filmes sem maiores referências. O próprio diretor Kerry Douglas Dye só voltou a se arriscar atrás das câmeras quatro anos depois, em 2007, com Body/antibody, também inédito por aqui, mas que lhe rendeu alguns prêmios em festivais pequenos e sem expressão nos Estados Unidos. Mesmo este seu primeiro filme recebeu menção honrosa no Festival de Cinema e Vídeo de Berkeley e, pasmem, melhor comédia no Festival da Filadélfia.

Ou seja, Ultracristo foi mesmo uma ação entre amigos e as más críticas que recebeu devem ter contribuído para enterrar a carreira de todos os envolvidos. O filme também é mal avaliado no site IMDB, com a média 4,5. Mas, diante da natureza de sugestiva anarquia de seu roteiro, fica a dúvida se as pessoas não gostam por mexer com algo sagrado ou simplesmente por ser um filme ruim mesmo.

Um desses casos em que a idéia é mais interessante e engraçada que a própria realização.

Veja o trailer dessa tosqueira:


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