segunda-feira, 28 de maio de 2012

Tratado sobre a tristeza


Que se esclareça desde já: quem for assistir a Garota eslovena atraído pelo suposto erotismo sugerido no cartaz irá odiar o filme. E certamente sairá do cinema dando razão a uma das falas da protagonista. “A vida é cheia de decepções”. Certo, há uma cena de sodomia bem no começo, umas e outras pouquíssimas insinuações aqui e ali, mas tudo tão dolorido, tão melancólico, que a única sensação experimentada pelo espectador é o incômodo. E um adendo ao monólogo acima seria dizer que a vida é cheia de tristeza, também. Estaria mais de acordo com o que é transmitido ao espectador durante a hora e meia de duração desse drama.

O comportamento frio e reservado que caracteriza a maioria do povo europeu, sobretudo o do Leste, sempre foi em parte justificado pelo clima daquela região, igualmente frio, chamando ao recolhimento. Falta vibração, alegria, entusiasmo. Falta cor. A gelidez das paisagens se impregna no povo de lá, levando-o a agir quase como um autômato, soterrando suas emoções, parecendo arrastar atrás de si uma existência sem vida. É essa sensação de automatismo e imobilidade que perpassa o cotidiano de Alexandra (ou Sacha), jovem estudante universitária de 23 anos (interpretada de forma precisa pela lindíssima Nina Ivanisin). Além da localização geográfica desfavorável e do clima pouco convidativo, a Eslovênia ainda tem um histórico trágico de guerra recente, que catalisa a tristeza de seus habitantes, um comportamento que vai na contramão da música eslava, sempre contagiante e elétrica. Mas nem essa alegria rítmica se ouve em Garota eslovena, cuja trilha sonora é, adequada e coerentemente, contida, discreta.

O filme transborda tristeza por todos os cantos. Desde a cena inicial, quando um executivo alemão sofre um infarto pouco antes de consumar a transa contratada com a jovem garota de programa após ingerir duas cápsulas de Viagra. A prostituta foge e passa a ser procurada pela polícia, que só tem como pista o apelido pelo qual ela é conhecida. Nem chegam perto de descobri-la, mas o aspecto investigativo não é importante na história. A partir de então, acompanharemos o cotidiano da tal garota eslovena. Ela mora em uma pequena cidade do interior do país com o pai e segue regularmente para a capital Liubliana, para assistir às aulas e, eventualmente, fazer programas sexuais que lhe rendam alguns trocados. Sua vida obedece a um ciclo bem determinado, que demarca um território intransponível pela força das circunstâncias: Sacha quer comprar um apartamento; para isso, contrai um empréstimo no banco; para saldar a dívida, faz programas; a dívida aumenta por conta dos juros; Sacha, então, faz mais programas; junta uma parte do dinheiro para pagar o aluguel, mas tem dívidas no banco...

Tudo em Garota eslovena remete à tristeza. Ela está presente no cotidiano desalentado de Sacha, tão cinza e amorfo quanto a paisagem que a rodeia. Presente nos clientes que arruma, em especial naquele que se apaixona por ela e promete largar a esposa para que tentem construir uma vida juntos (a tristeza da ilusão). Tristeza na figura do pai de Sacha, que sonha em reativar a antiga banda de rock que tinha na juventude e tentar encontrar algum sentido na vida. Tristeza nos amigos do pai, todos gordos e acabados, que embarcam no sonho de recuperar uma época que não podem reviver, mas ao qual se agarram como se a felicidade suprema dependesse disso. Tristeza na mãe divorciada de Sacha, que vive só e não se importa com os rumos que a filha toma na vida. Até o presente de aniversário que Sacha dá ao pai é triste: um moedor de pimenta com luzinhas que acendem quando é usado, e que deixa o velho feliz da vida ao ganhá-lo. Talvez seja o único momento em que é possível vislumbrar uma nesga de felicidade autêntica em meio a tanta desesperança.

A história de Sacha simboliza uma realidade que se abateu sobre os países europeus nos últimos anos por conta da crise financeira mundial (a tal que só fez “marolinha” aqui no Brasil, provavelmente antecipando o tsunami que virá), que estagnou a vida dos jovens, levando-os a reverem planos e conceitos para o futuro. Especialmente na Eslovênia, que, como toda república nova, formada a partir da dissolução de uma república maior e mais forte, ainda não aprendeu a conviver com seus próprios problemas internos. Sacha não é uma garota má, nem se prostitui por falha de caráter: ela simplesmente não tem opção. Quando toma o trem rumo à capital, só o que enxerga na paisagem é a cidade próxima. O horizonte de mudanças almejadas é um traço negro emoldurado por pesadas nuvens de chuva. Sacha está aprisionada em uma realidade de desespero, na qual o sexo é a moeda podre que financia os sonhos inúteis de um futuro que nunca virá. Ela sabe disso, e a cena final, em que sussurra mecanicamente os versos de uma triste melodia, reproduz seu conformismo.

Um dos filmes mais belos e tristes dos últimos tempos. Belo como o perfil de sua protagonista, triste como a vida que leva. Como a vida de todos nós. 

2 comentários:

  1. Não acho "Garota Eslovena" tão triste assim. Ela graduou-se, vendeu o apartamento e talvez seus sonhos não fossem assim tão ambiciosos.
    Voltou para a casa do pai, que canta uma música do Frank Zappa. Se se compararmos a nós, está muito melhor, pois não tem escolas de samba barulhentas, balas perdidas e nenhuma perspectiva de vida.

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  2. Para mim, pelo contexto, é fácil um dos mais tristes que já vi. Como sou ignorante em música (já admiti aqui mesmo uma vez), não identifiquei a canção. Grato por prestigiar o blog e por enriquecê-lo com seu esclarecimento.

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