Vi 51 filmes no Festival deste ano, três a menos que ano passado. Mas a culpa foi da escalação dos horários, muito ruins para encaixar alguma coisa entre uma sessão e outra, e também da supressão das sessões ao meio-dia. Pela primeira vez desde 2002, saio do festival sem conferir a cotação máxima a um filme, o que pode significar duas coisas: ou o nível do cinema produzido hoje é mesmo pouco animador, ou estou me tornando extremamente exigente.
A seguir, o que vi na segunda semana do Festival, entre os dias 2 e 8 de outubro.
ENCANTADOS
-
Mais uma imersão de Tizuka Yamasaki na Região Norte, agora contando uma
aventura balizada pelos místicos caruanas de Belém. Produção cuidadosa,
fotografia belíssima e elenco estelar (obviamente tem Dira Paes). Agradável de
ver, mas o roteiro apressa algumas soluções. Carolina de Oliveira cada vez
mais interessante, tanto no talento quanto na beleza. * * *
VIDA
FÁCIL -
Da mostra Clássicos Restaurados de Hitchcock, este foi o único que consegui
encaixar na programação. É tão fraco quanto a maioria de seus títulos da fase
inglesa, mas a sessão valeu pela experiência: um filme mudo acompanhado de
música ao vivo. E, no fim das contas, foi o primeiro Hitch que vi na tela grande! *
*
ONÍRICA
- O
diretor de O moinho e a cruz volta
com um mais um filme de imagens impressionantes, de rara beleza, algumas
beirando o surreal e muitas antológicas, como a cobra no supermercado e o baile
de gala no meio da floresta. Porém, é um filme difícil, muito hermético e por
vezes pretensioso, em especial nas citações literárias. * * *
10.000
KM -
O título se refere à distância entre Barcelona e Los Angeles, cidades que
abrigam o casal de namorados que formam as únicas pessoas em cena. Ele fica na
Espanha, ela se muda para a América, a fim de desenvolver projetos profissionais.
Não é fácil manter um relacionamento onde cada um mora em um canto, e falo por
experiência própria. O filme retrata muito bem a situação, com todas as
conseqüências que ela traz a reboque. Eu me identifiquei com o personagem,
senti sua dor, entendi sua revolta. O roteiro também evita o final redentor.
Enfim, a vida como ela é. * * *
O
ARDOR (El ardor) - Tem um problema sério que é
a alternância constante de gêneros ao longo da narrativa, só que sem coerência:
começa como drama, vira aventura na selva, ambiente no qual se passa quase
inteiramente, filme de suspense e termina como faroeste, com direito a duelo
final e tudo. O personagem de GG Bernal é mal definido, parece ter poderes
místicos mas isso não se explica. Alice Braga, coitada, só serve para cumprir
cota de atriz porque não tem o que fazer. Um tanto violento em alguns momentos,
também tem uma trilha sonora óbvia e irritante. * *
GONZÁLEZ
-
Pensei que este seria o contraponto perfeito à A Via-Crúcis (visto na primeira semana), ou seja, um filme movido pelo discurso ateu, pelo que
se depreende da sinopse. Mas o roteiro sequer menciona a condição do
protagonista, um pobre-diabo desempregado que vive na capital mexicana, sem
perspectiva, e que aceita trabalhar com teleatendimento em uma igreja
evangélica. Do meio para o final, ele enlouquece e o que era uma crítica às igrejas evangélicas vira história policial, tudo sem muita sustentação.
Carlos Bardem (irmão mais velho de Javier) faz um pastor que finge ser
brasileiro e fala em portunhol! * *
CARVÃO
NEGRO -
O grande vencedor do Festival de Berlim é uma reinvenção do gênero noir, sem nada de
muito especial. Com uma premissa de filme de horror barato – pedaços de corpos
são encontrados em uma carvoaria – , o filme tem ritmo um tanto arrastado,
alternando cenas frias com outras explosivas, de forte tensão (o tiroteio no
salão, logo no começo). O romance nunca se impõe, a trama investigativa parece
dar voltas e a duração podia ter uns bons dez minutos a menos. O final também é
anticlimático. A premiação em um dos festivais mais importantes do mundo mostra
que o nível dos filmes de hoje não é mesmo dos melhores. * *
MASSAGEM
CEGA -
Dramas e alegrias de um grupo de cegos que trabalham como massagistas em uma
clínica, em Nankin. Total falta de assunto encerada por quase duas horas sem
que nada de interessante aconteça, embalada por diálogos por vezes de uma
indigência constrangedora ("Você é mais linda que um cozido de
porco"!). Salva-se o aspecto humano dos personagens. * *
AS
HORAS MORTAS - Um
delicado e sensível rito de passagem. Favorecido por uma coincidência climática,
que provocou chuva durante quase todo o período da produção, ganhou uma interessante metáfora atmosférica: é triste e cinzento durante grande parte do tempo, mas ensolarado e esperançoso
no final. * * *
ANNABELLE
-
A boneca de Invocação do mal ganhou
vida própria, literalmente. Este filme é uma preqüência daquele e mostra a
origem do brinquedo demoníaco. O outro é melhor, tem muito mais clima, mas este
não é de todo ruim, embora prejudicado por sustos um tanto óbvios, trilha
sonora redundante e um elenco pouco empenhado. Um pouco frustrante, mas
diverte, desde que não se exija muito. Parece piada, mas a atriz principal é...
