quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Fast Fritas - O amor é um sonho

A NOITE FANTÁSTICA
(La nuit fantastique)
França, 1942, 103 minutos. Direção de Marcel L'Herbier. Com: Fernand Gravey, Micheline Presle, Saturnin Fabre, Charles Granval, Bernard Blier, Marcel Levesque.
Sinopse: Jovem empregado de uma mercearia sonha todas as noites com uma misteriosa mulher de branco; apaixona-se por ela e termina entrando no próprio sonho.
Comentários: Enquanto esteve sob ocupação nazista, a França produziu uma infinidade de filmes que, se não podem exatamente ser classificados como “cinema de resistência”, já que não havia neles qualquer mensagem de defesa dos valores pátrios contra o invasor estrangeiro, eram sem dúvida o típico cinema de fruição, feito para um país em guerra, cuja finalidade maior era distrair a população dos dramas reais, dando-lhe a oportunidade de sonhar e se divertir diante da tela. Nenhuma novidade nisso, já que os norte-americanos usavam igual artifício no mesmo período, a época de ouro dos musicais hollywoodianos.
Este aqui é um bom exemplar do que se produziu naquele tempo em terras européias. Denis é um jovem empregado de uma mercearia que se apaixona pela dama que aparece de forma recorrente em seus sonhos, invade o próprio universo onírico e vai se encontrar com ela, uma idéia que pode ter servido de inspiração a Woody Allen anos depois, quando rodou A rosa púrpura do Cairo, com a diferença de que lá a história tinha como ponto de partida o cinema. Depois que entra no próprio sonho, Denis passa a interagir com os demais personagens e acaba vivendo uma aventura, como diz o título, fantástica.
A história é narrada como se fosse de fato um sonho a que estejamos assistindo, e essa impressão é realçada pela concepção visual, por meio de cenários enevoados e uma fotografia que brinca o tempo todo com o jogo de luzes e sombras, aliás, dois elementos comuns do filme noir, que também começava a ganhar força nos EUA.
O elenco é eficiente, mas composto de nomes pouco conhecidos, exceção talvez para Bernard Blier, que se tornaria razoavelmente famoso graças à sua prolífica carreira de quase 200 filmes (morreu em 1989), alguns muito festejados, como A grande guerra (1959), Loiro alto de sapato preto (1972), Meus caros amigos (1975) e Coquetel de assassinos (1979). Destaque também para Micheline Presle, a dama sonhada, ainda na ativa aos 92 anos, com mais de 180 créditos na carreira. É um filme com bons diálogos, engraçado e com um final apropriadamente romântico. Merecia ser conhecido do grande público. E de alguma distribuidora de DVD, que nunca o descobriu.

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O CineComFritas entra em recesso a partir de hoje. Estarei de volta dia 8 de janeiro, com as aguardadas listas dos melhores e piores filmes de 2014. Até lá!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Respiração artificial

Apnéia (2014)
Desde que foi reaberto, em 2011, o pequeno e simpático Cine Jóia, em Copacabana, vem se firmando como uma das salas mais interessantes da cidade. Com programação alternativa, apresenta filmes normalmente desprezados pelo circuito, além de lançar títulos exclusivos e resgatar outros antigos, exibidos em Festivais do Rio de priscas eras (ou nem tanto). De uns tempos para cá, o horário também se tornou alternativo, com as sessões começando as 10h da manhã! Às quais devem atrair um público de aposentados ou de pessoas que, como eu, têm a sorte de poder trabalhar em casa e escolher seus horários de descanso sem prejuízo profissional.

E foi numa dessas sessões alternativas, não às 10h, mas às 12h10, que fui conferir Apnéia (o título oficial não tem o acento, já que o Acordinho mandou, tá mandado, mas comigo não!), drama dirigido por Maurício Eça, que já havia passado pelo mesmo Jóia pouco tempo antes e voltou depois à grade da sala outra característica do cinema, trazer de volta produções que foram pouco vistas num primeiro momento. Com apenas sete pessoas na sessão, sendo seis mulheres, foi mais fácil me concentrar na história, livre de conversinhas paralelas e, aleluia!, brilho de visores de celular.

O foco é Cris (Marisol Ribeiro), estudante de Artes Plásticas, que sofre de apnéia, a interrupção do fluxo respiratório durante o sono e que pode, evidentemente, levar à morte. Assim, passa o dia em estado constante de sonolência e se arrasta para as aulas. Pouco afeita à rotina acadêmica, Cris prefere se afundar nas inúmeras carreiras de cocaína que preenchem seu tempo. Num dos intervalos de aula, conhece Júlia (Thaila Ayala), da turma de Design. Tornam-se amigas inseparáveis e, juntas à Giovana (Marjorie Estiano), passam a freqüentar as baladas mais loucas de São Paulo, flertando com a alta prostituição, a ponto de serem confundidas com profissionais do ramo. Tudo é muito divertido, mas as meninas atingirão uma situação-limite da qual não é possível retornar.

Fumar, cheirar, comprar. Ê, vida boa!
Não há muita novidade no tratamento conferido ao tema. Em alguns momentos, cheguei a pensar que estava assistindo a um episódio da série O negócio tratando da adolescência das, hum, funcionárias da Oceano Azul. Há muita droga, muita bebida, muito consumo de tabaco praticamente todas as cenas têm um personagem fumando ou empunhando um cigarro. Naturalmente, também há nudez, discreta e pouco erótica. Curiosamente, o retrato mais eficiente é o da personagem Júlia: filha de um empresário riquíssimo, sempre ausente, que mora em um luxuoso apartamento na Zona Sul paulista, fica claro que se arrasta para aquele mundo de devassidão movida por seu vazio interior; parece ser o mal de gente rica que vive à toa. De Cris, só se sabe o que se vê. Ou seja, tanto pode ser uma patricinha desesperada por novas emoções ou por uma vida de risco quanto uma jovem inconseqüente querendo viver ao máximo.

O roteiro enreda as três protagonistas em uma espiral de tragédias que vão se sucedendo, tratando de temas caros ao universo feminino: traição amorosa, pais ausentes, construção de identidades sociais, gravidez indesejada. Tudo atinge um ápice dramático que, no entanto, é resolvido de forma reducionista e conservadora no final. A última cena, aliás, oferece uma ambigüidade interpretativa, embora os elementos visuais não deixem muita dúvida de que é aquilo mesmo. Ou será que não? No fim, a simbologia da apnéia para representar o universo e o trajeto da vida de Cris acaba se revelando muito acertada. Seu risco de morte não se restringe ao prolema durante o sono; sua vida inteira é uma interminável suspensão da normalidade.  

Confessa, nós somos de parar a respiração, né?
Marisol Ribeiro parece mesmo estar tão drogada quanto sua personagem, o que poderia ser um elogio, considerando o papel, mas não é. Sua atuação é acima do tom. Não dá para sentir pena da sua Cris, nem antipatia, nem nada é só uma jovem perdida sem rumo na vida. Thaila acompanha a colega, exagerada nas caras e bocas. Só Marjorie consegue imprimir um mínimo de normalidade à sua personagem, não por acaso, a única cujos problemas internos parecem não ser tão complicados.

