sábado, 3 de outubro de 2009

Festival do Rio - pondo a casa em ordem

Finalmente consegui uma brecha na agenda para atualizar o blog. Seguem abaixo as críticas dos últimos filmes que vi.

FILMES VISTOS NA QUINTA-FEIRA, DIA 1:

OS TEMPOS DE HARVEY MILK – Sean Penn ganhou o Oscar de Ator este ano por sua interpretação de Harvey Milk, o primeiro homossexual a assumir um cargo político, em São Francisco nos anos 70. Sua inspiração partiu deste documentário, também premiado em sua categoria em 1984, e que permanecia inédito no Brasil até então. Embora não haja ousadias narrativas, mantendo-se no convencionalismo tradicional desse tipo de produção, o filme traça um retrato afetivo e sincero do personagem, embora omita diversas passagens de sua vida (sua relação com o amante, com quem se mudou para São Francisco, sequer é citada). Vendo as imagens dos principais envolvidos, dá para perceber o quão cuidadoso foi o diretor Gus Van Sant na escolha e caracterização dos personagens de Milk – a voz da igualdade, tamanha a semelhança. Penn é o próprio Milk, até no gestual (o que fica claro aqui). Bem que poderia ser incluído como extra em alguma edição especial do relato ficcional. * * *

VENHO DE UM AVIÃO QUE CAIU NAS MONTANHAS – Em 1972, um avião da Força Aérea Uruguaia caiu nos Andes chilenos. Os 29 sobreviventes precisaram lutar por mais de 70 dias em meio a uma paisagem inóspita, frio excessivo e muita neve, recorrendo até ao canibalismo. Um dos mais assustadores acontecimentos reais da história, já havia rendido alguns filmes de ficção (o último foi Vivos, 1992, com John Malkovich), mas é curioso como até hoje nunca tenha sido contado pelos próprios sobreviventes, o que confere uma inquestionável carga verídica aos depoimentos. O diretor recorre a atores para recriar ficcionalmente o fato, e tem a delicadeza de não explorar o caso do canibalismo, que é apenas citado, sem aprofundamentos. O acidente pode ser entendido como um triunfo da superação humana diante das piores adversidades. Mas é uma história antiga, da qual hoje pouca gente se lembra, e que não suscita o mesmo interesse de há 40 anos. * *

ABRAÇOS PARTIDOS – Almodóvar continua mestre naquilo que sabe fazer de melhor: contar uma história complexa de forma acessível a qualquer espectador, misturando elementos de melodrama e comédia nervosa, com seus tipos característicos. Aqui, acompanha-se a trajetória de um diretor de cinema, Harry Caine (Luís Homar), que é procurado por um jovem iniciante no ofício que lhe pede para dirigir um roteiro baseado em memórias pessoais. Deste encontro, surgirão lembranças de fatos ocorridos 14 anos antes, quando Caine se envolveu com a amante de um poderoso empresário. Utilizando a mesma estrutura narrativa de seus trabalhos, Almodóvar realiza mais uma obra instigante no estudo que faz do desejo e de como nossas escolhas acarretam mudanças irreversíveis em nossas vidas. Primeiro trabalho de Penélope Cruz após o Oscar de Atriz Coadjuvante, confirmando seu talento na composição de uma personagem dividida entre a amargura e a paixão. * * *

FILMES VISTOS NA SEXTA-FEIRA, DIA 2:

