quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Anticristo

Lars Von Trier voltou à velha forma e novamente consegue incomodar o espectador. Depois de dois projetos mal-sucedidos – o repetitivo Manderlay (2005), continuação inferior de sua obra-prima Dogville, e a equivocada comédia O grande chefe (2006), onde interpreta o papel central – , o mais conhecido diretor do Dogma 95 realizou um filme impactante, que não apenas impressiona, como faz pensar ao final da sessão.

O filme começa de forma antológica, com um belíssimo prólogo em preto e branco. Nele, acompanhamos uma intensa relação sexual captada em detalhes pela câmera, que explora em closes as expressões faciais e físicas dos amantes, incluindo closes íntimos explícitos. Ao mesmo tempo, assistimos a morte trágica do filho pequeno do casal, que se joga pela janela enquanto seus pais transam. O contraste entre o momento de dor e o de paixão extrema é acentuado pelos acordes modificados da Ave Maria de Gounod. A partir daí, a mulher, que já apresentava um histórico de problemas psicológicos, entra em depressão profunda, com sintomas ainda de ansiedade e angústia. O marido, que é terapeuta, resolve levá-la para a casa de campo onde ela e o filho passaram juntos o último verão, e lá se empenha em curá-la. E é em meio à placidez do lugar que tem início uma jornada pelo medo, numa espiral de loucura.

A chave do filme é o processo de desconstrução de várias instituições sociais estabelecidas, e talvez seja este o aspecto mais assustador do roteiro. A mais óbvia é a desconstrução da família, a partir do momento da morte do filho. A partir daí, seguem-se as demais (da figura materna, da mulher, do amor). O clima vai se tornando cada vez mais opressivo, sombrio (bem realçado pela fotografia em tons escuros), até desencadear uma série de lances violentos, irreversíveis. Não há saída possível para aqueles dois personagens, presos em um universo que, a princípio acolhedor, se revela o cenário ideal para a exposição do que existe de pior na alma humana. Mas o que pode incomodar, de fato, é a reversão do discurso religioso. Provavelmente, muito do incômodo que se instala no espectador advém daí. Somos confrontados com a quebra de princípios morais solidamente estratificados na sociedade, e Von Trier faz isso com segurança e uma coerência magistral. O que assusta mesmo é a naturalidade com que o medo se interpõe no ambiente. Em momento algum se percebe qualquer efeito especial mirabolante, não há maquiagem monstruosa nem música grandiloqüente anunciando momentos de pânico. Apenas a maldade que se esconde no fundo do ser humano.

O diretor espalha pelo filme uma série de signos e elementos simbólicos, que explicam a conduta dos personagens e justificam o roteiro, mas nem todos são fáceis de identificar: cada espectador deve dar sua própria interpretação, levando em conta a força dos conceitos psicanalíticos e filosóficos abordados, sem esquecer, novamente, de perceber as analogias estabelecidas entre a religião e a loucura crescente. O próprio título do filme pode não se referir exatamente a um indivíduo demoníaco: anti-cristo seria em justa oposição à presença de Cristo naquele ambiente, onde não há espaço para bons sentimentos e onde qualquer esperança e alegria passam ao largo, certamente afugentadas pelo clima soturno.

Exibido no último Festival de Cannes, Anticristo foi muito mal recebido, merecendo vaias da platéia. Mesmo assim, premiou a atriz Charlotte Gainsbourg, que interpreta a esposa (o marido é vivido por William Defoe).

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