Maurício Eça tem larga experiência em videoclipes, tendo dirigido cerca de 120 deles, o que o torna o recordista do formato no país, segundo a MTV. Por isso, muitas imagens de Apnéia guardam semelhanças com esta estética musical. Esta é sua estréia na condução de um longa-metragem; antes, havia assinado dois curtas e codirigido um documentário, Universo paralelo (2004), exibido no É Tudo Verdade.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A vida tem que ser mais do que isso

Boyhood - Da infância à juventude (2014)
Aclamado unanimemente no último Festival do Rio, quando teve todas as suas sessões lotadas, apontado como forte candidato ao Oscar, incensado pela crítica profissional em diversos veículos, Boyhood (que por aqui ganhou o subtítulo Da infância à juventude) é o filme da temporada, aquele que todo mundo já viu ou vai ver. Algo como foi Gravidade no ano passado. Fiquei pensando que talvez fosse este o cinco-estrelas que me faltou na edição do evento. Somente agora consegui vê-lo no circuito. E continuei pensando... talvez fosse.

Tirei duas conclusões. Primeira: estou velho, chato, ranzinza, insensível, praticamente às raias da indiferença. Daí chego à segunda: deve ser por isso que cada vez entendo menos esse frenesi que público e crítica fazem em torno de certos filmes, recebidos como a reinvenção do cinema, obras-primas incontestáveis, fenômenos de criatividade e realização. O filme não me disse nada. Não houve um único e desgraçado segundo ao longo de suas quase três horas de duração que tenha dialogado comigo, me emocionado ou me surpreendido de alguma forma. O problema nada tem a ver com a longuíssima metragem: simplesmente é difícil suportar uma história que se arrasta sem apresentar qualquer conflito.

Até quem ainda não viu Boyhood deve saber do que se trata. Este é o filme que o diretor Richard Linklater levou 12 anos para concluir, período de tempo ao longo do qual acompanhou o amadurecimento e envelhecimento do ator principal, Ellar Coltrane (que tem pouquíssimos e esparsos créditos na carreira, estreou em Dinheiro e má companhia, 2002, e fez Nação fast-food, 2006). Em torno dessas mudanças, de personalidade, mentalidade e aparência física, criou um roteiro que se desenvolve ao longo do mesmo espaço de tempo. Assim, quando o filme começa, Mason (Coltrane) tem 6 anos; quando termina, está com 18, no começo da vida adulta, prestes a ingressar na universidade.

Reunião de família. Para falar de quê, mesmo?
Por pouco mais de uma década de sua vida, Mason vivencia problemas familiares, as constantes mudanças de endereço da mãe (Patrícia Arquette), os encontros esporádicos com o pai (Ethan Hawke), a difícil convivência com os dois novos padrastos: um atraente professor universitário que se transforma quando bebe, a ponto de agredir a mãe do menino; e um militar, a primeira namorada, o primeiro fora, o primeiro bullying etc. Ou seja, cenas de uma vida comum. Paralelamente, o diretor monta um interessante painel da sociedade e dos hábitos norte-americanos, por extensão refletidos em várias partes do planeta, entrelaçando a vida de Mason com fatos marcantes ocorridos na última década, como a eleição de Barack Obama e a febre provocada pelo lançamento de mais um livro da saga  de Harry Potter (no caso, o penúltimo, Harry Potter e o enigma do príncipe).

Boyhood ganhou fama muito antes de ficar pronto ou ser lançado por conta da proposta de "cinema-verdade" encampada pelo diretor. Ele acompanhou o ator principal, Ellar Coltrane, durante o mesmo período em que se passa a história. Reuniu a mesma equipe uma vez por ano, rodou vários curtas-metragens que juntou depois para dar forma ao longa, e até tomou certas precauções, como confiar a direção a Hawke caso ele morresse nesse meio-tempo! O problema é que nem essa idéia é original. Nikita Mikhalkov fez coisa muito semelhante em Anna dos 6 aos 18 (1994), em que acompanhou o crescimento de sua filha no mesmo período que Linklater, com a vantagem de que lá era possível observarmos as mudanças sociopolíticas vivenciadas pela comunidade russa, durante o processo de esfacelamento do comunismo e o surgimento das novas repúblicas ou seja, mostrando como o indivíduo comum pode ser afetado por força das circunstâncias, mudando de vida e de pensamento. Há também um filme tcheco recente, Algo como a felicidade (2007), em que também assistimos ao crescimento dos dois filhos da protagonista, igualmente sob um viés político. E nenhum deles é uma superprodução interminável. Nesse sentido, portanto, o projeto de Linklater afunda na mesmice e o detalhe temporal só ganhou tanto destaque por se tratar de um filme de Hollywood.

Este será o maior aperto da vida de Mason.
Mas o que me aborreceu mesmo em Boyhood foi a total falta de conflito da trama. A vida de Mason, por mais que tenha problemas, é de uma regularidade impressionante. Toda certinha, sempre em linha reta, nada fora do lugar, nenhuma transgressão, nada para manchar o currículo. O menino não quebra a vidraça do vizinho, não puxa o rabo do gato, nem rouba torta da janela dos outros. O rapaz não pega o carro escondido, não perturba as meninas, não experimenta drogas no máximo, extravasa sua rebeldia usando brinco e desafiando a autoridade do padrasto. Ou seja, Mason não comete nenhuma besteira que as pessoas normalmente cometem, sua existência é "limpa", careta. Deve ser uma vida bem chata. Esse aspecto também tira muito da força do roteiro, afinal, quem é que cresce e passa por uma fase fundamental na construção da personalidade sem fazer alguma bobagem, sem errar, sem criar desafetos?

Podem argumentar que não era essa a intenção de Linklater, não era criar um épico existencial, e sim, como é praxe em suas obras, pintar um retrato das relações humanas a partir de um tema fincado no mundo real. Tudo bem, que seja e nada de errado nisso. De todo o modo, não muda a impressão ruim que tive do filme. Muito palavrório, pouca substância. Também não há problemas de relacionamento. Por exemplo, quando o padrasto beberrão começa a se tornar violento, o que poderia gerar alguma tensão, o assunto é logo "resolvido" e abandonado. Muita gente fala que o filme, em algum grau, reflete a vida de todos nós e por isso é fácil se identificar com ele. Pode ser, mas não me vi ali em momento algum. Não me reconheci em nenhuma situação, não descobri a solução para nenhum conflito interno ali.