EM BUSCA DO PARAÍSO – Rodado em 1970, este filme não chegou a ser finalizado e foi dado como desaparecido por mais de 35 anos, até ser redescoberto agora, em 2009, quando finalmente foi editado e finalizado. Mas teria sido melhor deixá-lo no ostracismo do que dar forma a essa maçaroca. Com montagem caótica, o filme não consegue desenvolver sua história de forma minimamente compreensível, com incontáveis vaivens temporais, amontoando as situações sem um plano narrativo definido. Basicamente, são as lembranças de Heaven, mestre de cerimônias de um clube que teve sua fase áurea justamente naquele período, e hoje vive apenas dos fantasmas de seu passado, e seu envolvimento com um ginecologista casado, travestis, artistas de segunda classe. Ou seja, o submundo. O filme começa com ela debruçada sobre a mesa do bar, tecendo comentários sobre o destino, e termina da mesma forma, lamentando-se do que poderia ter sido a sua vida se tivesse conseguido sair dali. Protagonizado por uma atriz estranhíssima, de queixo saliente e rosto comprido, parecendo travesti, Ruby Lynn Reyner (que é mulher mesmo, apesar da confusão), que nunca mais fez nada na carreira. O nome mais conhecido do elenco é Mary Woronov, que posteriormente se consagraria como estrela dos filmes de Paul Bartel. Apesar do mau gosto geral da produção e da narrativa aborrecida, o filme tem forte potencial cult, sobretudo por sua trilha sonora, que inclui até uma canção de Tom Jobim (“Theresa my love”), provavelmente inserida na edição final. A diretora Susana Moraes foi uma das produtoras. Mais curiosidades nos créditos finais: a longa lista de agradecimentos inclui os nomes de Martin Scorsese, Ana Jobim (viúva de Tom) e João Donato.

A GRUTA – Uma experiência de cinema interativo, inédita no Festival do Rio. O diretor Felipe Gontijo apresentou o primeiro filme-jogo exibido em uma sala comercial no país. Com um controle remoto, os espectadores podiam escolher os rumos que a história ia tomando, por meio de votação em diversos momentos do filme. O projeto foi desenvolvido para DVD, formato ao qual deve funcionar adequadamente, porque em cinema fica complicado, a começar pela dificuldade de se enxergar no escuro (e são apenas 15 segundos para escolher uma das opções) e saber qual botão está sendo pressionado. Houve problemas com o equipamento também (que repetia todas as porcentagens de escolha no começo). A idéia da interatividade no cinema não é completamente nova, basta lembrarmos de William Castle nos anos 50 e, mais recentemente, John Waters e seu Odorama nos anos 70. A sessão só valeu pela farra da platéia, que se divertiu bastante com a novidade (mas que, mesmo assim, cansava um pouco depois de algum tempo). É claro que fica difícil avaliar um filme desses, em que cada escolha leva a um novo caminho, mudando por vezes a perspectiva da obra num todo. Além disso, como cinema, o filme é constrangedor, com elenco péssimo, som deficiente, iluminação tosca, efeitos ridículos, falhas técnicas (microfones aparecem), enfim, parece mesmo uma brincadeira entre amigos, voltada apenas ao mercado de jogos. Mas não há como negar que é uma dessas atrações de Festival do Rio, da qual se tem de participar. Além de abrir um debate interessante sobre as potencialidades do cinema no futuro que já se aproxima. * *

A FITA BRANCA – Tenho confessa antipatia pelo austríaco Michael Haneke, mas aqui preciso dar o braço a torcer: o cara conseguiu se superar, fazendo um exercício de suspense ainda mais absorvente e assustador do que em Caché. Com esplêndida fotografia em preto e branco, Haneke narra em clima sufocante como uma série de misteriosos e cruéis acontecimentos abalam uma pequena cidade na área rural da Alemanha, poucos dias antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. A metáfora para a perda da inocência e o gradual avanço do nazismo e dos horrores da guerra, semeando discórdia e desconfiança em uma comunidade até então unida por fortes laços de civilidade, ganham contornos sombrios na excelência do elenco e naquele recurso já conhecido do diretor, a ausência total de trilha sonora, que confere maior aproximação com o espectador. Não faltam cenas chocantes às quais Haneke nos habituou. Nenhuma, porém, gratuita, servindo, todas elas, à construção do mistério. Como é comum também em sua obra, não há julgamentos morais, o que fica a cargo de cada espectador. Não é um filme fácil, mas que comprova o talento do cineasta, que parece, enfim, ter alcançado um nível verdadeiramente elevado em sua carreira, inserindo-se de fato no rol dos grandes realizadores. Ganhador da Palma de Ouro deste ano. * * * *

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