Annabelle Wallis (da série The Tudors)!
* *
O
PORTAL DO PARAÍSO - Este é o famoso filme de Michael Cimino que levou
à falência do estúdio United Artists, até hoje considerado o maior prejuízo da história
do cinema, tendo custado US$ 40 milhões e rendido apenas US$ 1 milhão! Nunca o
tinha visto e, talvez por descobri-lo só agora, na tela grande, não o achei tão
ruim quanto sempre ouvi falar. Mas é fácil entender os motivos do fracasso. O
primeiro, evidente, sua longuíssima duração de 220 minutos (quase quatro
horas!), o que é um suicídio comercial e espanta as pessoas. Produzido no
começo dos anos 80, ou seja, em plena Guerra Fria, ficou muito estranho para o
público norte-americano aceitar a idéia de ter uma colônia de imigrantes russos
estabelecida em seu território, servindo como elemento formador da identidade
ianque, ainda que a presença deles ali possa ser lida como metáfora política:
os "inimigos" estão entre nós e é preciso eliminá-los. Também demora
a começar de fato, com um prólogo de 20 minutos em que há muita música e dança
para introduzir os personagens. O maior equívoco, contudo, é a falta de foco do
roteiro. Não há um conflito que se imponha de verdade, que mova a narrativa
adiante ou que dê força às situações. A ação efetiva só ocorre a partir dos 40
minutos finais, e até é bem-conduzida, mas até chegar lá muita gente já
desistiu e debandou (mas na sessão a que estive presente o público se manteve
fiel o tempo todo). Até que ela chegue, há uma sucessão de cenas que não
conferem unidade ao todo e soam dispersas, isoladas dentro de um conjunto lento e
que não seduzem o espectador. Apesar dos defeitos explícitos, o filme foi
indicado ao Oscar de Direção de Arte e tem na fotografia do grande Vilmos
Zsigmond e na trilha sonora belíssima seus pontos altos. Mas há algo de muito
errado com um faroeste cujos melhores momentos estão nas cenas musicais. * *
OBVIOUS
CHILD - O texto parece
ter sido escrito por um adolescente espinhento, que deve achar muito engraçado
usar palavras chulas em situações cotidianas. Mas, a julgar pelas gargalhadas ouvidas durante a sessão, a platéia deve ter gostado
bastante. * *
A
FACE DE UM ANJO (The face of an angel) - Não funciona
este jogo metalingüístico de Winterbottom, outro bom diretor que perdeu o viço.
O roteiro, baseado em escandaloso caso jurídico real, parte de uma hipótese
investigativa e não caminha para lugar nenhum. *
MEIA
HORA E AS MANCHETES QUE VIRAM MANCHETE - O formato quadrado e antigo –
só entrevistas sob um fundo branco – não chega a atrapalhar este divertido
documentário sobre o jornal carioca, famoso por suas manchetes irônicas e
engraçadinhas. Fundamental para estudantes de Comunicação, é uma boa aula sobre
jornalismo popular. * * *
OLHOS
DE LADRÃO -
Embora seja baseado em fatos reais, o representante palestino a uma vaga ao
Oscar de Filme Estrangeiro não tem uma trama atraente e mal trata da questão da
identidade local (a guerra só aparece bem no começo). A menina é por demais
antipática e a história se mantém fria do começo ao fim. * *
VOCÊ
NÃO ME PEGA, PAPAI - Já começa de maneira estranha, com uma voz em off narrando uma espécie de poema
ritualístico. Depois, a esquisitice se impõe, com personagens desajustados, uma
trama familiar pessimamente explicada e uma opção narrativa inadequada, só com
trilha sonora incidental. Vai piorando, ficando cada vez mais violento e
desagradável, até um final inconcluso. Nem a tradução faz sentido, já que quer
dizer exatamente o oposto do título original (Catch me daddy). Mais um descartável filminho independente inglês.