O futuro de Mason pode ser brilhante; já o filme...
Ao final de Boyhood, fiquei com a impressão de ter passado três horas vendo um documentário sobre como ser um bom rapaz, como a vida humana pode ser medíocre, tão carente de grandes emoções, tão... comum! Prefiro ver uma história em que o personagem faça um monte de bobagem, mas aprenda com os erros: aí reside o impulso moral que justifica a existência do herói romântico e, de quebra, oferece uma visão de mundo bem mais ampla, muito mais aberta a discussões e ensinamentos, do que essa vidinha asséptica e absolutamente sem graça de Mason. Uma decepção. Sinceramente, um saco, saquíssimo. Vida medíocre por vida medíocre, prefiro a minha. É tão amorfa quanto a de Mason, mas, pelo menos, tem uma boa dose de perversão para dar tempero.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Velozes, furiosos e possuídos

Comboio do terror (1986)
Stephen King tem uma vasta folha corrida de serviços prestados à literatura. Inegavelmente um dos grandes autores do gênero terror e fantasia, longe de ser unanimidade  há quem o considere um enganador, que escreve sobre coisas irreais, alienantes (mas quem disse que a literatura precisa ser séria o tempo todo?) , já deixou um legado, de certa forma, e nem me refiro à sua monumental série A torre negra, épico inspirado em O senhor dos anéis.

Também é um dos autores mais adaptados para o cinema. Praticamente todos os seus romances já foram levados à tela grande, assim como diversos de seus contos. Muitos foram bem-sucedidos: Carrie, a estranha (a primeira versão, de Brian de Palma, com Sissi Spacek), O iluminado (do Kubrick), Cemitério maldito, À espera de um milagre (o livro original tinha outro nome, O corredor da morte, e foi lançado primeiro em seis volumes de bolso). Outros chegaram às raias da indigência: A criatura do cemitério, Mangler  Grito de terror, O apanhador de sonhos, uma das piores coisas que já vi. Sua experiência na Sétima Arte, contudo, quase sempre se limita a pontas que faz nessas adaptações.

Mas em meados dos anos 80, King devia estar meio insatisfeito com o que os diretores andavam fazendo com seus livros e resolveu, ele mesmo, sentar na cadeira, pegar o megafone e fazer sua estréia na condução de um longa. Escolheu uma história bem curtinha, escreveu o roteiro baseado nela, mas o resultado ficou muito aquém do esperado. Comboio do terror é uma das experiências mais insípidas já feitas no cinema de horror.

O filme adapta o conto "Caminhões", inserido na coletânea Sombras da noite, publicada no Brasil pela Francisco Alves. A ação se passa no dia 9 de junho de 1987, quando um cometa atravessa a órbita terrestre. O fato desencadeia uma rebelião de máquinas em geral e veículos em particular, que ganhem vida própria e passam a atacar e matar os humanos. Por motivos diversos, um grupo de pessoas fica encastelado em uma lanchonete de beira de estrada, cercado por caminhões. Por mais divergentes que sejam em termos de personalidade ou perspectiva, ou mesmo de bravura, todos precisarão se unir para conseguirem escapar. Um bad boy, uma garota masculinizada e um pré-adolescente briguento assumem a dianteira e comandam a ofensiva humana.

King ficou encurralado por um roteiro sem criatividade.
O conto tem lá seu interesse, mas o filme não consegue atrair o espectador, muito provavelmente pela inexperiência de King com a cartilha cinematográfica. A história é lenta, repetitiva (porque sua base é bem curtinha, resultou alongada), não oferece alternativas para tornar a narrativa mais dinâmica e é defendida por elenco pouco empenhado, à frente do qual estão um Emílio Estevez colhendo os louros de ser um dos principais astros teens daquela época e o veterano Pat Hingle (MASH e Norma Rae, entre muitos telefilmes e séries). King é o cidadão atacado pelo caixa eletrônico, logo na primeira cena. Mas não quis aparecer na refilmagem, ainda pior que o original, dirigida por Chris Thomson em 1997.

O resultado foi tão desastroso que o escritor nunca mais se aventurou novamente na direção, nem de curta-metragem. Restringindo-se ao campo no qual é mestre, porém, continuou escrevendo roteiros, e muitos bem-sucedidos, como o da atual série Haven.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Uma obra-prima de carne, osso e celulóide

A bela intrigante (1991)
O conceito de superprodução surgiu no cinema norte-americano em 1915 quando D.W.Griffith lançou O nascimento de uma nação, de 159 minutos, que foi também o primeiro filme a contar uma história com começo, meio e fim, em vez de apenas justapor imagens. No ano seguinte, o diretor repetiu a dose com Intolerância, que, em 160 minutos, foi ainda mais ousado em termos de linguagem, narrando cinco situações de intolerância religiosa ocorridas em épocas diferentes da história da humanidade. Com o passar dos anos, e com os naturais avanços técnicos da indústria do cinema, Hollywood principalmente se tornou o berço de grande parte das chamadas superproduções, a maioria produzida nos ditos anos áureos do cinema, como E o vento levou... (1939, 222 minutos), Ben Hur (1959, 211 minutos) e Lawrence da Arábia (1962, 208 minutos), entre muitos outros. São filmes grandiosos em tudo, que no entanto contêm elementos de ação, drama e romance suficientes para justificar sua mastodôntica duração.

Esta idéia de se fazer de um filme um superespetáculo emigrou para outros países, gerando verdadeiras obras-primas da sétima arte, como Os sete samurais (1954, 207 minutos), no Japão, e A doce vida (1960, 178 minutos), na Itália. Na Índia, a maior indústria cinematográfica do mundo, este conceito é quase uma regra local, visto que as produções daquele país não raro ultrapassam as três horas de duração, como Lagaan (2001, 224 minutos) e Estarei sempre aqui para você (2004, 198 minutos). No entanto, são poucos os exemplos deste tipo de filme que levam em conta um aspecto fundamental na construção da narrativa, que é a passagem do tempo. Com o recurso da montagem, faz-se a elipse de diversas situações sem que tal artifício comprometa o perfeito entendimento da história. Um dos diretores que melhor trabalham esta questão, embora por vezes cometa obras de difícil apreciação, justamente por conta dessa fidelidade ao conceito temporal, é o francês Jacques Rivette.

Rivette é egresso da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou a forma de se fazer cinema e que surgiu na França nos anos 50. Ao lado de Truffaut, Resnais, Godard, Rohmer e Chabrol, entre outros, ele buscava uma renovação na linguagem cinematográfica, utilizando o cinema como campo aberto para a exposição de idéias sobre a vida, a arte, Deus, a morte e diversos assuntos relacionados ao homem em suas ligações com o homem e com o universo. Com exceção talvez do primeiro Godard (Acossado, 1959), e de um ou outro título menos conhecido, os filmes dirigidos por estes senhores são extremamente falados, por vezes verborrágicos, o que lhes rende pouca empatia com o grande público ou com o público médio que freqüenta as salas de cinema; porém, são terreno fértil para discussões e debates após as sessões. Rivette, em especial, é autor de filmes que muitas vezes exploram a passagem de tempo como se fosse um personagem, construindo obras que exigem paciência e entrega do espectador (O tempo redescoberto, 1999, 169 minutos), condições não muito atraentes aos espectadores em geral, cuja idéia de cinema se encerra na fruição pura e simples, sem maiores questionamentos inerentes à obra, e sobretudo nos dias de hoje, em que cada minuto pode fazer a diferença no somatório das ações de um dia. Fiel a seus preceitos, o diretor realizou uma das mais monumentais, em mais de um sentido, obras do cinema: A bela intrigante.

