Um e-book apresenta inúmeras vantagens, mas ainda não consegue nos fazer sentir o cheiro da chuva
Ler um livro físico é uma experiência tão diferente de ler um e-book quanto assistir a um filme no cinema ou baixado da internet. Pode ser até a mesma história, mas perdem-se alguns elementos fundamentais para a perfeita apreciação do espetáculo. Tenho firmes e particulares motivos para crer que o livro físico não desaparecerá; no entanto, observada sua natural evolução, em pouco tempo estaremos deixando de carregar pilhas de volumes comprados em sebos ou livrarias e trazendo apenas um único dispositivo que nos permitirá carregar tantas obras quanto seria possível fazê-lo nesses “tempos antigos”. Como praticamente tudo relativo ao universo cibernético, um livro eletrônico se caracteriza pela frieza absoluta: a ele, falta o contato, o manuseio, o toque, o cheiro, o leve virar de páginas, a sensação de completude que há entre um leitor e seu livro. Um e-book é tão meu quanto qualquer livro físico de minha biblioteca, mas sente-se que há algo incompleto. Há um distanciamento, uma anônima indiferença, mesmo e por mais que sejam oferecidos recursos ao leitor, para que ele complemente, a seu modo, as informações contidas no livro, com a possibilidade de inserir marcações e comentários à margem (como fazemos com os volumes físicos). Para usar um termo recorrente entre os profissionais de informática, esta questão estaria linkada a outra de maior alcance.
Supondo que tais intervenções sejam possíveis nessa avalanche de novidades tecnológicas que inundam cotidianamente nossas possibilidades pessoais, ficaria a pergunta: isso seria literatura? Interferir na criação do outro, do citado artista (até que me provem o contrário, todo escritor é, para mim, um artista), moldá-la a nosso gosto? Ou não haveria mais literatura a ser consumida, e sim palimpsestos genéricos, que seriam produzidos tendo apenas uma base (o texto do autor) para ser devidamente desvirtuada, modificada? Isso seria literatura? Isso seria arte?
Analisando a assustadora viabilidade de tal ocorrência, seria mesmo possível entender que a literatura chegaria a um processo falimentar inquestionável. De certa forma, já estamos caminhando para isso – com tantos blogs e tantas novas plataformas surgindo a cada dia, tantas pessoas escrevendo sobre os mais variados assuntos, tantas idéias circulando, que o resultado óbvio é um imenso vazio opinativo. Contudo, a falência da literatura representaria simbolicamente não só o fim de todo o pensamento organizado e racional como o absorvemos ao longo dos séculos, mas também, por que não dizer, o fim do intelectual, não só da figura tradicional, de óculos, com conhecimento acima da média, idéias bem sedimentadas, sofisticação artística, mas também, e sobretudo, da intelectualidade como forma de pensamento, como capacidade de plena crítica pautada pelo bom-senso e pelo refinamento estético.
Fato é que os livros virtuais vêm alcançando lugares de destaque nos últimos tempos: grandes editoras optam por plataformas on-line para seus lançamentos, ao mesmo tempo em que tornam disponíveis, na rede, volumes inteiros para download. Como tudo no mundo, a leitura se modifica. Porém, há um aspecto que o e-book ainda não conseguiu substituir. Ler não é simplesmente puxar um livro da estante, abri-lo e dedicar algumas horas do dia a ele. Os mais apaixonados pelo livro sabem que, no fundo, o que há é um processo de enamoramento: primeiro, escolhemos o livro na prateleira; depois, flertamos com ele, indo e vindo, ameaçamos pegá-lo, trazê-lo a nós, mas desistimos da ideia no último minuto; depois, reforçamos a investida, por fim nos apossamos dele, lemos a quarta capa, a orelha, arriscamos até uma rápida olhada no índice (se houver) ou nas apresentações. Depois, nós o devolvemos ao lugar, deixamos que descanse, “esquecemos” dele, até que mais tarde, consumidos pela curiosidade, inebriados pela presença do livro ali, ao nosso alcance, o tomamos em mãos e iniciamos a lua de mel – a leitura, a fruição propriamente dita. Não deixa de ser uma espécie de relação sexual, entrega, paixão – o “orgasmo” ocorre quando chegamos ao clímax da história, ou quando, por algum motivo, somos irreversivelmente capturados pela força das palavras, pela engenhosidade da narrativa.
Se o livro físico vai mesmo acabar, como profetizam alguns especialistas no mercado, tenho cá minhas dúvidas. Sei que, se isso acontecer de fato, toda a experiência da leitura será modificada – e, ouso dizer, uma parte fundamental desse processo estará extinto. Não mais haverá a ligação necessária entre o leitor e seu objeto, mas entre o humano e a máquina, transmudando sensações, relativizando prazeres – talvez seja mesmo o começo de uma era, mas, irreversivelmente, o final de um tempo.
(Artigo publicado na revista Caderno Zero, em setembro de 2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário