Abel Ferrara é considerado o mais
maldito dos diretores malditos, e isso quem diz são seus próprios pares. O
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) realizou uma retrospectiva de sua
carreira, exibindo todos os seus filmes e mais alguns curtas. Uma ótima chance
para conhecer ou rever a obra de um cineasta inquietante, que navega pelas
águas da produção independente e não costuma fazer concessões em seu trabalho.
É meio “ame-o ou deixe-o”. Um dos títulos que foram apresentados foi este Sedução e vingança, segundo filme do
diretor, que eu já havia visto há seis anos, em uma sessão perdida na madrugada
de algum canal aberto e pude rever agora na tela grande.
O título nacional inventado para Ms. 45 passa uma idéia errada do que é o
filme. Não há sedução nenhuma na história, que é pesada, tem cenas
desagradáveis e se passa quase inteiramente em ambientes sujos e
mal-iluminados. A jovem Thana é muda, mas isso não a impediu de arrumar um
emprego em uma prestigiosa confecção em Nova York , onde é muito querida pelas colegas e
por seu chefe. Um dia, voltando do supermercado, carregada de compras, é
agarrada por um desocupado e arrastada para uma viela, onde é estuprada (quem
faz o papel do marginal é o próprio diretor). Mesmo traumatizada, encontra
forças para chegar até em casa, no violento e perigoso bairro do Bronx. Enquanto
tenta se refazer sentada na cama de seu quarto, eis que o apartamento é
invadido e... Thana é estuprada pela segunda vez! Agora, porém, consegue
reagir, mata seu atacante e guarda os pedaços de seu corpo na geladeira. Esta
segunda violência abala psicologicamente a jovem, que muda de personalidade e passa
a levar vida dupla, trabalhando normalmente durante o dia e saindo à noite para
caçar e eliminar homens violentos que maltratam e vitimam mulheres, munida de
um revólver MS .45 (título original do filme). Sua obsessão pela justiça,
contudo, a levará a um desfecho trágico.
O roteiro aproveita o filão do
justiceiro urbano, que estava então ainda em moda no começo dos anos 80,
impulsionado pelo sucesso dos filmes da série Desejo de matar¸ estrelados por Charles Bronson. De fato, Thana
assume sua porção de mulher vingativa em nome de uma causa “nobre” (o
extermínio de estupradores, “limpando” com isso a sociedade) e sai fazendo o
que considera justiça, ainda que por vias tortas, mediada por uma ética sempre
questionável. Mas ninguém vai ver o filme preocupado com questões éticas. A
transformação da jovem, de moça indefesa a matadora implacável, é consistente e
ganha uma representação simbólica no visual de Thana. No começo, seus cabelos estão
soltos, livres para a vida, conferindo-lhe uma aparência romântica e sonhadora;
depois que se assume como justiceira, passa a prendê-los, adotando um visual
mais sóbrio, como se estivesse mais fechada para o mundo, impondo mais
respeito.
Muito da credibilidade do filme é
garantida pela atuação sólida de sua protagonista, Zoe Lund, que aparece como
Zoe Tamerlis nos créditos e fazia sua estréia em cinema com apenas 19 anos. Sem
poder usar a voz para se expressar, é nos olhares e gestos de sua Thana que ela
passa toda a sede de vingança da personagem, aliás levando ao extremo a
característica dos justiceiros urbanos, de falarem pouco e serem mais
eficientes em suas ações do que com as palavras. Ela voltou a trabalhar com
Ferrara em 1992, em Vício frenético,
apontado como a obra-prima do diretor, e do qual também escreveu o roteiro,
assim como o da refilmagem de 2009 com Nicolas Cage repetindo o papel que foi
de Harvey Keitel. Fora isso, não fez muita coisa, encerrando a carreira pouco
depois, em 1997.
Com Sedução e vingança, Abel Ferrara conseguiu angariar bons elogios da
crítica, o que não havia se observado em seu trabalho de estréia em
longas-metragens, o terror hardcore O
assassino da furadeira, um dos autênticos Midnight Movies dos anos 70, em
que explicita o que seria a tônica de boa parte de sua carreira dali em diante. Isso serviu
para que seu nome se tornasse mais conhecido e, por tabela, facilitasse sua
vida de realizador; no entanto, Ferrara se manteve sempre fiel a sua estética e
continuou filmando em esquema independente, dando preferência a histórias menos
comerciais e enveredando quase sempre pelo exagero e pelo radical.
Há algumas obras de Ferrara
disponíveis em DVD, inclusive O assassino
da furadeira, lançado em uma ótima edição pela Aurora, e cujos extras
trazem seus primeiros curtas, além de entrevistas e trechos do filme pornô que
dirigiu entre um projeto e outro, 9 lives
of a Wet Pussy, de 1976, assinado com pseudônimo e que evidentemente ficou
de fora da mostra (que preconceito!). Continuamos à espera que alguma
distribuidora se interesse e lance este Sedução
e vingança, e também Vício frenético,
já que ambos só existem em VHS.
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