"Você não me acha parecida com a moça do retrato?"
Não é um filme fácil, a começar por sua metragem: são quatro horas de duração, um aparente exagero, mas quase um média-metragem para os padrões de Rivette, que já concebeu filmes de até 25 horas de duração (Out 1, 1971). O espectador comum pode perguntar: é necessário? Sim, no caso de A bela intrigante, é necessário, para que possamos nos tornar íntimos dos personagens, conhecer seus medos, saber o que lhes vai na alma, entender suas motivações, requisitos sem os quais o filme perderia muito do seu sentido. Há uma versão reduzida da obra, com apenas 125 minutos, com começo e final diferentes, e na qual muita coisa se perde ou não se explica.

O roteiro, inspirado no romance A obra-prima ignorada, de Balzac (publicado no Brasil pela Comunique Editorial), conta a história de Edouard Frenhofer (Michel Picolli), veterano pintor que vive das glórias do passado e que há anos não consegue produzir um único quadro. Ele mantém um casamento de fachada com sua esposa, a sofrida Liz (Jane Birkin), sem qualquer sinal de que possa retomar a paixão de outrora (dormem em quartos separados, pouco se vêem). Resignada com a situação, e sem nada poder fazer para revertê-la, Liz anda descalça o tempo todo, como se fosse apenas mais um objeto de decoração da suntuosa mansão que coabitam, já fundida ao terreno da propriedade. Enquanto o marido se diverte caçando coelhos nas redondezas, Liz se distrai empalhando pássaros e animais. Um dia, por meio de um amigo, Frenhofer conhece o jovem casal Nicolas (David Bursztein) e Marianne (Emannuelle Béart, lindíssima), revelando a eles um projeto jamais concluído e interrompido há dez anos, o quadro chamado “A bela intrigante”, cujo modelo inicial fora Liz. Nicolas sugere que Marianne seja sua nova modelo. Irritada por não ter sido consultada sobre a decisão, Marianne se recusa, mas termina por aceitar e no dia seguinte chega ao ateliê de Frenhofer disposta a servir de inspiração para a retomada e conclusão do quadro. O ateliê funciona numa antiga igreja de pedra, nos fundos da mansão, e só o conjunto arquitetônico da propriedade já vale o filme inteiro, a casa com seus largos corredores com pastilhas em preto e branco no chão, varandas que se debruçam sobre o mar de vegetação que envolve o lugar e as claustrofóbicas paredes de pedra do estúdio onde Frenhofer busca recriar sua obra. Os dois se trancam no ateliê. O espectador, conduzido por Rivette, vai junto. É quando o filme de fato começa.

Emannuelle Béart dispensa qualquer efeito especial.
A partir deste momento, tem-se início uma tensa relação entre o artista e sua modelo. Frenhofer submete Marianne a posições bastante incômodas, exigindo o máximo de empenho de sua parte, obrigando-a a ficar horas curvada ou apoiada nas pontas dos pés enquanto tenta dar forma ao melhor quadro que já produziu. Nua a maior parte do tempo, Emannuelle Béart ilumina a tela cada vez que a câmera enquadra seu rosto, realçando seus grandes olhos verdes, captando em detalhes todas as suas expressões faciais que traduzem o desconforto experimentado por sua personagem. Vale destacar que a nudez da atriz nada tem de erótico nem despropositada: suas formas exalam poesia e sensualidade contrapondo-se de maneira admirável à obsessão do pintor por buscar a verdade das formas, a exatidão dos sentimentos que procura retratar na tela. Essa obsessão se traduz de forma clara quando, após mais uma sessão extenuante de poses, Frenhofer diz à sua assustada modelo: “O sangue, o fogo e o gelo que você tem dentro de você, eu os quero para mim”. A partir deste instante, sem que nada mais seja dito, está fechado o acordo tácito entre as duas partes, que não medirão esforços para alcançarem o objetivo a que se propuseram. A ausência de trilha sonora reforça o isolamento dos personagens e aproxima o espectador ainda mais da intimidade partilhada pelo artista e sua modelo, evitando triunfalismos tão comuns no cinema norte-americano e impedindo que haja um afastamento que comprometeria o sentido e a essência do filme.

Musa e mestre. Sub e Dom. Filha e pai...
Há diversas analogias possíveis de serem feitas entre os dois protagonistas, desde as mais óbvias – a menina que encontra no pintor a figura paterna que a guia para a vida, a aluna e o professor, a ninfeta sedutora que reacende no velho artista a chama da vida – até um subtexto que pode passar despercebido ao espectador menos atento, o que sugere um perverso jogo entre o dominador e a submissa, à medida que ela se entrega e ele, mesmo nos momentos em que fraqueja, nunca perde o controle da situação, embora, desde os primeiros instantes da empreitada, fique claro que há ali uma relação sadomasoquista.

Ao final de dois dias de trabalho, sem que nenhum dos esboços iniciais feitos por Frenhofer tenham agradado, ela quer desistir, mas ele a impede. Mais tarde, quando ele ameaça abandonar o projeto, é a bela quem o incentiva a continuar, disposta, ela também, a conferir o resultado de tamanho empenho, sem desconfiar que, intimamente, poderá sair destroçada emocional e psicologicamente ao fim de tudo. Mas ela não estará sozinha nesta descoberta: o próprio Frenhofer admite sua morte quando dá o quadro como pronto. Chama Marianne para conferir a obra. Sua reação é de um surdo espanto. Frustrada e insatisfeita com a imagem de si que vê retratada (que não é mostrada), a jovem vai embora do ateliê. Uma poderosa mudança íntima ocorre então dentro da personagem, que não mais voltará a ser como era antes. Quando o pintor exibe aos amigos o resultado de uma semana de trabalho intenso, não é o mesmo quadro, mas outro, falso, mas isso somente ele e Marianne sabem. O verdadeiro quadro foi cimentado em uma parede do ateliê, para que nunca venha à tona, para que nunca seja achado.