* *
LAST HIJACK - Um assunto sério e atual (a pirataria na Somália) desenvolvido de forma um tanto preguiçosa. Os diretores centram a história em um nativo que planeja seu último ataque antes de mudar de vida. Não há dados nem informações relevantes a respeito da atividade; limita-se a revelar que a pirataria é a oportunidade que os meninos pobres de lá têm para ganharem dinheiro. Os ataques aos navios são reproduzidos em boas as seqüências de animação. * *
RECOMENDADO PELO ENRIQUE - Difícil saber qual era a idéia do casal de diretores ao realizar isso aqui. Um filme absolutamente inútil, que não apresenta qualquer conflito, não explica os personagens, nem sequer cria um clima, seja de comédia, de suspense ou qualquer outra coisa. Perda de tempo, de paciência e da grana de quem pagou.
POR
CIMA DO SEU CADÁVER - O cultuado Takashi Miike leva seus exageros
sanguinolentos para o universo do teatro. Um casal de atores interpreta os
papéis principais em uma peça cujo texto guarda semelhanças com o atual momento
que vivem. Tudo desemboca em uma terrível vingança. Bem no estilo do diretor; os fãs podem estranhar a princípio, mas vão gostar. * * *
VARA
– UMA BÊNÇÃO
- Mais um bom retrato da diferença de classes da sociedade indiana, temperado
com religiosidade e danças folclóricas. Mas não é Bollywood. A história é
também uma oportunidade de conferir um outro tipo de cinema feito naquele país.
* * *
OS
INIMIGOS DA DOR -
As desventuras de um ator alemão perdido em Montevidéu. O choque cultural se
limita às dificuldades idiomáticas entre os personagens. Os poucos diálogos
reforçam o aspecto físico das situações, de onde o roteiro extrai graça. Tem
potencial para uma continuação e até uma série de TV. Mas não é nada demais. *
*
VULVA 3.0 - O documentário perde a chance de discutir
aspectos históricos e sociais da exposição do órgão sexual feminino e se atém
ao estético, debatendo questões relacionadas à sua anatomia ou apresentando
casos de reconstrução. Frustrou muita gente, não que se esperasse erotismo, mas
por se manter tímido na abordagem de um assunto polêmico. * *
REMAKE,
REMIX, RIPOFF -
Documentário sobre o cinema popular feito na Turquia, sobretudo entre os anos
de 60 e 70, mas também são citadas produções mais recentes, dos anos 80.
Diretores, atores e produtores famosos a nível local lembram daqueles tempos e
contam detalhes curiosos e engraçados, como o uso de trilhas famosas de Hollywood
em filmes turcos sem qualquer problema (e sem pagamento de direitos!) ou como
os cineastas conseguiam ser criativos para rodar versões locais de sucessos
norte-americanos. Bastante completo, examina também os motivos da derrocada
dessa indústria. Divertido e fundamental para quem gosta de conhecer a cultura
cinematográfica de outros países. * * * *
O
PRESIDENTE - Makhmalbaf
destila sua amargura contra o sistema que o exilou nessa farsa política sobre a
queda de um ditador de uma república fictícia. Embora tenha ótimos momentos e
uma cena final bela e simbólica, achei que o diretor foi muito direto em sua
crítica, sem nenhuma sutileza. Há problemas: o menino trabalha bem, mas sua
presença reforça uma certa pieguice que manipula as emoções da platéia; com
quase duas horas de duração, carece de uma edição mais enxuta, que tornaria o
ritmo mais ágil. E o roteiro não apresenta heróis com quem o espectador possa
se identificar – o ditador é um tirano e o povo, justiceiro. * *
O
DESAPARECIMENTO DE ELEANOR RIGBY – ELES (The
disappearance of Eleanor Rigby: them) - Esta é a primeira parte de uma trilogia que contará a mesma história por três olhares diferentes, daí o "Eles" no título; os próximos serão "Ele" e "Ela". Jessica Chastain e James McAvoy
caminham a passos largos para serem indicados ao Oscar por este drama romântico
que foge ao convencional. Diálogos inteligentes e afiados, em especial nas
cenas entre ela e Viola Davis. A vida real como ela é, sem soluções fáceis nem
final redentor. * * *