Causa espanto que esta obra-prima nunca tenha sido lançada por aqui nem em VHS, nem em DVD, nem em Blu-ray. Já passou da hora.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cult Fritas - Ele nunca pediu para sair

SERPICO
(Idem)
EUA, 1973. 130 minutos. Continental (selo Vintage Films). Roteiro de Waldo Salt e Norman Wexler, baseado em romance homônimo de Peter Maas. Direção de Sidney Lumet. Com: Al Pacino, John Randolph, Tony Lo Bianco, F. Murray Abraham, Barbara Eda-Young, Jack Kehoe.
Sinopse: Um jovem ingressa na academia de polícia e logo se depara com a corrupção existente no meio. Idealista, tenta combatê-la, mas passa a sofrer pressões de vários lados, até ser vítima de uma tentativa de assassinato.
Comentários: É claro que o tema nada tem de novo nem de inventivo. Orson Welles já tratava do assunto nos anos 50, quando realizou o excepcional A marca da maldade. E o cinema sempre se ocupou dele ao longo dos anos. Então, este seria apenas mais um filme a abordar o assunto, não fosse o vigor de Lumet na condução da história e a entrega de Al Pacino no papel do incorruptível Frank Serpico, um descendente de italianos que acredita na justiça e na função social da corporação que passa a integrar. Só que em pouco tempo ele descobre que as coisas não funcionam como se vislumbra.
O meio policial é sujo, com dinheiro podre correndo nas delegacias, ligações escusas envolvendo delegados e traficantes, segredos que não devem ser revelados. A justiça plena é um objetivo impossível de alcançar. Serpico é uma exceção entre seus colegas de farda, até pelo fato de agir à paisana quase na maior parte da história. É culto, estuda espanhol e gosta de literatura. Em momento algum abandona suas convicções, mesmo cercado de indiferença por todos os lados. Mantém-se firme aos seus princípios, ainda que sua dedicação ao trabalho honesto o conduza a um labirinto de armadilhas, gerando a antipatia dos colegas que, teoricamente, deveriam apoiá-lo em sua empreitada no combate ao crime.
É o único que consegue ser autêntico em um universo onde todos fingem ser uma coisa, mas são outra. Em parte, por conveniência, como nos distritos policiais, em que é convencido por outros policiais a renunciar às apreensões efetuadas para creditar-lhes o sucesso na operação. Em parte, por incapacidade. Na engraçada seqüência da festa onde acompanha a namorada e conhece os amigos dela, todos se apresentam como representantes de uma elite intelectual – poetas, cineastas, artistas de modo geral – embora se virem profissionalmente em atividades modestas e longe da sugestão do sucesso pretendido. O contraste entre Serpico e o mundo que o cerca fica evidente. Ele é uma excrescência, um raio de solidez em um universo corrompido de ilusões e frustrações. Jamais se deixará abater.
A fotografia em tons sujos ajuda a realçar o clima sombrio e violento, contrastado e amenizado pela bela música de Mikis Theodorakis. O roteiro, de Waldo Salt e Norman Wexler, adapta com competência o romance homônimo escrito por Peter Maas, por sua vez inspirado em personagem real. O verdadeiro Serpico trabalhou no Departamento de Polícia de NY entre 1959 e 1972. Hoje está com 78 anos.
O filme rendeu a Al Pacino sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator (recebera uma no ano anterior, como coadjuvante, por O poderoso chefão, mas perdeu em ambas as ocasiões). Merecia maior reconhecimento da Academia. Também foi maltratado pelas distribuidoras, que só há pouco tempo lançaram o filme no formato de DVD, infelizmente por uma das mais suspeitas do mercado, a sempre discutível Continental. A capa informa se tratar de edição especial, mas não tem nada além dos extras habituais (sinopse, trailer sem legenda, fotos e cartazes).

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Especial - A cidade dos mistérios intermináveis - Parte II

Os últimos dias de Laura Palmer (1992)
No Brasil, Twin Peaks foi anunciada com estardalhaço pela Rede Globo no verão de 1990, com as chamadas ressaltando que a série era o maior fenômeno de audiência da televisão norte-americana. Sua exibição foi programada para as noites de domingo, depois do Fantástico. No entanto, na prática, o tratamento dispensado pela emissora foi inversamente proporcional à importância que conferiu à atração. Os oito episódios da primeira temporada foram exibidos cheios de cortes, criminosamente editados, o que deixava a trama ainda mais confusa e praticamente sem sentido.

Como naquele tempo não existia internet e as informações custavam a circular por aqui, pouca gente percebeu o truque só quem já tinha visto a série na TV americana notou a mutilação que a Globo tinha promovido. Em resumo, o canal atraiu a atenção do público, manteve a audiência graças a um reiterativo esquema de divulgação do produto e traiu os espectadores exibindo uma série híbrida.

Mas a trajetória de Twin Peaks na televisão brasileira não podia ficar marcada por esse absurdo cometido pela Globo. Três anos depois, a Rede Record adquiriu os direitos sobre a série e a exibiu na íntegra, conferindo a ela o respeito que lhe era devido. A iniciativa foi muito bem-recebida, e deu tão certo, que pouco tempo depois a emissora também apresentou a segunda temporada, igualmente anunciada com relevância: "Nunca antes exibida na televisão brasileira".

Dale Cooper e um dos objetos de culto da série: o gravador.
Porém, se ela tivesse permanecido na obscuridade não teria feito a menor falta. Como todos os mistérios já haviam sido solucionados na primeira leva, o jeito foi inventar novos desdobramentos, criar novas tramas e com isso, o que era original acabou se tornando cansativo. A saída encontrada pelos produtores foi costurar uma colcha de retalhos que durou 22 episódios, ao longo dos quais pouco há de interessante, e ainda terminava de forma anticlimática, com o agente Cooper deixando aberta a porta para uma provável terceira temporada, que, felizmente, permaneceu engavetada. Até agora.

Mas nem o fracasso que foi essa equivocada segunda temporada fez com que enterrassem a mística em torno de Twin Peaks. Como se ainda houvesse explicações a dar e mistérios a resolver, em 1992, chegou aos cinemas Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer, uma espécie de preqüência da série que, supostamente, justificava o comportamento dos personagens e revelava a vida pregressa da garota. O filme foi um fracasso de bilheteria, não agradou os fãs da série e muito menos angariou novos admiradores, sobretudo pelo roteiro extremamente fragmentado, que, além de não explicar nada de maneira satisfatória, era confuso demais e praticamente ininteligível para quem não conhecia a história. Há quem o considere o pior filme de David Lynch.

Você está entrando novamente em Twin Peaks. Seja bem-vindo!
O longa acabou sendo a pá de cal em uma produção que ganhou os ares do universo pop e ultrapassou a fronteira que a marcaria no tempo, perenizando-se em um culto que persiste até hoje. Objetos citados na série viraram itens disputados. Uma réplica do gravador usado pelo detetive Cooper chegou a ser leiloada nos Estados Unidos. Por aqui, a Editora Record lançou O diário secreto de Laura Palmer, a pista principal para a resolução do mistério. Também serviu de inspiração e referência para produções posteriores, inclusive Picket Fences, que a mesma Record exibiu na seqüência, tentando capitalizar ainda em cima do sucesso da anterior. 

Será que daqui a 20 anos também celebraremos o legado dessa vindoura terceira temporada? A partir de 2016 começaremos a responder.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Especial - A cidade dos mistérios intermináveis - Parte I

Twin Peaks (1989)
A nota era breve, não mais que dez linhas, mas tive de lê-la várias vezes para ter certeza que era aquilo mesmo. O canal Showtime prepara o lançamento da terceira temporada de Twin Peaks para 2016. Serão nove episódios, com os roteiros ficando a cargo dos criadores da série, Mark Frost e David Lynch, cabendo a este último ainda a direção de todos eles. A grande pergunta que se impõe é: para quê?

Se você era muito criança, ou nem era nascido no final dos anos 80 / comecinho dos 90, provavelmente não faz idéia do faniquito que a nota acima provocou nos meios televisivos. Hoje nos acostumamos a celebrar a excelência de muitas séries de TV, que vêm se firmando como terreno de qualidade da produção audiovisual, sobretudo nos Estados Unidos, superando os produtos genéricos e imbecilizantes produzidos por Hollywood. Comentamos as tramas inteligentes e bem-boladas de Breaking bad, Mad men, The walking dead e um infinito de tantas outras. Há quem diga que a explosão do atual ótimo momento vivido pelas séries começou há cerca de de 20 anos, com o lançamento de Friends (1994) e se cristalizou com Lost (2004), cujo sucesso de ambas impulsionou produções semelhantes em termos de ousadia criativa e roteiros bem escritos. Pode ser, mas também não é exagero voltar um pouco mais no tempo e afirmar que tudo que está aí partiu de Twin Peaks. Foi o grande divisor de águas da televisão norte-americana. Foi o trampolim para outros saltadores desfilarem seu talento aos olhos da audiência e do público.

Pela estrada afora, eu vou bem sozinha...
A primeira distinção que se fez a Twin Peaks na época foi o nome por trás do projeto. David Lynch já era um cineasta consagrado quando resolveu criar esse lúgubre microcosmo de seu universo muito particular, povoado por personagens bizarros e situações esquisitas. Não era mais uma aposta, mais um novato se arriscando na condução de uma trama televisiva banal: era Lynch, diretor de cinema, indicado ao Oscar por O homem elefante, reconhecido por filmes como Veludo azul, o homem que ousou adaptar Duna para a tela grande. Hoje ninguém se espanta se vir o nome de Spielberg, ou Scorsese, ou Soderbergh nos créditos de direção de uma série, mas naquele tempo era novidade. Mais: uma mostra de como a televisão estava se engrandecendo, atraindo a atenção de pessoas ligadas ao cinema. A série estreou cercada de expectativa por conta disso, e a resposta do público foi a mais animadora possível, batendo recordes de audiência.

Catherine E. Coulson, a Mulher do Tronco.
A jovem estudante Laura Palmer é encontrada morta e ensacada à margem do rio que atravessa a cidade, fato que abala a aparente tranqüilidade do lugar. O FBI envia o investigador Dale Cooper para descobrir o que aconteceu, mas, à medida que ele vai se embrenhando no caso, descobre que todos os moradores de Twin Peaks guardam segredos sombrios, e que cada um deles tinha uma razão particular para matar a garota. A trama oferece um desfile de personagens antológicos, como a Mulher do Tronco, a Dama Tapa-Olho, o Homem-de-um-Braço-Só e muitos outros. O detetive também não fica atrás em matéria de esquisitice e gosta de gravar suas descobertas e impressões em um pequeno gravador, a que chama de Diane.

A estrada perdida no coração selvagem da América.
Um dos grandes acertos da série foi o elenco homogêneo. Lynch apostou em veteranos que andavam em baixa e, de certa forma, conseguiu pô-los novamente na vitrine: Richard Beymer (Amor, sublime amor), Russ Tamblyn (Sete noivas para sete irmãos), Piper Laurie (Desafio à corrupção) e mesmo Grace Zabriskie que, embora nova, já tinha créditos valiosos no currículo (Norma Rae). Aliados a eles, vinha a ala jovem, composta por novatos que aproveitaram a chance para fazerem a carreira deslanchar, como Lara Flynn Boyle (Equinox), Madchen Amick (Sonâmbulos e muitas outras séries), Sheryl Lee (está no recente Pássaro branco na nevasca). Também voltou a trabalhar com nomes já conhecidos de outros filmes seus, como Everett McGill, Jack Nance, e o destaque do elenco, Kyle MacLachlan, que faz o detetive, este egresso dos anteriores do diretor Duna e Veludo azul; logo depois fez The Doors, de Oliver Stone, e ainda estrelou produções de alguma importância (Os Flintstones, Efeito dominó, Timecode de Mike Figgis) e já está confirmado para repetir seu papel de maior sucesso na nova versão anunciada.
(Continua)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Séries Fritas - Adotada

Onde e quando: MTV, terça-feira, 21h30; quinta-feira, 22h; sábado, 16h e 21h30; domingo, 00h; e segunda-feira, 19h30.
Elenco: Maria Eugênia.
Sinopse: Maria Eugênia vive uma semana como filha adotiva em casas diferentes.


Comentários: No ano passado, a MTV produziu Papito in love, que era exibido à exaustão pela emissora e no qual o roqueiro Supla escolhia uma namorada entre diversas candidatas. A vencedora foi uma tal Maria Eugênia, ou Mareu, que aqui se apresenta como DJ e produtora de moda. Verdadeiro ou peça de marketing, o fato é que o namoro acabou logo, mas a moça tentou se dar uma sobrevida no meio artístico e criou esse programa para brilhar sozinha e explorar sua imagem até o bagaço. Os executivos do canal também devem ter visto potencial nela, porque encamparam a idéia. Portanto, este Adotada é um um spin-off de reality show, coisa que eu nunca tinha visto. O esquema funciona assim: a cada semana, Mareu vai morar como filha adotiva de alguma família, geralmente de classe média ou média alta, quase sempre em São Paulo ou cidades próximas do Grande ABC (mas também há episódios gravados no Rio de Janeiro, Espírito Santo e até na Bahia). Diz que nunca tem idéia do que vai acontecer, mas é claro que deve haver um roteiro pré-preparado para ser seguido por quem topa recebê-la. Durante sete dias, ela interage com os habitantes da casa, os membros da família, participa de seu cotidiano, até dá expediente no trabalho do pai, da mãe ou de algum dos filhos. Também os faz experimentar um pouco do seu mundo, levando-os para baladas, festas e agitos, dando dicas de moda etc. Embora seja simpática, brincalhona e não tenha problemas para se entrosar localmente  ao menos é a imagem que passa  , é claro que surgem desavenças, muitas causadas pela língua ferina da moça, que fala o que pensa e não se incomoda em chocar ou desafiar normas familiares estabelecidas. Em um dos episódios, por exemplo, ela bateu de frente com um pai cujo filho é homossexual e não respeita nem aceita a opção do rebento. Então, fingiu ser transexual (!) para que o chefe da família reavaliasse seus preconceitos. Na base da conversa, que eventualmente descamba para a discussão, mas felizmente sem baixaria nem violência, tenta mostrar a visão muitas vezes bastante conservadora (para não dizer preconceituosa mesmo) que cerca as pessoas e as contradições sociais que ainda persistem no seio da família tradicional brasileira. Como todo mundo sabe que tudo é gravado, não sei até que ponto vai a naturalidade das situações ou começa a encenação. Mas este é um problema inerente de todo reality show. A contrapartida vem no final. Mareu escreve um dossiê com as impressões que teve daquela família, expõe o que viu de bom e ruim e deixa dicas para melhorar a convivência entre todos.



Por que ver? Não deixa de ser uma opção diferente para quem gosta desse tipo de atração. E Maria Eugênia é boa de se pôr os olhos (descontada a magreza excessiva).
Por que não ver? É mero entretenimento, sem qualquer conteúdo. E é sempre constrangedor ver pessoas comuns se expondo na televisão, tudo em troca de alguns trocados.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Festival do Rio 2014 - Segunda semana

Vi 51 filmes no Festival deste ano, três a menos que ano passado. Mas a culpa foi da escalação dos horários, muito ruins para encaixar alguma coisa entre uma sessão e outra, e também da supressão das sessões ao meio-dia. Pela primeira vez desde 2002, saio do festival sem conferir a cotação máxima a um filme, o que pode significar duas coisas: ou o nível do cinema produzido hoje é mesmo pouco animador, ou estou me tornando extremamente exigente. 

A seguir, o que vi na segunda semana do Festival, entre os dias 2 e 8 de outubro.

ENCANTADOS ­- Mais uma imersão de Tizuka Yamasaki na Região Norte, agora contando uma aventura balizada pelos místicos caruanas de Belém. Produção cuidadosa, fotografia belíssima e elenco estelar (obviamente tem Dira Paes). Agradável de ver, mas o roteiro apressa algumas soluções. Carolina de Oliveira cada vez mais interessante, tanto no talento quanto na beleza. * * *

VIDA FÁCIL - Da mostra Clássicos Restaurados de Hitchcock, este foi o único que consegui encaixar na programação. É tão fraco quanto a maioria de seus títulos da fase inglesa, mas a sessão valeu pela experiência: um filme mudo acompanhado de música ao vivo. E, no fim das contas, foi o primeiro Hitch que vi na tela grande! * *

ONÍRICA - O diretor de O moinho e a cruz volta com um mais um filme de imagens impressionantes, de rara beleza, algumas beirando o surreal e muitas antológicas, como a cobra no supermercado e o baile de gala no meio da floresta. Porém, é um filme difícil, muito hermético e por vezes pretensioso, em especial nas citações literárias. * * *

10.000 KM - O título se refere à distância entre Barcelona e Los Angeles, cidades que abrigam o casal de namorados que formam as únicas pessoas em cena. Ele fica na Espanha, ela se muda para a América, a fim de desenvolver projetos profissionais. Não é fácil manter um relacionamento onde cada um mora em um canto, e falo por experiência própria. O filme retrata muito bem a situação, com todas as conseqüências que ela traz a reboque. Eu me identifiquei com o personagem, senti sua dor, entendi sua revolta. O roteiro também evita o final redentor. Enfim, a vida como ela é. * * *

O ARDOR (El ardor) - Tem um problema sério que é a alternância constante de gêneros ao longo da narrativa, só que sem coerência: começa como drama, vira aventura na selva, ambiente no qual se passa quase inteiramente, filme de suspense e termina como faroeste, com direito a duelo final e tudo. O personagem de GG Bernal é mal definido, parece ter poderes místicos mas isso não se explica. Alice Braga, coitada, só serve para cumprir cota de atriz porque não tem o que fazer. Um tanto violento em alguns momentos, também tem uma trilha sonora óbvia e irritante. * *

GONZÁLEZ - Pensei que este seria o contraponto perfeito à A Via-Crúcis (visto na primeira semana), ou seja, um filme movido pelo discurso ateu, pelo que se depreende da sinopse. Mas o roteiro sequer menciona a condição do protagonista, um pobre-diabo desempregado que vive na capital mexicana, sem perspectiva, e que aceita trabalhar com teleatendimento em uma igreja evangélica. Do meio para o final, ele enlouquece e o que era uma crítica às igrejas evangélicas vira história policial, tudo sem muita sustentação. Carlos Bardem (irmão mais velho de Javier) faz um pastor que finge ser brasileiro e fala em portunhol! * *

CARVÃO NEGRO - O grande vencedor do Festival de Berlim é uma reinvenção do gênero noir, sem nada de muito especial. Com uma premissa de filme de horror barato – pedaços de corpos são encontrados em uma carvoaria – , o filme tem ritmo um tanto arrastado, alternando cenas frias com outras explosivas, de forte tensão (o tiroteio no salão, logo no começo). O romance nunca se impõe, a trama investigativa parece dar voltas e a duração podia ter uns bons dez minutos a menos. O final também é anticlimático. A premiação em um dos festivais mais importantes do mundo mostra que o nível dos filmes de hoje não é mesmo dos melhores. * *

MASSAGEM CEGA - Dramas e alegrias de um grupo de cegos que trabalham como massagistas em uma clínica, em Nankin. Total falta de assunto encerada por quase duas horas sem que nada de interessante aconteça, embalada por diálogos por vezes de uma indigência constrangedora ("Você é mais linda que um cozido de porco"!). Salva-se o aspecto humano dos personagens. * *

AS HORAS MORTAS - Um delicado e sensível rito de passagem. Favorecido por uma coincidência climática, que provocou chuva durante quase todo o período da produção, ganhou uma interessante metáfora atmosférica: é triste e cinzento durante grande parte do tempo, mas ensolarado e esperançoso no final. * * *

ANNABELLE - A boneca de Invocação do mal ganhou vida própria, literalmente. Este filme é uma preqüência daquele e mostra a origem do brinquedo demoníaco. O outro é melhor, tem muito mais clima, mas este não é de todo ruim, embora prejudicado por sustos um tanto óbvios, trilha sonora redundante e um elenco pouco empenhado. Um pouco frustrante, mas diverte, desde que não se exija muito. Parece piada, mas a atriz principal é... Annabelle Wallis (da série The Tudors)! * *

O PORTAL DO PARAÍSO - Este é o famoso filme de Michael Cimino que levou à falência do estúdio United Artists, até hoje considerado o maior prejuízo da história do cinema, tendo custado US$ 40 milhões e rendido apenas US$ 1 milhão! Nunca o tinha visto e, talvez por descobri-lo só agora, na tela grande, não o achei tão ruim quanto sempre ouvi falar. Mas é fácil entender os motivos do fracasso. O primeiro, evidente, sua longuíssima duração de 220 minutos (quase quatro horas!), o que é um suicídio comercial e espanta as pessoas. Produzido no começo dos anos 80, ou seja, em plena Guerra Fria, ficou muito estranho para o público norte-americano aceitar a idéia de ter uma colônia de imigrantes russos estabelecida em seu território, servindo como elemento formador da identidade ianque, ainda que a presença deles ali possa ser lida como metáfora política: os "inimigos" estão entre nós e é preciso eliminá-los. Também demora a começar de fato, com um prólogo de 20 minutos em que há muita música e dança para introduzir os personagens. O maior equívoco, contudo, é a falta de foco do roteiro. Não há um conflito que se imponha de verdade, que mova a narrativa adiante ou que dê força às situações. A ação efetiva só ocorre a partir dos 40 minutos finais, e até é bem-conduzida, mas até chegar lá muita gente já desistiu e debandou (mas na sessão a que estive presente o público se manteve fiel o tempo todo). Até que ela chegue, há uma sucessão de cenas que não conferem unidade ao todo e soam dispersas, isoladas dentro de um conjunto lento e que não seduzem o espectador. Apesar dos defeitos explícitos, o filme foi indicado ao Oscar de Direção de Arte e tem na fotografia do grande Vilmos Zsigmond e na trilha sonora belíssima seus pontos altos. Mas há algo de muito errado com um faroeste cujos melhores momentos estão nas cenas musicais. * *

OBVIOUS CHILD ­- O texto parece ter sido escrito por um adolescente espinhento, que deve achar muito engraçado usar palavras chulas em situações cotidianas. Mas, a julgar pelas gargalhadas ouvidas durante a sessão, a platéia deve ter gostado bastante. * *

A FACE DE UM ANJO (The face of an angel) - Não funciona este jogo metalingüístico de Winterbottom, outro bom diretor que perdeu o viço. O roteiro, baseado em escandaloso caso jurídico real, parte de uma hipótese investigativa e não caminha para lugar nenhum. *

MEIA HORA E AS MANCHETES QUE VIRAM MANCHETE - O formato quadrado e antigo – só entrevistas sob um fundo branco – não chega a atrapalhar este divertido documentário sobre o jornal carioca, famoso por suas manchetes irônicas e engraçadinhas. Fundamental para estudantes de Comunicação, é uma boa aula sobre jornalismo popular. * * *

OLHOS DE LADRÃO - Embora seja baseado em fatos reais, o representante palestino a uma vaga ao Oscar de Filme Estrangeiro não tem uma trama atraente e mal trata da questão da identidade local (a guerra só aparece bem no começo). A menina é por demais antipática e a história se mantém fria do começo ao fim. * *

VOCÊ NÃO ME PEGA, PAPAI ­- Já começa de maneira estranha, com uma voz em off narrando uma espécie de poema ritualístico. Depois, a esquisitice se impõe, com personagens desajustados, uma trama familiar pessimamente explicada e uma opção narrativa inadequada, só com trilha sonora incidental. Vai piorando, ficando cada vez mais violento e desagradável, até um final inconcluso. Nem a tradução faz sentido, já que quer dizer exatamente o oposto do título original (Catch me daddy). Mais um descartável filminho independente inglês. * *

LAST HIJACK ­- Um assunto sério e atual (a pirataria na Somália) desenvolvido de forma um tanto preguiçosa. Os diretores centram a história em um nativo que planeja seu último ataque antes de mudar de vida. Não há dados nem informações relevantes a respeito da atividade; limita-se a revelar que a pirataria é a oportunidade que os meninos pobres de lá têm para ganharem dinheiro. Os ataques aos navios são reproduzidos em boas as seqüências de animação. * *

RECOMENDADO PELO ENRIQUE - Difícil saber qual era a idéia do casal de diretores ao realizar isso aqui. Um filme absolutamente inútil, que não apresenta qualquer conflito, não explica os personagens, nem sequer cria um clima, seja de comédia, de suspense ou qualquer outra coisa. Perda de tempo, de paciência e da grana de quem pagou.

POR CIMA DO SEU CADÁVER - O cultuado Takashi Miike leva seus exageros sanguinolentos para o universo do teatro. Um casal de atores interpreta os papéis principais em uma peça cujo texto guarda semelhanças com o atual momento que vivem. Tudo desemboca em uma terrível vingança. Bem no estilo do diretor; os fãs podem estranhar a princípio, mas vão gostar. * * *

VARA – UMA BÊNÇÃO - Mais um bom retrato da diferença de classes da sociedade indiana, temperado com religiosidade e danças folclóricas. Mas não é Bollywood. A história é também uma oportunidade de conferir um outro tipo de cinema feito naquele país. * * *

OS INIMIGOS DA DOR ­- As desventuras de um ator alemão perdido em Montevidéu. O choque cultural se limita às dificuldades idiomáticas entre os personagens. Os poucos diálogos reforçam o aspecto físico das situações, de onde o roteiro extrai graça. Tem potencial para uma continuação e até uma série de TV. Mas não é nada demais. * *

VULVA 3.0 - O documentário perde a chance de discutir aspectos históricos e sociais da exposição do órgão sexual feminino e se atém ao estético, debatendo questões relacionadas à sua anatomia ou apresentando casos de reconstrução. Frustrou muita gente, não que se esperasse erotismo, mas por se manter tímido na abordagem de um assunto polêmico. * *

REMAKE, REMIX, RIPOFF - Documentário sobre o cinema popular feito na Turquia, sobretudo entre os anos de 60 e 70, mas também são citadas produções mais recentes, dos anos 80. Diretores, atores e produtores famosos a nível local lembram daqueles tempos e contam detalhes curiosos e engraçados, como o uso de trilhas famosas de Hollywood em filmes turcos sem qualquer problema (e sem pagamento de direitos!) ou como os cineastas conseguiam ser criativos para rodar versões locais de sucessos norte-americanos. Bastante completo, examina também os motivos da derrocada dessa indústria. Divertido e fundamental para quem gosta de conhecer a cultura cinematográfica de outros países. * * * *

O PRESIDENTE - Makhmalbaf destila sua amargura contra o sistema que o exilou nessa farsa política sobre a queda de um ditador de uma república fictícia. Embora tenha ótimos momentos e uma cena final bela e simbólica, achei que o diretor foi muito direto em sua crítica, sem nenhuma sutileza. Há problemas: o menino trabalha bem, mas sua presença reforça uma certa pieguice que manipula as emoções da platéia; com quase duas horas de duração, carece de uma edição mais enxuta, que tornaria o ritmo mais ágil. E o roteiro não apresenta heróis com quem o espectador possa se identificar – o ditador é um tirano e o povo, justiceiro. * *

O DESAPARECIMENTO DE ELEANOR RIGBY – ELES (The disappearance of Eleanor Rigby: them) - Esta é a primeira parte de uma trilogia que contará a mesma história por três olhares diferentes, daí o "Eles" no título; os próximos serão "Ele" e "Ela". Jessica Chastain e James McAvoy caminham a passos largos para serem indicados ao Oscar por este drama romântico que foge ao convencional. Diálogos inteligentes e afiados, em especial nas cenas entre ela e Viola Davis. A vida real como ela é, sem soluções fáceis nem final redentor. * * *